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Ailton Krenak: Chico Mendes projetou uma Utopia

Ailton : Chico Mendes projetou uma Utopia

Esses dias ando pensando muito em meu burum Ailton Krenak que, segundo Leonardo Boff, é o próprio cara. Um pouco é saudade dele, da Ni e das , daquela vida boa que escolheram pra si naquela vila serena, rodeada por natureza, parques, cachoeiras e montanhas,  lá na serra do Cipó, no interior de Minas Gerais.

Por Zezé Weiss

Outro pouco é saudade da coragem daquele jovem abusado que pintou o rosto de jenipapo na Constituinte, da liderança que topou criar, com Chico Mendes, uma inusitada aliança entre indígenas e , do pintor brilhante que fez a capa do “Vozes da Floresta”, do cidadão antenado que aposta na internet para engajar a juventude indígena na defesa de sua identidade, sua cultura, seus direitos.

Penso, também, que chegamos aos 33 anos do assassinato do Chico Mendes ( em 22 de dezembro de 2021) e, de saudade do meu burum e em do Chico, publico, aqui, o depoimento de Ailton Krenak, um misto de saudades, companheirismo, luta e esperança,  para o livro Vozes da Floresta (Editora Xapuri, 1a Edição, 2008),  produção coletiva que organizamos no aniversário de 20 anos da partida do Chico: 

“Eu hoje fico pensando como a agenda da Aliança [dos Povos da Floresta] tinha um apelo tão forte e tão mobilizador. Eu acho que esse apelo tinha a ver um pouco com a novidade da nova Constituição.  Foi nesse ambiente que o Chico Mendes projetou mais do que ideias, ele projetou uma utopia.

Com sua presença calma, com o seu próprio tom de voz – nunca tinha exaltação na fala dele e, mesmo quando ele falava das injustiças, das coisas duras que aconteciam com ele e com a floresta, a maneira dele expressar era sempre tão amorosa e tão boa que, em vez de desespero, o que o Chico passava sempre era a esperança.

A presença do Chico como uma pessoa da paz e do diálogo, naquele momento em que o Brasil vivia o seu processo de redemocratização, ficou marcada de forma muito especial naquela plantinha que nós chamamos de Aliança dos Povos da Floresta, que brotou naquele ambiente de mudança. 

Apesar de todas as dificuldades, porque nada foi fácil e nem a gente sabia se a semente que nós plantamos ia vingar ou não. Quando ainda não se pensava na articulação de vários setores da sociedade, a nossa Aliança juntou índios, seringueiros, ribeirinhos e mais um monte de gente em uma só bandeira, em um espaço acolhedor para a prática da parceria e da solidariedade.

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Eu me entusiasmei tanto com aquela energia positiva, que eu acho que é essa energia que me motiva até hoje. Fiquei tão feliz com esse “caminho” quando a gente abriu aquela Embaixada dos Povos da Floresta em , no governo da Luiza Erundina como prefeita, quando a Marilena Chauí, o Paulo Freire, o Gianfresco Guarnieri e um monte de gente interessante se tornou parte do governo municipal, passando para os nossos povos e para a nossa cidadania claros sinais de esperança.

Aqueles foram tempos de alegria por ver crescer a luta civil, por ver como ia ficando forte a luta cidadã, com os índios e os seringueiros tendo até mesmo uma embaixada na maior cidade do País. E uma embaixada que empolgava as lideranças espalhadas pelo Brasil afora apenas pelo fato de existir.

Isso foi em 1991,e eu penso que a nossa Embaixada dos Povos da Floresta foi um pouco o embrião dos pontos de cultura que o Brasil tem hoje. Mas a nossa embaixada não era só um ponto de cultura como os que existem agora, trabalhando para promover a inclusão social entre jovens de uma sociedade desesperançada. 

Na nossas embaixada a agenda era feita pelos próprios povos da floresta, que naquela época eram chamados de povos da floresta mesmo, porque ainda não esse esse conceito, que apareceu  no final dos anos 90, de chamar índio, seringueiro e ribeirinho de populações tradicionais. Antes era uma coisa mais forte, de gente mesmo, gerando uma autoestima danada.

Ao mesmo tempo em que juntávamos gente das aldeias e das reservas extrativistas em torno da Embaixada dos Povos da Floresta, também fizemos em Goiás, na região Centro-Oeste do Brasil, o Centro de Formação e Apoio a Pesquisas Indígenas, com a Universidade Católica de Goiás. 

O Centro tinha o saudoso companheiro Wanderley de Castro, que vinha de longas jornadas com Chico Mendes pela floresta, enquanto realizava com o diretor Adrian Cowell a série que balançou a opinião pública mundial com as denúncias sobre a devastação da Amazônia, intitulada “A Década da Destruição,” que mostra o Chico fazendo os empates nas áreas onde hoje estão instituídas as reservas extrativistas do Acre.

Esse Centro de Pesquisas em Goiás foi o ponto de partida para os programas de formação de educadores e pesquisadores indígenas e até mesmo par aos agentes agroflorestais que existem hoje País afora. Sem essa trajetória, não teríamos aberto a porta das universidades para os povos da floresta.

Foi com essa energia empreendedora que consolidamos na região do Alto Juruá uma iniciativa como a dos Ashaninka, que levantaram a sua organização Apiutxa e o Centro Yorenka Átame, de onde o Benki [Ashaninka] e seus companheiros mostram para o uma alternativa que extrapola os limites da Terra Indígena Ashaninka e da Reserva Extrativista do Alto Juruá.

Ali, nas curvas do Rio Juruá, descortina-se essa nova experiência envolvente dos Ashaninka, não só com o seu próprio povo, ma também com as vilas e comunidades do seu entorno, abrindo novas perspectivas para o desenvolvimento de uma economia apoiada na riqueza de nossas florestas e nas práticas apoiadas no conhecimento tradicional. Uma associação entre o conhecimento tradicional e as novas tecnologias que a meu ver expressa a síntese do legado que o Chico nos deixou.

Legado que vamos traduzindo a cada década em ações de afirmação e orgulho de sermos os povos das florestas e que vamos usando para empolgar outros povos que vivem no Cerrado, como os nossos parentes Xavante, Krenak, Xacriabá, Suruí, e na Mata Atlântica, como nossos irmãos .

E foi seguindo com os ideais do Chico, que acreditava na importância de informar o mundo sobre a nossa Aliança, que fizemos aquela turnê com o Milton Nascimento para a Califórnia, Washington e Nova York. A gente fazia aquela Semana da Amazônia em Nova York, transformando todos os anos, a cada Semana da Amazônia, aquele momento e aquele nosso espaço da Amanaka´a em caixa de ressonância para mandar o nosso recado para o mundo inteiro.

Eu me sinto orgulhoso de ter participado de tudo isso com uma turma tão comprometida com o entendimento de que a floresta é uma lugar onde a vida se realiza de maneira plena. 

Durante toda essa jornada, a presença do Chico foi sempre muito viva e muito importante. Até hoje a presença dele é tão forte e tão inspiradora que muitas vezes sinto que está bem aqui junto com a gente. 

Mas hoje, [passados quase 30 anos], tento, com uma certa distância, recontextualizar essa nossa história e esse legado do Chico para repassá-lo à geração que agora chega, que se acerca de nós através de nossos filhos e netos. Ao fazer essa reflexão, penso sempre no Chico Mendes como um ser humano curioso, inquieto e instigador, que estava sempre buscando alternativas para melhorar a qualidade de vida dos povos da floresta. 

No Encontro dos Povos da Floresta realizado em 2007 em Brasília, foi este o apelo que emergiu: não somente a floresta amazônica, mas todas as florestas são motivo e causa de nossa mobilização e de nossa luta pela proteção do planeta e de sua biodiversidade.

Em todos os biomas, temos riquezas incalculáveis para dar suporte à vida, e fazer o uso responsável desses recursos, protegendo essas riquezas para as futuras gerações, é nossa principal missão. [José] Lutzemberg, que foi um amigo e incentivador do Chico e da Aliança, dizia que éramos jardineiros da Natureza. Eu completo dizendo que somos os guerreiros da floresta, porque seguimos firmes na decisão de fazer viver para sempre o legado de Chico Mendes e da Aliança dos Povos da Floresta. 

Entrando para o século XXI, comecei a refletir sobre essas novas tecnologias, como a internet, que estavam se firmando no horizonte. Junto com outras pessoas, vi na internet uma tecnologia útil para dar voz aos nossos povos da floresta. Depois de muito pensar, eu acho que conseguir sintetizar o que estávamos querendo fazer com a internet: um empate virtual. Como agora os tempos são outros, em de vez de fazer empate no meio da floresta, podemos fazer “empates virtuais” no mundo inteiro!

E hoje, 20 anos depois [agora já são quase 30!] daquela tragédia que tirou o Chico desta Terra, eu estou convencido de que estamos nos apropriando dessa tecnologia de ponta para levar a mensagem dele e dos povos da floresta par todo lado, sem cerca, sem muro, e sem fronteira. 

Isso é o que nós estamos fazendo com a Rede Povos da Floresta, que começamos a pensar em 1999 e que virou uma iniciativa pública em 2002. Já no ao 2000, nós instalamos os primeiros pontos de internet em comunidades indígenas da Mata Atlântica, aqui no Sul, e lá no Acre, entre os Kaxinawa, os Yawanawa e os Ashaninka.

Em 2003, a Rede Povos chegou até o norte de Minas, ao povo Xacriabá. Também em 2003, começamos a trabalhar na Reserva da Biosfera da Serra do Cipó, em parceria com o Conselho de Democratização da Informática (CDI). Lá atrás, um dia, o Rodrigo Baggio do CDI me perguntou sobre o que achava de levar a internet para as aldeias indígenas. Eu pensei muito sobe esse caminho, porque chegar com a internet significa chegar com um computador e com um mundo novo em uma cultura própria. 

Hoje eu acho que é importante respeitar o entendimento e o interesse de cada comunidade, porque tem povo indígena  que acha que a internet é uma invasão cultural, mas tem povo indígena que quer usar a internet para divulgar seus valores culturais.

Foi pensando nisso que a Rede Povos ajudou a organizar a Primeira Conferência da Sociedade da Informação em Brasília, em 2003, em parceria com o Comitê Intertribal  e com o Ministério das Relações Exteriores. A nossa Conferência serviu depois como fase preparatória para a grande conferência sobre a Sociedade da Informação que a ONU [Organização das Nações Unidas] preparou em 2005, na qual o Comitê Intertribal ficou como ponto focal e a Rede Povos ficou como interlocutora com a América Latina até hoje.

Do nosso ponto de observação, a gente pode ver que no Brasil este diálogo está avançando mais que nos nossos países vizinhos, mas que ainda existe o desafio grande de ampliar os pontos de virtual instalados para abrir novos horizontes, na medida em que as comunidades se sintam prontas para isso.

No momento [em 2008] estamos pensando sobre como promover o diálogo dos pontos de cultura criados pelo governo federal com a metodologia desenvolvida pela Rede Povos da Floresta. Nós queremos ajudar a encontrar um jeito para fazer com que essa política pública seja melhor utilizada para a formação de lideranças, para a capacitação das comunidades frente ao paradigma de ter que encontrarem, elas mesmas, uma vez mais, caminhos para um novo modelo de desenvolvimento sustentável.

Com isso, buscamos sempre manter uma ação coerente com os sonhos do Chico, o nosso companheiro mais ilustre da jornada, porque eu acho que o Chico não gostaria de ver os seus companheiros voltados para um passadismo. Como homem de visão, o Chico deve estar feliz por saber que nós, para honrar os ideais dele, estamos utilizando novos meios de comunicação para realizar a missão que um dia ele tão generosamente compartilhou conosco.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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