Investindo em um banco de águas

Investindo em um banco de águas

A Recarga Gerenciada de Aquíferos, que poderia ser vista como um fundo de investimento em nosso metafórico banco de águas, é utilizada em diversos países para garantir a segurança hídrica.

Imagine que uma civilização tenha sempre e apenas utilizado as águas dos rios e lagos; mas nunca as de poços, nascentes e cacimbas. As águas usadas seriam descartadas nos solos; e não nos rios de onde provêm a água para o consumo. Contudo, suponha que em uma crise hídrica alguém proponha usar as águas subterrâneas! De forma quase inversa, é isso o que ocorre no : usamos águas superficiais e subterrâneas e as descartamos nos rios, independentemente de sua origem.

Apesar de quase 80% da população brasileira ter o abastecimento público por águas superficiais, extraem-se mais 17,6 trilhões de litros de água subterrâneas por ano (quase 20.000 piscinas olímpicas por dia), através de 2,5 milhões de poços tubulares e de outros milhões de poços escavados e nascentes, para atender os diversos usos da demanda nacional. 

As águas subterrâneas possuem vantagens, como uma melhor qualidade natural (que dispensa tratamentos químicos) e um menor custo de operação que as superficiais. Além disso, costumam ser uma reserva confiável, especialmente em períodos de estiagem. Por estes motivos, mesmo pequenas cidades com ampla disponibilidade superficial acabam optando pelo recurso hídrico subterrâneo – e o mesmo para o seu uso na

Essas vantagens fizeram com que o abastecimento público com as águas subterrâneas fosse uma prática comum na Europa, como na França (65%), Alemanha (70%), Itália (80%) e Dinamarca (100%). E no Brasil, esses benefícios têm multiplicado a perfuração de poços em áreas urbanas – para condomínios, serviços e indústrias.

O Brasil é repleto de volumosos rios em seu território. Porém, nem todos os brasileiros vivem próximos a eles: milhões vivem em regiões semiáridas ou que sofrem racionamentos recorrentes por diferentes motivos. Ao mesmo , o país também está sobre duas das maiores reservas subterrâneas do : o Alter do Chão (na ) e o Sistema Aquífero (SAG). A grande vantagem do SAG, do ponto de vista estratégico, é que ele é um grande manancial sob uma grande demanda por água.

O Guarani se estende por oito estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, além de Paraguai, Uruguai e Argentina. O SAG não é um grande lago subterrâneo, com bordas delineadas e um nível equilibrado, mas um reservatório de águas em camadas de arenito intercaladas, com diferentes permeabilidades – e por isto considerado um sistema. A maior parte deste é confinado, com pequenas áreas de afloramentos – onde há acesso mais fácil, tanto para a explotação (extração para o uso) e recarga, mas também mais vulneráveis às contaminações. As profundidades e espessuras do SAG variam: por exemplo, na região de Bauru, no interior do estado de , os poços do Guarani explotam suas águas (em área confinada) à cerca de 250 m de profundidade e abastecem cerca de 70% da população. 

As águas subterrâneas podem ser encontradas e explotadas em diferentes profundidades. Porém, enquanto as águas de aquíferos rasos e livres (não confinados) podem ser rapidamente repostas com as chuvas, na parte confinada (como o caso de 80% da área do SAG) não há recarga direta e a sua reposição pode levar milhares de anos – contendo assim as chamadas “águas fósseis”.

Um aquífero é como um banco de águas: se os saques são maiores que os depósitos, há prejuízos neste balanço hídrico. E, assim como um banco, isto exige uma adequada gestão: sobre a sua qualidade e quantidade. Assim como qualquer poupança, os aquíferos permitem saques maiores que os ingressos por tempo limitado. Mas, estes também possuem uma grande capacidade de armazenamento, o que pode permitir acumular rendimentos gerados por – uma janela de oportunidade disposta pela natureza e que deve ser usada. Apesar de aquíferos livres serem naturalmente recarregadas com o ciclo das águas, em áreas urbanas acabam sofrendo perdas, como juros, devido a impermeabilização das superfícies.

A Recarga Gerenciada de Aquíferos, que poderia ser vista como um fundo de investimento em nosso metafórico banco de águas, é utilizada em diversos países há mais de 50 anos para garantir a segurança hídrica. Apesar de o Brasil já possuir regulamentações relacionadas, a técnica ainda não é efetivamente aplicada no país. A recarga de um aquífero pode ocorrer de forma natural ou mesmo de forma não proposital, por vazamentos de redes de água e esgotos. Assim, a Recarga Gerenciada visa esta reposição, de forma intencional e controlada – seja por infiltração superficial ou com injeção direta no aquífero (necessária nos confinados).

No Brasil, constitucionalmente as águas subterrâneas são bens dos estados, independentemente de sua extensão – ao contrário do que ocorre com as águas superficiais. E por resoluções, os aquíferos transfronteiriços ou subjacentes a estados devem ser gerenciados com a integração de órgãos gestores; e estes órgãos devem estimular os municípios para a recarga dos aquíferos. Os estados podem inclusive incentivar a recarga artificial de aquíferos por entidades privadas, pessoas físicas ou jurídicas – os denominados empreendedores.

Na realidade brasileira, enquanto os piscinões focam na contenção das cheias dos rios, trincheiras ou barreiras de infiltração poderiam auxiliar no controle centralizado das chuvas – e na recarga dos aquíferos rasos e livres. Jardins de chuva e outras Soluções Baseadas na Natureza podem atuar também de forma descentralizada. Já para o caso do SAG, precisaria ocorrer através de poços de injeção – como já ocorre em Madri, na Espanha.

Com milhões de poços explotando e nenhum repondo, é de interesse coletivo a manutenção da segurança hídrica. E em um cenário de aumento de demandas, somado às , as crises hídricas se tornarão cada vez mais frequentes. As águas subterrâneas, manejadas adequadamente, são uma gigantesca poupança ainda pouco usada no Brasil – e que podem nos ajudar a equacionar o balanço entre ofertas e demandas.

Leonardo Capeleto – Engenheiro Ambiental. Ricardo Hirata – Professor titular do IGc. Fonte: O Eco. Foto: Victor J. Zomer.

Este artigo não representa a opinião da Revista e é de responsabilidade do autor.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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