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‘Ah, Kambô Kambô Ho!’: Uma cerimônia de ayahuasca me mostrou os possíveis riscos da medicina

‘Ah, Kambô Kambô Ho!’: Uma cerimônia de ayahuasca me mostrou os possíveis riscos da medicina –

Há anos era a mesma coisa: durante as cerimônias de ayahuasca, sentia uma forte impaciência, que me levava a cantar, balançar o maracá, ou me agitar de qualquer maneira, antes mesmo da manifestação plena da miração.

No dia-a-dia, uma coisa me perturbava imensamente: ao por exemplo procurar uma chave, um isqueiro ou um documento que fosse, meu coração começava a se agitar e era tomado de um desconforto muito grande. ‘Bem, isso sou eu, mas é também algo mais’, pensava.

Minha intuição me levou a buscar, do outro lado da fronteira, o conhecimento do povo Shipibo. Com população estimada em mais 20 mil pessoas (alguns relatórios falam em até 35 mil), em cerca de 140 comunidades é o grupo Pano mais numeroso. Em muito sua cultura se assemelha com os grupos pano do Acre, mas por terem se estabelecidos nas margens de um grande rio como o Ucayalli, ao invés de zonas interfluviais como os grupos Pano no Acre, sua cultura ganhou os contornos de uma cultura difundida por uma extensa zona.

Na verdade, ao visitar os Shipibo, tenho a sensação de que deve ter havido no passado algo como uma civilização Pano a qual pertenceram povos dos lados da fronteira, criada séculos depois, pelo homem branco. Inclusive consta em um mapa etnográfico do padre Tastevina identificação de grupos Shipibo na região do Juruá no século XIX.

Com diferenças mas também muitos elementos culturais em comum, esses povos por vezes tiveram também seus conflitos, talvez de modo análogo com que guerreavam as cidade-estados da Grécia Antiga, mas ainda assim, compartilhando suas crenças e visões de mundo, mitologias e sistemas de conhecimento.

Kambo10 dedos kambô 1 www.herpetofauna.com .br

Acredito ser por conta de sua predominância numérica ou talvez mais ainda pelo intenso contato com outros povos, que o sistema de conhecimentos tradicionais dos Shipibo tenha se desenvolvido a um nível prático ao ponto de seus curandeiros não serem vistos pela população local apenas como um exotismo.

Trata-se de medicina popular, a qual recorrem pessoas de Pucallpa, Lima e Cusco, por exemplo. Quiçá os curandeiros Chipináguas, descritos pelos cronistas incaicos, já não percorriam as altitudes realizando atendimentos ainda durante o Império Inca. Se do lado brasileiro, a colonização branca forçou os povos indígenas a um isolamento entre si, o fluxo de conhecimento entre diferentes culturas e pisos ecológicos parece ter sido uma constante dentro da lógica do Tawantinsuyo.

Esses sistema utiliza um sem-número de plantas medicinais. Mas o kambô, medicina de origem animal, não é uma delas.

Meu contato foi com um jovem Xamã, ou nas palavras dele, Curandeiro. Diego tem apenas 31 anos, mas nasceu imerso dentro da cultura do curandeirismo vegetalista, e tem se dedicado ao aprendizado há doze anos.

Diego dizia-me que eu não necessitava de longas dietas, que eu já as tinha e que seria apenas caso de ‘arreglar-las’ e ‘endereçá-las’, pois estavam como que emaranhadas em um ‘bolão’.

Sendo assim, dirigi-me à comunidade Vista Alegre no rio Paichitea, afluente do Ucaially, para uma curta dieta de dez dias.

Deu início ao tratamento com o ‘Chumpá’ (não confundir com o chumpê – floripôndio). Trata-se  um cipó de odor semelhante ao cravo . Nos dias subsequentes, foi administrado o ‘Ajo Sacha’ (‘Alho em folha’, em uma tradução aproximada) e a Guayusa (também uma folha perfumada, de limpeza). A cada dieta, na noite seguinte, Diego conduzia uma cerimônia de ayahuasca, onde as plantas são ‘icaradas’, ou seja, canta-se para que suas propriedades manifestem-se como medicina no corpo do paciente.

Na terceira cerimônia, senti muito fortemente, uma palpitação no coração que foi se intensificando até o ponto em que mal conseguia respirar. Foi quando me dei conta, de que aquele efeito não era da ayahuasca que havia tomado, mas reproduzia ou emulava o efeito do kambô.

Aquilo deveras me surpreendeu. A última vez que tomara Kambô fora há cerca de três anos, com um pajé katukina. Contudo, a miração não me conduzia a esta ocasião, mas há cerca de 18 anos atrás, tempo de minha chegada à Amazônia, quando fiz um uso bastante frequente da medicina, por cerca de um ano. A miração mostrava-me que o uso continuado, sem as adequadas dietas e resguardos, resultaram em um efeito descontrolado, que permanecia em níveis muito internos do corpo.

Kambo7 na madeira kambô 1 www.herpetofauna.com .br

Tive a sensação de que alguma das válvulas de meu coração estava dilatada em relação às demais, o que causava uma sensação de coração inchado e trazia uma sufocamento. Em alguns momentos parecia que o coração iria explodir. O que assustava era que aquele efeito não se dava durante uma aplicação de kambô, mas em uma cerimônia de ayahuasca, muitos anos depois. Ou seja, havia um efeito residual, que permanecia no corpo.

Comuniquei a sensação a Diego que passou a ‘icarar’ o kambô. Dizia-me que estava como veneno, e que estava a convertendo para medicina.

Na mesma hora, me veio aquele velho postulado de que a diferença entre um veneno e o remédio é a dose. Mais do que apenas a dosagem, as dietas e resguardos subsequentes são essenciais para que uma substância possa ter efeito positivo e não negativo, no corpo. Mais ainda quando se trata de uma substância da potência do kambô. Dentro de sistema de conhecimento Shipibo, uma substância só torna-se medicina quando ‘icarada’, ou seja, quando se canta para essa medicina, e simultaneamente também para o corpo do paciente. Dentro dessa visão somente assim é desperto seu potencial curativo e pode trazer benefício.

Pensei também, ser muito improvável que a própria substância em si, pudesse ainda estar em meu corpo 18 anos depois. Ou mesmo três. Mas isso somente testes poderiam identificar. O que a miração mostrava-me era se tratar muito mais de uma memória específica do efeito, guardado em receptores neurais no corpo, que sob condições específicas poderiam ser acionados ese manifestar, ainda que em níveis internos estivesse sempre presente. Pensei também que nem tudo poderia ser atribuído ao kambô, mas à minha própria estrutura psíquica, com o kambô atuando sobre ela.

Não quero com esse texto contribuir para uma ‘negativação‘ dokambô. Centenas de pessoas relatam melhoras em suas condições de saúde que variam desde gastrites até dores crônicas.

Destaco também que o que foi apontado pela miraçãofoi que minha própria imprudência, por ter tomado kambô seguidamente e segundo minha própria vontade por pessoas talvez tenha sido a causa desse efeito. Tampouco cumpri resguardos que considero necessários. Isento de qualquer responsabilidade as pessoas que me aplicaram o kambô nesse período e a assumo completamente.

Outro ponto que vale mencionar também é que a vida de um índio na floresta já é, em si, uma ‘formação’. Longas caminhadas na mata, sol e atividades físicas intensas desde a mais tenra idade, mudanças bruscas de temperatura e mais uma série de outras especificidades da vida indígena que suponho, tenham efeito sobre questões como pressão sanguínea, pulsação e a ‘calibragem’ das veias.

Vejo-me compelido a escrever este relato pessoal, movido principalmente pelo senso de responsabilidade. Meu TCC de graduação em jornalismo foi sobre a expansão do uso do kambô nos centros urbanos do país, que naquele tempo vinha começando a ser popularizado  entre a população não-indígena. Então de certo modo, fui também um dos responsáveis pela sua difusão. Somente por esta razão que considero meu dever compartilhar essa experiência pessoal como forma de alerta.

Hoje, com a medicina difundida não apenas no Brasil, mas já em todo continente, EUA e Europa, e com o relato de pelo menos duas mortes por efeito direto ou indireto do uso de kambô, acho prudente, e necessário, apontar possíveis riscos para o seu uso indiscriminado.

Pesquisas científicas sugerem a eficácia do kambô para o fortalecimento do sistema imunológico, entre outras coisas, o que significa que vale a pena continuar os estudos. Para quem busca a medicina em sua forma tradicional, vale também saber de possíveis resguardos e restrições, quantidade, frequência e etc. Sobretudo, respeitar os próprios limites do corpo, muitas vezes acostumado à vida mais ou menos sedentária das cidades.

O Kambô, é uma medicina forte e sagrada que pode inclusive, sem dúvida, salvar vidas, e justamente por essa razão deve ser tratada com o respeito que merece.

PS: Quanto ao trabalho dentro do conhecimento Shipibo com a ayahuasca, deu resultado: na cerimônia seguinte, não tive mais aquele efeito, e posteriormente não senti mais a impaciência e palpitação descontrolada de antes.

ANOTE AÍ:

Leandro Altherman

Leandro Altheman é jornalista, formado pela ECA-USP. Radicado há 18 anos em Cruzeiro do Sul -Acre, é autor do livro Muká, a raiz dos sonhos – um relato pessoal sobre a imersão do autor no universo sagrado do povo  Yawanawá. Para saber mais sobre o trabalho de Leandro Altheman, visite seu blog: www.terranauas.blogspot.com

Leandro nos foi apresentado pelo indigenista acreano Jairo Lima, parceiro da Xapuri. Jairo, também escritor, publica seus textos semanais no blog www.cronicasindigenistas.blogspot.com.br . Vale a pena conferir!

As fotos da rã kambô são da www.herpetofauna.com.br

Muká

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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