Fogo no cerrado e queimadas onde o cerrado não existe mais

Fogo no e queimadas onde o cerrado não existe mais

Altair Sales Barbosa analisa o bioma cerrado, e queimadas. Segundo ele, a ação do fogo no Cerrado é ainda mal conhecida e geralmente marcada por questões mais ideológicas que científicas

O cerrado, enquanto formação vegetal, é explicado por uma teoria denominada escleromorfismo oligotrófico. O oligotrofismo do solo é acentuado pelo fogo, que retira basicamente seus nutrientes básicos.
A vegetação do Cerrado, principalmente nos seus aspectos senso strictu e cerradão, retém o máximo de açúcar que retira do solo e sequestra grande quantidade possível de CO2 da atmosfera, para alimento, e deposita esse gás nas profundas. O açúcar é transformado em tecido por nome esclerênquima, que é armazenado nas bifurcações das , dando a estas um caráter tortuoso. Fenômenos dessa natureza demonstram processos adaptativos de longa data.
Todavia, esses não são os únicos processos que demonstram uma adaptação da vegetação do Cerrado ao fogo. Existem muitos, mas, para resumir, citaremos a existência de caules subterrâneos, com função de reservas e com gemas, que permitem a reprodução das plantas após a passagem do fogo; são processos adaptativos que demonstram uma história evolutiva, complexa e antiga, dessa vegetação.
Outros tipos de vegetação precisam de situações extremas para sobreviverem. No caso polar, por exemplo, existem as tundras, que florescem depois do degelo. O gelo polar funciona como fogo, provoca quase o mesmo efeito, para rebrota das plantas.
As sequoias que ocorrem principalmente na Califórnia, na América do Norte, é outro tipo de formação vegetal que intimamente convive com fogo, e esse é primordial para sua propagação e sobrevivência. De formação antiga, tal qual o , estas florestas representam, para a região onde ocorrem, o mesmo papel que a vegetação de cerrado representa para os chapadões centrais da América do Sul, só que o Cerrado parece ser bonsai das antigas sequoias.
Não se pode levar adiante qualquer estudo sobre o Cerrado, se não se levar em consideração o fogo, elemento com o qual essa paisagem está intimamente associada. Apesar da sua importância para o entendimento do Sistema Biogeográfico, a ação do fogo no Cerrado é ainda mal conhecida e geralmente marcada por questões mais ideológicas que científicas. Também não se pode conduzir tal estudo com base apenas nas comunidades vegetais.
O estudo do fogo, como agente ecológico, será mais completo se também se observam as comunidades faunísticas e os hábitos que certos desenvolveram e que estão intimamente associados à sua ação, cuja assimilação, sem dúvida, necessita de arranjos evolutivos caracterizados por um relativamente longo.
Algumas observações constatam, por exemplo, que a perdiz (Rhynchotus rufescens), só faz seu ninho em macega, tufos de gramíneas queimadas no ano anterior. Visitando várias áreas de cerrado, imediatamente após queimadas, constata-se que, mesmo com as cascas das árvores e arbustos carbonizados superficialmente, há entre as cascas e o tronco intensa microfauna. Fenômeno semelhante acontece com o extrato gramíneo que, poucos dias após a queimada, mostra sinais de rebrota, que constitui elemento fundamental para a concentração de certas espécies animais.
O fogo é um elemento extremamente comum no Cerrado e de tal forma antigo que a maioria das plantas parece estar adaptada a ele. Ferry (1973), comentando de Rachid Edwards (1956), em áreas de campo limpo e cerrado, informa que a autora estudou especialmente as gramíneas, grupo que constitui a massa de vegetal baixa dos campos e no qual existe grande número de espécies tunicadas.
Rachid Edwards indica, neste mesmo trabalho, que as formações túnicas, são encontradas em plantas da vegetação baixa dos campos, como Gramínea, Cyperaceae, Iridaceae, Filicinae etc. Indica ainda que, segundo Bouillene (1930), ocorrem também em Velloziaceae, Bromeliaceae e Eriocaulaceae. As túnicas são envoltórios de pontos vegetativos e, em função, comparam-se aos catafilos que protegem as gemas dormentes. Tais elementos, além de protegerem contra a perda da água, são eficazes na proteção contra o fogo e contra o forte aquecimento por ele produzido.
A autora ainda trata dos sistemas subterrâneos (bulbos, rizomas, tubérculos e xilopódios), que também proporcionam às condições adversas. Arens (1958) afirma que o fogo é um fator que acentua o oligotrofismo, influindo dessa maneira sobre a conservação ou propagação do Cerrado. Já Goodland (1966) sugere que a ação do fogo sobre micro-organismos do solo é muito importante no Cerrado, porém pouco conhecida.
Na mesma linha de raciocínio, Coutinho (1956) informa que ação do fogo no Cerrado aumenta o vigor da vegetação herbáceo-subarbustiva, enquanto a arbustivo-arbórea o tem diminuído. Isso significa, de acordo com o autor, um aumento progressivo das áreas de campo sobre áreas de cerrado e cerradão.
Entretanto, quanto a essa observação, cabe considerar o seguinte: quanto à primeira parte da afirmação de Coutinho, nossas observações a corroboram integralmente. No entanto, quanto à segunda parte, é necessário tomar em consideração o aspecto da competição. Uma área onde a queimada não ocorre favorece o crescimento de gramíneas até alturas consideráveis, o que possibilita o enrijecimento de seus caules e a maturação em massa e dispersão de suas sementes, restringindo o espaço dos arbustos e das espécies arbóreas jovens, ao passo que a queimada, embora aumentando-lhe o vigor, restringe de certa forma sua área de dispersão, propiciando áreas ensolaradas e abertas para as plantinhas em formação.
Outro dado importante a destacar, quando se procura entender a ação do fogo ao longo da história, é que a ação do homem pré-histórico brasileiro não funcionou como elemento perturbador dessa paisagem, porque, além da ocupação do interior do Brasil ser um fato relativamente recente, era insignificante em termos populacionais para produzir perturbações em amplas escalas; suas ações revestem-se de caráter puramente local.
Nascimento (1987) assinala também que, ao longo do tempo, a ação do fogo no Cerrado deve ser buscada em causas naturais. O calor e as variações do albedo, sempre altos nas áreas do Cerrado, provocam intensos movimentos convectivos na atmosfera, onde a concentração da umidade e o forte gradiente térmico atmosférico montam rapidamente tempestades magnéticas caracterizadas pela intensidade dos trovões, relâmpagos e raios. (Esta matéria continua na edição 74).

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Altair Sales Barbosa – , Pesquisador do CNPq, Doutor em Antropologia e Arqueologia pela Smithsonian de Washington DC

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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