Ilegalidade e mentira contaminam o projeto do Linhão entre Manaus e Boa Vista
Em editorial, ISA critica governo Temer que, ao aderir a boicote de Trump à Venezuela, expôs a segurança energética de Roraima e jogou o ônus político sobre os Waimiri Atroari, povo marcado por tragédias e massacres.
Já vem de longe a novela da implantação de uma linha de transmissão de energia entre Manaus e Boa Vista, acompanhando o eixo da BR-174, que atravessaria a Terra Indígena Waimiri-Atroari por 125 quilômetros na região de fronteira entre o Amazonas e Roraima. A obra vem sendo discutida há dez anos, mas só recentemente a Eletronorte, detentora de 49% das ações da empresa responsável pelo projeto, informou aos índios sobre a sua existência. Veja mais aqui.
A obra consiste na construção de torres gigantescas a uma distância segura em relação à estrada, implicando em extenso desmatamento ao longo de todo o trecho rodoviário e dificultando a conexão entre as partes do território separadas pela estrada e todos os processos ecológicos envolvidos. A frequência de pessoas estranhas, tanto para a construção quanto para a manutenção do “linhão”, trará o risco permanente de invasão e de transmissão de doenças.
Os Waimiri foram quase extintos no início dos anos 70, numa guerra movida contra eles pelo Exército para a abertura daquela rodovia, durante o regime militar. Posteriormente, foram impactados pelo alagamento provocado pela Usina Hidrelétrica de Balbina, um dos maiores desastres ambientais. Também foram afetados com a exploração de cassiterita pela mineradora Paranapanema numa mina situada em área subtraída da Terra Indígena quando da sua demarcação, em junho de 1989.
Apesar disso tudo, Waimiri Atroari é uma das Terras Indígenas mais preservadas da Amazônia. O eixo da estrada, o lago de Balbina e a vizinha Reserva Biológica do Uatumã são monitorados pelo Programa Waimiri-Atroari (PWA) , criado a partir de um convênio entre a Funai e a Eletronorte com o objetivo de apoiar a recuperação dos índios sobreviventes ao desastroso contato e proteger o seu território oficialmente demarcado. Eles haviam sido reduzidos a menos de 300 pessoas, com toda a geração então adulta tendo sido dizimada, e hoje já somam mais de duas mil pessoas vivendo conforme sua cultura em dezenas de aldeias. Veja aqui.
Roraima é a única unidade da federação que permanece desconectada do sistema elétrico brasileiro. O seu abastecimento é sustentado por usinas termoelétricas caras, ineficientes e poluentes, e por energia hidrelétrica trazida da Venezuela através de outro linhão. O estado sofre com sucessivos apagões decorrentes da ineficiência das termoelétricas e da inconstância do fornecimento pela Venezuela. Por isso existe em Roraima um clamor urgente pela construção do novo linhão, exacerbado pela conjuntura eleitoral.
Nos últimos meses, dois presidentes da Funai acordaram com os Waimiri agendas de reuniões sobre o linhão, conforme o protocolo de consulta definido pelos índios. No entanto, as agendas foram inviabilizadas pela demissão sumária dos dois presidentes pelo governo Temer, a pedido da bancada ruralista. Então, o ministro de Minas e Energia, Moreira Franco, o “Angorá” da Odebrecht, tentou editar um ato normativo interministerial para determinar a realização da obra sem consulta aos índios, por se tratar do interesse nacional em vista da crise que assola Roraima com a presença de milhares de refugiados venezuelanos.
O subtexto da portaria seria o de que o Ministério da Defesa se incumbiria de implementar a obra na marra, à revelia dos índios, o que não agradou aos militares, e a portaria não foi editada.
O governo decidiu, então, fracionar o licenciamento ambiental da obra para acelerá-la nos trechos situados fora da terra indígena, criando o “fato consumado” que tornaria obrigatório o trecho dentro da terra tradicional. Tal “solução”, contudo, viola a legislação que rege o licenciamento ambiental. Ao mesmo tempo, passou a ameaçar os índios com o corte dos recursos destinados ao PWA pela Eletronorte como compensação por Balbina, a menos que eles aceitem o início das obras do linhão. E também ignora uma decisão liminar da Justiça Federal do Amazonas, em pleno vigor, que condiciona qualquer obra à consulta prévia aos índios, conforme determina a Constituição e a Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.
Outro subtexto – de que a construção do linhão é fundamental para a segurança energética de Roraima diante da crise humanitária que enfrenta – revelou-se uma imensa farsa. Primeiro, o Ministério de Minas e Energia tentou fazer crer que o suprimento inconstante da energia vinda da Venezuela estava relacionado à crise política do país vizinho, mas o jornal O Globo revelou que o Brasil acumula uma dívida – que já chega a R$ 125 milhões- por não pagamento.
Diante da perplexidade geral com essa informação, o Ministério de Minas e Energia passou a insinuar que os pagamentos pela energia não estavam sendo feitos devido à desestruturação do sistema financeiro venezuelano, mas depois ficou claro que o calote se devia ao temor de retaliação devido ao boicote econômico imposto pelo governo Trump à Venezuela. Ou seja: o governo Temer aderiu silenciosamente ao boicote, expondo a segurança energética de Roraima e jogando o ônus político sobre os índios.
Tentando minimizar a irresponsabilidade do governo, o operador do sistema elétrico divulgou uma nota afirmando que os geradores térmicos de que Roraima dispõe são suficientes para assegurar o abastecimento de energia mesmo no caso de corte no suprimento venezuelano por falta de pagamento. Significa que em nenhuma hipótese se justifica a construção do linhão na marra, com a violação do direito dos índios à consulta prévia.
O governo Temer, que continua devendo explicações ao povo de Roraima e à opinião pública em geral, perdeu totalmente a confiança dos Waimiri-Atroari para conduzir o processo de consulta devido à pretensão de construir o linhão. Também contaminou com insegurança jurídica o próprio projeto, sujeito a todo tipo de contestações judiciais pelas diversas ilegalidades verificadas.
ANOTE AÍ
Fonte: Instituto Socioambiental