Lula: Não vou me matar nem fugir do Brasil

Lula: Não vou me matar nem fugir do Brasil

Eu vou brigar até ganhar, diz Lula sobre candidatura em entrevista à Folha de São Paulo 

“A minha educação é a de uma [a , dona Lindu] que viveu e morreu analfabeta. E ela dizia “não baixe a cabeça nunca a ninguém. Nunca roube uma laranja mas não baixe a cabeça”. E é isso o que vai me fazer seguir em frente.” 

O ex-presidente Lula recebeu a Folha em sua sala no Instituto Lula, na terça-feira (27 de fevereiro), para uma rara entrevista exclusiva.
Com a prestes a decidir se ele vai ou não preso por causa da condenação no processo do tríplex, o ex-presidente afirma que é “um homem muito tranquilo, que sabe o que está sendo traçado para ele”.

Ainda assim, Lula rechaça abrir qualquer discussão sobre uma candidatura alternativa à dele no PT. “Se eu fizer isso, minha filha, eu tô dando o fato como consumado.”

Antes de começar a entrevista, o petista passou os olhos por um sumário que a assessoria havia feito para ele sobre a entrevistadora.

“Busca esta entrevista faz anos, cercando amigos e conhecidos do presidente para isso. Ela tentará: interromper, questionar o discurso, apontar contradições, tentar que assuma erros e investir muito em plano B”, dizia o resumo.

Com o gravador já ligado, Lula disse: “A senhora pode perguntar tudo o que vossa excelência quer perguntar. Tá? Não tem pergunta sem resposta. A não ser que eu não saiba. Se eu não souber eu vou dizer ‘não sei’ e você vai perguntar para um candidato que sabe”.

A seguir, um resumo da conversa.

Folha – O ex-ministro Ciro Gomes (PDT-CE) fala em voz alta o que muita gente murmura e pensa: ninguém no acredita que o senhor poderá ser candidato a presidente. Quando chegará a hora de discutir o lançamento ou o apoio a um outro nome?

Lula – Se eu não acreditasse na possibilidade de a Justiça rever o crime cometido contra mim pelo [juiz Sergio] Moro, [que o condenou à prisão] e pelo TRF-4 [Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que confirmou a sentença], eu não precisaria fazer . Quem sabe eu virasse um moleque de 16 anos e fosse dizer que só tem solução na luta armada. Não. Eu acredito na democracia, eu acredito na Justiça. E acredito que essas pessoas [Moro e desembargadores] mereciam ser exoneradas a bem do serviço público. Porque houve mentira na denúncia [feita pela] imprensa [que revelou a existência do tríplex], no inquérito da Polícia Federal, na acusação do Ministério Público Federal, na sentença do Moro e na confirmação do TRF-4. Então o que eu espero? Que o Supremo Tribunal Federal [que deve julgar habeas corpus em que Lula pede para não ser preso] analise o processo, veja os depoimentos, as provas e tome uma decisão. Por isso tenho a crença de que vou ser candidato.

O STF não entrará no mérito da sentença. E não haveria nem tempo, caso isso ocorresse, para garantir a candidatura.

Eu vou dizer uma coisa: eu só posso confiar no julgamento se ele entrar no mérito. A Justiça não é uma coisa que você dá 24 horas, 24 dias ou 24 meses. Ela tem o tempo necessário para fazer a investigação correta e punir quem está errado. E quem deveria ser punido era o Moro, o MPF, a PF e os três juízes que fizeram a sentença lá. A segunda questão: não acho que ninguém acredita na possibilidade de eu ser candidato. Era mais fácil o Ciro dizer “tem gente que não quer que Lula seja candidato”. E ele quem sabe se inclui nisso. Só tem unanimidade hoje no meio político: as pessoas não querem que o Lula seja candidato. O Temer não quer, o Alckmin não quer, o Ciro não quer. Eles pensam: “ele [Lula] vai para o segundo turno e pode até ganhar no primeiro. Se ele não for candidato, em vez de uma vaga no segundo turno, podemos disputar duas”. Aumenta a chance de todo mundo. Eu respeito que todo mundo seja candidato. Até o Temer resolveu ser! Qual é a aposta dele? É a de defender os seus três anos de mandato.

E é importante ter em conta que o Temer teve uma vitória quando derrubou o golpe que a TV Globo, o [ex-procurador-geral Rodrigo] Janot e o [empresário] Joesley [Batista] tentaram dar nele. Aquele golpe tinha como pressuposto básico o Temer cair, o Rodrigo Maia [presidente da Câmara dos Deputados] assumir a presidência e o Janot ter um terceiro mandato [na PGR].

O senhor acha que a Globo tentou dar um golpe?

Acho. Eu acho.

E por que isso ocorreria?

Porque era importante manter o Janot. Era importante tirar o Temer. E era importante colocar o Rodrigo Maia. Isso para mim tá claro.

Mas por que Rodrigo Maia se o Temer tem uma plataforma…

[Interrompendo] O Temer se prestou a fazer o serviço do golpe. Mas não era uma figura palatável, e houve uma tentativa de golpe. Senão, me explica o que aconteceu.

Não pode ser jornalismo simplesmente?

Jornalismo de quem?

Da Rede Globo.

Você acha que na Globo [que publicou a primeira reportagem sobre a delação da J&F] alguém faz jornalismo livre? O jornalista decide e faz uma denúncia como aquela que foi feita contra o Temer? No mesmo dia já tinha jornalista apostando na renúncia do Temer. E já tava se discutindo quem ia assumir e o que ia acontecer. Ora, o Temer resolveu enfrentar. Teve a coragem de desmascarar o Janot, o Joesley e ficou presidente. E ainda ganhou duas paradas no Congresso Nacional [para impedir que o processo contra ele no STF seguisse], não se sabe a que preço. A imprensa dizia que R$ 30 bilhões foram gastos, não sei quantos bilhões. Mas ganhou.

E o senhor o admira por isso?

Não. Eu continuo pensando o mesmo do Temer. Eu estou contando o fato. E o fato histórico não tem sentimentalismo. Tem uma fotografia.

O senhor hoje faz críticas à TV Globo mas, no governo, teve uma boa relação com a emissora.

Para não ser ingrato com os outros meios, eu vou olhar bem nos seus olhos e dizer: duvido que em algum momento da história desse país um presidente tenha tratado os meios de comunicação com a deferência e a “republicanidade” que eu tratei.
Eu tinha uma relação maravilhosa com o velho [Octavio] Frias [de Oliveira, publisher da Folha morto em 2007]. Eu tratei bem o Estadão. Eu tratei bem o Jornal do Brasil, a Globo, a Bandeirantes, o SBT, a Record. Você há de convir que tenho comportamento exemplar no meu tratamento com a imprensa brasileira. Mas acho que eles não são honestos na cobertura.

A Folha, mesmo nos bons tempos, nos anos 70, 75, quando começou a ser um jornal mais progressista, quando o pessoal de começou a ler, mesmo assim a gente sentia [no jornal] uma espécie de ojeriza de falar bem de uma coisa boa.
É uma necessidade maluca de não parecer chapa branca. Ah, se fez uma matéria boa hoje, amanhã tem que fazer outra dando um cacete.

O senhor fala “eles não me aceitam”. Quem são eles?

Ah, não sei. São eles. Eu não vou ficar nominando.

Nesse sistema em que “eles” mandariam, o senhor foi eleito, reeleito, fez uma sucessora e a reelegeu. Tinha uma convivência boa com construtoras e bancos. Como dizer que a elite é contra o senhor? 

Eu não tive uma relação boa só com esse setor que você falou. Eu tive uma relação boa com todos os segmentos sociais desse país. Eu tenho orgulho de dizer que o meu governo foi o período em que os empresários mais ganharam dinheiro, os trabalhadores mais ganharam aumento de salário, em que geramos mais empregos, em que houve menos ocupação no campo, na cidade, e menos greve. Eu trago comigo essa honraria de saber conviver com a sociedade brasileira. E de repente eu vejo o tal do mercado assustado com o Lula. E eu fico pensando, quem é esse mercado? Não pode ser os donos do Itaú. Não pode ser os donos do Bradesco, do Santander.

Uma coisa são os donos do banco. Outra coisa é um bando de yuppies, jovens bem aquinhoados que vivem ganhando dinheiro através de bônus, de não sei das quantas, para vender papel sem vender um produto.

Essa gente esteve no FMI durante a crise na América do Sul. Falaram o tempo todo mal dos países pobres. Quando a crise foi nos EUA parece que fizeram cirurgia de amígdalas e não falavam nunca. Eles sabem que, se eu voltar, o FMI não dará palpite na nossa economia. Então, querida, quando eu digo eles…

…fica parecendo as famosas “forças ocultas” do ex-presidente Jânio Quadros [quando se referia a quem o tinha levado a renunciar, em 1961].

Quando eu falo “eles” e “nós”, é porque você tem lado na política brasileira. Quando ganhei as eleições, fiz questão de conquistar muita gente. Criei o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social [com representantes de empresários, trabalhadores e setores sociais]. Tinha gente que achava que eu queria criar uma fissura na relação entre Senado e Câmara com a sociedade. Eu falei “não, eu quero é estabelecer uma política de convivência verdadeira com a sociedade”.

Empreiteiras fizeram uma reforma no sítio de Atibaia porque o senhor o frequentava. Independentemente de a Justiça concluir se houve ou não crime, não foi no mínimo indevido, uma relação promíscua entre um político e uma empreiteira?

Não. Esse é um outro tipo de processo. Não é o processo do qual estou sendo vítima.

É uma pergunta que estou fazendo ao senhor.

Essa pergunta eu espero que seja feita em juízo, pelo Moro. Porque primeiro disseram que o sítio era meu. Aí descobriram que ele tem dono. Então mudaram [para dizer que] me fizeram favor. Se fizeram, não me pediram. Eu fiquei sabendo desse sítio no dia 15 de janeiro de 2011.

Por que empreiteiras tinham que bancar a manutenção do formado na presidência, por que tinham que reformar o sítio? Essa relação não passou do ponto?

Quando eu for prestar depoimento, eu espero que essas sejam as perguntas que eles me façam.

Mas eu estou fazendo agora.

Não, você não é juíza. Eu vou esperar o juiz. Porque se eu responder para você, o Moro vai fazer outras. Aí, quer discutir a questão da ética, vamos discutir. É um outro processo. Eu quero saber onde eles vão chegar. Eu quero saber o limite da mentira.

Segundo uma pesquisa do Datafolha, 83% acham que o senhor sabia que tinha corrupção no governo. Era possível não saber?

É possível não saber até hoje. Você tem filho? Sabe o que ele está esta fazendo agora? Quando você esta na cozinha e ele no quarto, você sabe? Outro dia vi o caso de venda de sentenças em gabinetes de juízes. E eles foram inocentados porque não eram obrigados a saber o que estavam fazendo do lado de sua sala. Deixa eu te falar uma coisa: ninguém é colocado no governo pra roubar. Ninguém traz na testa “eu sou ladrão”. Há um critério rigoroso de escolha [de diretores de estatais].

Muita gente pensa que eu sou contra a Operação Lava Jato. Eu tenho orgulho de pertencer a um partido e a um governo que criou os mecanismos mais eficientes de combate à lavagem de dinheiro e à corrupção nesse país. Não foi ninguém de direita, não. Fomos nós.

O senhor manteria hoje o sistema de indicação dos procuradores-gerais, sempre os mais votado pela categoria?

Esse critério é herança minha do movimento sindical. Eu achava que era o mais acertado. Hoje eu analisaria o histórico da pessoa. Veja, o que ocorreu com a Lava Jato? Ela virou refém da imprensa e vice-versa. E hoje eu estou convencido de que os americanos estão por trás de tudo o que está acontecendo na Petrobras. Porque  interessa para eles o fim da lei que regula o petróleo, o fim da lei que regula a partilha. O Brasil descobriu a maior reserva de petróleo do mundo do século 21. E não se sabe se tem outra.

Não sei se você já tem uma compreensão sociológica de junho de 2013 [mês de grandes manifestações no país].
O Brasil virou protagonista demais. E ali eu acho que começava o processo de tentar dar um jeito no Brasil. Como diria meu amigo [e ex-chanceler] Celso Amorim, eu não acredito muito em conspiração. Mas também não desacredito.

O senhor faz uma conexão entre tudo isso e o que acontece com o senhor agora?

Faço. E se estiver errado, vou viver para pedir desculpas.

Mas o senhor acha, por exemplo, que os procuradores da Lava Jato vão aos EUA e se reúnem com um mentor?

Eu acho. Agora mesmo o Moro está lá [no exterior] para receber um prêmio dessa Câmara de Comércio Brasil-EUA. Ele foi lá para ficar 14 dias. Eu já recebi prêmios. Você vai num dia e volta no mesmo dia. Ô, querida, não me peça provas de uma coisa que eu não tenho. Eu estou apenas insinuando que pode ser, tal é a proximidade do Ministério Público com a Secretaria de Justiça dos EUA.

O senhor já deu muitas voltas por cima na vida. Enxerga agora um caminho de saída, depois de duas condenações?

É muito simplista essa pergunta. Você deveria estar perguntando é se eles vão conseguir juntar uma prova de cinco centavos contra mim. Esse é o dilema.

Mas, presidente, eles já condenaram o senhor.

Eu não tenho que encontrar saída. O que vocês da imprensa têm que pedir são provas. Vocês não podem retratar “ipsis litteris” [como está escrito] a mentira da Polícia Federal. Essa gente está me acusando há cinco anos. Essa gente não sabe o mal que causou à minha família. Eu tenho todos os meus filhos desempregados. Todos. E ninguém consegue arrumar emprego. Essa gente já foi na minha casa. Ficaram três horas, levantaram o colchão da minha cama, revistaram tudo e não encontraram nada. Poderiam ter chamado a imprensa e falado “queríamos pedir desculpas”. Eles saíram com o rabinho no meio das pernas e não falaram nada. Quando o Moro leva um Pedro Corrêa [ex-deputado do PP] para prestar depoimento contra mim, se ele entendesse um milímetro de política, ele não deixaria o Pedro Corrêa entrar naquele salão.

E o Palocci?

É uma pena. A história dele se esvaiu com isso. O Palocci demonstrou gostar de dinheiro. Quem faz delação quer ficar com uma parte daquilo de que se apoderou. Não vejo outra explicação.

Ou quer a liberdade.

Se fosse só por liberdade o [ex-tesoureiro do PT João] Vaccari não tinha feito a que fez nesta semana [inocentando Lula no caso do tríplex]. Porque é o cara que está preso há mais tempo. E está demonstrando que caráter e dignidade não são compráveis.

Deixa eu te falar: você está lidando com um homem muito tranquilo, que sabe o que está sendo traçado para ele. Desde o impeachment eu dizia: eles não vão tirar a Dilma e dois anos depois deixar o Lula voltar gloriosamente nos braços do povo. Era preciso impedir o Lula.

E isso está perto de ocorrer.

Vamos aguardar, querida. Se eu acreditar que o jogo está definido, o que eu estou fazendo nesse país? Eu quero saber o seguinte: eu, proibido de ser candidato, na rua fazendo campanha, como eles vão ficar? Eles estão me transformando numa vítima desnecessária.

O senhor diz que sabe o que está sendo traçado. Mesmo assim, não abre brecha para a discussão de uma outra candidatura?
Não abro. Não abro. Se eu fizer isso, minha filha, eu tô dando o fato como consumado. Eu vou brigar até ganhar. E só vou aventar a possibilidade de outra candidatura quando for confirmado definitivamente que não sou candidato.

Algumas correntes do PT já pensam em uma outra candidatura e alguns defendem o boicote das eleições.

Quando chegar o momento certo, o PT pode discutir todas as alternativas. Eu sou contra boicotar as eleições.

O ex-prefeito Fernando Haddad já falou que, mesmo sendo o maior partido, o PT não terá mais a hegemonia da esquerda.

Eu sou contra a tese da hegemonização. Em algum momento pode ter candidato de outro partido e o PT apoiar. Se o Eduardo Campos tivesse aceitado a proposta que eu fiz para ele e para a Renata em Bogotá, em julho de 2011, de ele ser o vice da Dilma [em 2014] e ser nosso candidato em 2018, a gente agora estaria gostosamente discutindo a campanha dele à Presidência da República. E não a minha.

O PT poderia apoiar Ciro Gomes? Ele tem feito críticas ao senhor e ao partido.

Eu não ando vendo o que o Ciro tá falando porque ele anda falando demais. O Ciro ou vai para a direita ou não pode brigar com o PT. Eu fico fascinado de ver como uma pessoa inteligente como o Ciro fala tão mal do PT. Não consigo entender. Vamos ser francos: pela direita, ninguém será presidente sem o apoio dos tucanos. Pela esquerda, ninguém será presidente sem o PT.

Quem o senhor acha que tem chance de chegar ao segundo turno na eleição presidencial?

Eu, se entendo um pouco de política, vou dizer uma coisa: a disputa deverá ser outra vez entre tucanos e PT.

O senhor pode ser preso em breve, caso não obtenha um habeas corpus nos tribunais superiores. Não tem medo?

Sabe por que não tenho medo? Porque eu tenho a consciência tão tranquila. Sabe do  que eu tenho medo de verdade? É se esses caras pudessem mostrar à minha bisneta que fez um ano no domingo que o bisavô dela roubou um real. Isso realmente me mataria.

O senhor está preparado?

Eu estou preparado. Estou tranquilo. E tenho certeza de que vou ser absolvido e de que não vou ser preso.

Há quem defenda que o senhor faça uma greve de fome caso vá para a prisão.

Eu já fiz greve de fome. Eu sou contra, do ponto de vista religioso. Eu não acho correto você judiar do próprio corpo. Quando eu fiz greve de fome [em 1980], dom Claudio Hummes foi à cadeia pedir para pararmos a greve.

O senhor já afirmou que se 10% dos que foram às ruas quando o presidente Getúlio Vargas morreu tivessem ido antes ele não teria se suicidado. O senhor teme que isso ocorra com o senhor? Eu não digo morte, mas…

Até porque não vou me matar. Eu gosto da vida pra cacete. E quero viver muito. Tô achando que eu sou o cara que nasceu para viver 120 anos. Dizem que ele já nasceu, quem sabe seja eu?

Tô me preparando. Levanto todos os dias às 5h da manhã, faço duas horas e meia de ginastica, tomo whey [complexo de proteínas] todo dia para ficar bem forte. E vou levando a vida assim. Eu não tenho essa perspectiva nem de me matar nem de fugir do Brasil. E vou ficar aqui. Aqui eu nasci, aqui é o meu lugar. Eu não tenho medo de nada. Só de trair o povo desse país. É por isso que eu estou aqui, fazendo a minha .

E o povo na rua?

Você não leva o povo na rua para qualquer coisa. Mas também não duvidem do povo na rua porque ele pode vir.

Mas o senhor não esperava que ele já viesse, no seu caso?

Ele nunca foi chamado! Eu sou um homem tão civilizado, acredito tanto nas instituições que estou apostando nelas. Eu ando no Brasil, mas eu não ando chamando o povo numa pregação contra ninguém. Eu ando chamando o povo para ele acreditar que é possível esse país ser diferente.

Eu não imaginei viver esse período. Eu me lembro do [ex-presidente da França Nicolas] Sarkozy querendo discutir a minha ida para a secretaria-geral da ONU. Eu lembro dele conversando com o [ex-primeiro-ministro espanhol] José Luís Zapatero, em 2008, e eu falava “para com isso, você não pode politizar a ONU, colocar um ex-presidente lá”.

O senhor imaginava outra coisa para a sua vida nessa fase.

Eu imaginei tranquilidade, querida. Eu imaginei viver meu fim de vida com a dona Marisa, cuidar dos filhos que eu não tive tempo de cuidar e viver. Não me deixaram ou não estão me deixando. Eu poderia abaixar a cabeça e ficar pedindo favor, ajuda. Não vou, querida. Não vou porque estou certo.

A minha educação é a de uma mulher [a mãe, dona Lindu] que viveu e morreu analfabeta. E ela dizia “não baixe a cabeça nunca a ninguém. Nunca roube uma laranja mas não baixe a cabeça”. E é isso o que vai me fazer seguir em frente.

A ESTANTE DE LULA
Alguns livros que o ex-presidente guarda
Frei Betto: Biografia
Américo Freire e Evanize Sydow
A história do fundador da CUT, amigo e ex-assessor especial do petista
Direito Penal
Juarez Cirino
Obra do criminalista que, ao defender o ex-presidente no caso tríplex, discutiu com o juiz Sergio Moro
O Brasil que Queremos
Org. Emir Sader
Coletânea de textos organizada por sociólogo de esquerda, com apresentação do próprio Lula
Tempos Muito Estranhos
Doris Kearns Goodwin
Relato dos anos de governo do democrata Franklin Roosevelt (1933-1945) nos EUA
Um País Sem Excelências e Mordomias
Claudia Wallin
Livro sobre os políticos e o sistema político na Suécia

Lula Folha de SP mar%C3%A7oConteúdo originalmente publicado pela jornalista Mônica Bergamo no jornal Folha de S. Paulo. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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