Márcio Souza: Um escritor da Amazônia
Por Veriana Ribeiro |Varadouro |dos varadouros de Rio Branco
Há um mês, no dia 12 de agosto, faleceu o escritor e cineasta amazonense Márcio Souza, importante nome da literatura brasileira contemporânea e figura central na cultura do Norte do País. Com uma trajetória multifacetada como jornalista, dramaturgo, editor, roteirista e romancista, Souza construiu uma obra rica e diversificada que explorou as complexidades e as particularidades da região amazônica.
O jornalista acreano Elson Martins, fundador do Varadouro em 1977, lembra que a primeira edição do jornal contou com uma entrevista com o escritor, que tinha publicado há pouco tempo o livro “Galvez – Imperador do Acre”. Segundo Martins, o jornal teve uma importância significativa na carreira literária de Márcio Souza.
“Ele veio aqui em um simpósio da Universidade Federal do Acre, e tinha lançado o livro do Galvez. A gente estava fazendo o primeiro número e já tínhamos lido o livro, então foi uma oportunidade de fazer uma entrevista com o Márcio Souza. E esse livro foi o lançamento dele, nacionalmente. Essa entrevista eu mandei depois para o Estadão, e ele publicou em uma página inteira. O Márcio Souza depois me falou que ele considerava essa entrevista pro Varadouro como o lançamento nacional dele”, relembra Martins.
A obra de Souza, que inclui títulos como “Galvez – Imperador do Acre”, “Mad Maria” e “Zona Franca, meu amor”, é notável pela sua capacidade de misturar ficção e realidade, criando uma narrativa que desafia as convenções e reinterpreta a história e a cultura da Amazônia. Destaca-se “Galvez – Imperador do Acre” (1976), o primeiro romance de Souza que se tornou um best seller, publicado em mais de 20 países.
O livro é uma sátira mordaz que aborda a alta sociedade amazonense durante o auge da economia da borracha, explorando o processo de colonização do Acre, o período de independência do território e sua subsequente anexação ao Brasil. “Ele aproveitou para fazer um livro diferente das teses. Os historiadores não se importam, por exemplo, com uma informação que ele coloca no livro, que tinha um seringalista que mandava lavar a roupa na Europa”, explica Martins.
A obra tornou-se uma referência na literatura sobre a Amazônia, confundindo até mesmo o imaginário popular sobre o “Império do Acre”. Por causa do livro, muita gente realmente acredita que Galvez se intitulou imperador, algo que nunca aconteceu, apesar do personagem histórico ter de fato proclamado a independência da República do Acre e governado o território por um breve período de tempo.
Márcio Souza: O grande narrador da Amazônia
Formado inicialmente em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, Souza viu sua carreira ser abruptamente interrompida pela ditadura militar, que o perseguiu devido à sua militância política. A partir de então, sua atuação se expandiu para o cinema e a dramaturgia.
Em 1970, dirigiu “A Selva”, um filme baseado no romance de Ferreira de Castro, ambientado em Manaus. Essa experiência marcaria seu início como uma voz crítica e inovadora na cena cultural brasileira.
De acordo Martins, o sonho de Márcio Souza era ser cineasta. Mas, devido às dificuldades de realizar filmes na Amazônia naquele período, muitas vezes ele recorreu à literatura para conseguir dar vazão às suas ideias.
“Ele sempre queria fazer um longa-metragem, mas se deparava com a dificuldade financeira. Esses filmes que ele fez foram usando material barato, simples, com equipamentos já superados.
Ele não encontrava financiamento em Manaus, e quando tentava no exterior, vinha sempre uma exigência de fazer uma abordagem amazônica.
Mas esse livro do Galvez acabou servindo para a Globo produzir aquela minissérie da Amazônia”, explica o fundador do Varadouro.
As obras de Márcio Souza inspiraram duas minisséries da Globo, a primeira, Mad Maria, de 2005, que retrata a construção da impossível Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM). A segunda minissérie foi Amazônia, de Galvez a Chico Mendes, escrita pela acreana Glória Perez, que teve como inspiração o livro “Galvez – Imperador do Acre”, assim como os livros “Terra Caída” de José Potyguara e “O Seringal” de Miguel Ferrante.
Além de sua produção literária, Souza se destacou pela atuação em instituições culturais. Entre 1990 e 2003, foi presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), cargo que ocupou durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Sua influência também se estendeu à Universidade de Berkeley, onde foi professor assistente, e a várias outras universidades internacionais, como Stanford e Harvard, onde lecionou e proferiu palestras.
Sua contribuição para o teatro também foi significativa, com peças como As folias do látex e Tem piranha no pirarucu. A relevância de sua obra é ainda mais ressaltada pelo seu papel como crítico e roteirista, com trabalhos como Rapsódia Incoerente e Manaus Fantástica.
Márcio Souza foi um acadêmico ativo e reconhecido, membro da Academia Amazonense de Letras e influente nas discussões sobre cultura e política no Norte do Brasil. Sua obra refletiu as tensões e as riquezas da região amazônica, tornando-o uma figura essencial para compreender a complexidade cultural e política do Brasil.
“Nessa entrevista [para o Varadouro], ele falava muito da importância de construir uma linguagem para a Amazônia através desses personagens. Todos eles têm o domínio, a sabedoria dessa linguagem que foi criada na floresta”, relembra Elson.
ENTREVISTA DE MÁRCIO SOUZA AO JORNAL VARADOURO EM 1977
Márcio Souza (ou Márcio Gonçalves Bentes de Souza) não é um artista qualquer, supérfluo, que se pode dispensar. Ele é necessário para a Amazônia e, por extensão, ao Acre. Escritor e teatrólogo amazonense, mais do que ninguém, soube reler a história de nossa gente e da nossa região, separando o secundário do essencial, colocando os fatos e os personagens dessa história nos seus devidos lugares, sem mistificação.
Por isso, como ele mesmo diz, é possível que as pessoas que o lêem torçam o nariz e exclamem “madilto escritor!” Márcio Souza, a essas alturas, não precisa de apresentação. A partir do seu romance “Galvez, Imperador do Acre”, que mereceu um prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, deixou de ser lido somente pelos amigos de Manaus e Belém.
Atualmente, ao lado de João Antônio, Plínio Marcos, Chico Buarque e outros, está nas bancas de todo o Brasil na coleção Extra-Realidade, 50 mil exemplares. Pela afinidade que Márcio tem com o Acre (vejam seus personagens) a estréia de VARADOURO não poderia ter sido melhor: entrevistado o próprio Márcio Souza.
V: Como surgiu a ideia de escrever o livro “Galvez, o Imperador do Acre”?
Márcio:
O “Galvez” é uma velha história. De início, quando descobri a estória, pensei em fazer um filme de longa-metragem. Nessa época, o meu trabalho, o meu interesse, era principalmente cinema. Cheguei a fazer alguns filmes.
V: Quais filmes?
Márcio:
Fiz em 1972, “A Selva”, baseado no romance de Ferreira de Castro, fiz ainda documentários. Na verdade, venho fazendo cinema desde 1962/63: curtas metragens, filmes experimentais, etc. Atualmente, tenho feito remissões para TV., em forma de documentário, com a mesma linguagem do cinema, só que utilizando equipamento e técnica de video cassete, que é um equipamento mais barato que o cinema.
Não requer custo de produção, porque aqui na nossa região, os capitais para esse tipo de empreendimento não são lá muito encontrados. Tive a idéia de fazer um longa metragem, mas com o “Galvez” não foi possível, porque para fazer qualquer coisa sobre o ciclo da borracha, você tinha que se aliar a uma produtora de Hollywood, com qualquer coisa da Amazônia.
São coisas que ultrapassam a margem de possibilidade do cinema brasileiro. Recentemente, quando o livro foi lançado fiz um orçamento e só de figurino a gente ia precisar de uns dois bi e melo
V: Como descobriu o personagem Galvez?
Márcio:
A descoberta surgiu de um trabalho que eu estava fazendo. Como você vê, como artista, eu era duplamente alienado, não só do problema do Brasil como da minha realidade, da minha Amazônia, porque você pode viver em Manaus a vida inteira sem ser um habitante da Amazônia.
Você vive dentro de uma casa com ar condicionado, assiste televisão, lê jornais, pode pegar um avião e pousar em qualquer aeroporto do mundo, frequentar as mesmas boates que têm os mesmos nomes em qualquer lugar… sem que com isso você tome contato com a região.
Preocupado com a “barra” que escolhi, que é a de ser artista, o que realmente é uma temeridade — às vezes, quando digo: “sou um artista”, acrescento: “com o perdão da má palavra, sou um artista” — achei que precisava reconhecer este terreno.
Comecei então, preocupar-me com o processo histórico, a ter paciência de ler romances, livros de poesias, coisas escritas por amazonenses, as quais geralmente a gente nunca tem paciência de ler. Criei essa paciência infinita que, às vezes, precisamos ter.
Foi uma descoberta: fui levantando dados e nesse processo, estudando o ciclo da borracha, o caso da anexação do Acre ao Brasil, em determinado momento descobri essa figura maluca, alucinada, desse aventureiro que enganou todos os coronéis da Amazônia.
Claro que não fui muito além, porque não sou historiador, não sou um cientista. Meu interesse não era fazer uma tese sobre as loucuras da monocultura. Pegando a biografia histórica do personagem, meu interesse foi plenamente satisfeito pelos dados que localizei. Evidente que não é um personagem representativo na história do Acre, como Plácido de Castro ou como o velho seringalista Urbano (Manoel Urbano da Encarnação).
Mas era um personagem que serviu para aglutinar em torno dele, em torno dessa biografia imaginária, que é o romance que escrevi, todos os delírios da monocultura da borracha. O que interessa para a história saber, por exemplo, se um determinado “coronel” de Manaus mandava lavar as cuecas em Lisboa? Isso não interessa em absoluto mas me interessava muito, entende?
Para mim interessava, no momento, que esse romance poderia por a nú uma situação até então pouco vista, que foi a ação dos que se beneficiaram com o ciclo da borracha. Veja o caso do meu amigo, o falecido Ferreira de Castro que tinha escrito o mais importante romance até então da região. Mas o caso é que “A Selva” revelava só um aspecto do ciclo que era o aspecto silencioso, barrado, amordaçado do seringal.
Enquanto que, o outro lado, o lado dos coronéis, o lado, digamos, da classe dominante, tinham, até então, sido considerados assim como “prodígios”. As pessoas até que compactuavam com o humanismo de Ferreira de Castro. Concordavam com aquilo que Euclides da Cunha tinha escrito sobre a vida dos seringais.
Concordavam, mas quando se passava para outros absurdos, por exemplo o que acontecia nos entrepostos de Manaus-Belém esqueciam a sua posição crítica e passavam a delirar também junto com os daquele passado.
Diziam então: “Que maravilha, eles tomam champagne francesa; aqui não se bebe mais isso”. Dava uma espécie de nostalgia, meio mal sã que, afinal de contas, se eles beberam champagne francesa, não temos mais nada a ver com isso porque eles é que usufruíram disso.
A tentativa então do romance é mostrar esse ciclo; mostrar essa visão do ciclo, algo de crítico, porque o próprio Ferreira de Castro foi um crítico também comprometido, já que tomava essa outra face, a face mais conhecida. Requeria, pois, no momento que eu fosse retratar essa época, que o livro tivesse uma linguagem uma linguagem despretenciosa, ao nível do deboche, pois entre todos os deboches que a civilização ocidental fez com a gente aqui, acho que o ciclo da borracha é a coisa mais terrível.
Talvez estejam preparando outros deboches com a gente. Então, a minha idéia do livro e a minha expectativa, por ele ter essa estrutura de ironia, de farsa, de romance picaresco. Não é por uma posição somente literária, mas porque o deboche do ciclo foi picaresco, foi satírico, foi irônico, foi de uma alegria criminosa.
Às vezes, eu pensava: como é que a gente poderia realizar alguma coisa, do ponto de vista artístico, sobre o ciclo da borracha, chorando. Porque daquela loucura que foi você só pode rir hoje, porque o riso é muito mais crítico; se você chora fica tudo meio turvo e não enxerga as coisas direito. Você tem que rir mesmo.
Rir e, talvez, esse riso, que você vê nas barrancas do rio — se você perguntar a um caboclo como é que ele está, ele ri para você, não vai chorar. Nunca vi nenhum caboclo chorar e essa é a forma de resistir, pelo menos, no momento: é rir — acho que (esse riso) está perfeitamente colocado dentro do que pedia a época do ciclo. Não era mais o momento de fazer dramas a respeito.
A tragédia e o drama são tipos de arte que pedem personagens sérios, de responsabilidade e não encontrei nenhum “coronel de barranco” de responsabilidade que servisse para uma tragédia. Realmente todos são figuras de comédia.
Talvez pelo fato do livro ter essa estrutura fácil para se ler, tenha também, por outro lado, servido como um veículo de contato, que é sempre a nossa preocupação dos que trabalham aqui, sobretudo o artista, pois estamos sempre preocupados em quebrar essa barreira de silêncio da região amazônica.
O Brasil não terá uma alma completa, enquanto não ouvir a voz da amazônia e essa voz tem sido muito fraca, muito transitória. Muita gente, muitas pessoas de boa vontade estão descobrindo a amazônia através desse livro.
V: Você está fazendo isso, do mesmo modo no teatro e no cinema?
Márcio:
Olha, o cinema, como já falei, é um tipo de atividade muito exigente. É uma indústria e a Revolução Industrial ainda não chegou na Amazônia.
Já o teatro é um tipo de atividade muito voltada para dentro da Amazônia. É uma atividade artística que tem um contato quase epidérmico com a sua platéia sobretudo quando você se preocupa em utilizar uma temática do meio. É claro que se você for montar Beckett, Shakespeare, ou sei lá o que, a reação vai ser diferente.
Você deve se preocupar em recriar a linguagem do teatro, recriar uma temática da região. Disso nós temos experiências e prática pelos fatos fantásticos, que aconteceram pelo interior da Amazônia, pelos bairros de Manaus. Não é criar um novo regionalismo, mas sim criar uma linguagem amazônica que é uma região praticamente à parte, muito especial.
A Amazônia é realmente um desafio, um atoleiro das tecnologias, vai dar muito trabalho. Neste sentido, todo esse esforço de reconhecer a sua linguagem; esta descoberta dos valores da região; da civilização que já existia aqui, como os índios que tem culturas altamente operacionais com ela.
Isto é, não se trata em propor retornos, porque a História não tem retornos mas ter consciência de que a falácia de que é uma terra sem História, é uma falácia. Mas não dizer isso ao nível da retórica, e sim ir lá nas fontes ver, procurar, conversar, descobrir, despindo-se dos preconceitos, da alimentação inclusive. Quer dizer, é uma região altamente exigente em todos os sentidos.
V: Como você encara esse trabalho de criação, preservação, ou recuperação diante de uma política deliberada de passar por cima de tudo isso?
Márcio:
Olha, dentro desse aspecto há uma tática e uma estratégia e a gente também tem que ter uma tática e uma estratégia. É… não é de hoje, não é um negócio de ontem, nem de anteontem, mas é um processo de 300 anos que a gente tem que ver. Todo processo é transitório.
Na medida em que a gente reconhece esse processo e a sua transitoriedade, a gente tem que se preocupar em encaminhar um processo de defesa, tendo ciência dessa transitoriedade. Por exemplo, essas tentativas, hoje, ainda estão aquém das possibilidades do País.
Por mais esforços que se façam, essas ameaças representam arranhões, graves é claro, mas ainda arranhões. Acho que a própria região, a partir do momento que você transita nela, tem um contato com ela, você percebe que ela sofreu um processo de avanço paralelo à essa investida.
É o caso, então, de você estar junto com esses avanços. Por exemplo, não precisa ser alarmista, mas também não precisa ser conformista, pois, é dessa transitoriedade do processo, que você procura em alguns momentos, se beneficiar, aproveitar, utilizar essas ameaças e, principalmente, estar sempre no campo. E claro que essa minha resposta poderia ser muito mais clara, entende?
V: Márcio, quais os seus próximos trabalhos?
Márcio:
No teatro, estamos preparando uma peça, uma maratona dramática, que conta a história de “Plácido de Castro contra Bolivian Sindicate”.
Vai ficar pronta, acho, no fim de maio ou começo de junho. É toda baseada em depoimentos historiográficos: tem pouquíssima invenção poética. É mais uma montagem que estamos fazendo, aspirando uma temporada no interior, não só na Capital, em Manaus.
Estamos tentando trazer também para o Acre, porque acho que sobretudo aqui terá um grande interesse. Não sei se mais para nós, do que para o povo acreano. Acho inclusive que aqui, no momento, tem uma importância que já consegui detectar, pois o Plácido de Castro está começando a sofrer um processo de desmistificação antes mesmo de se tornar um mito.
E é muito estranho quando essas coisas acontecem, porque sendo um personagem muito popular, como foi e ainda é, de repente, a sociedade que ele fundou dá-se ao luxo de começar a desmistificá-lo.
Não consegui ver ainda de onde parte esse interesse de desmistificação. Talvez a peça ajude a descobrir, suscitando um debate em torno da figura dele. Figuras como ele são sempre contraditórias e é da contradição que nascem os passos adiante. Pretendemos levar essa peça aos Estados Unidos, em julho, juntamente com “A Paixão de Ajuricaba”. Em termos de literatura, estou com um trabalho teórico para publicar, no segundo semestre.
É mais ou menos, um depoimento que dou sobre esse trabalho pessoal de reconhecimento da região. Esse livro deverá sair em São Paulo, se a minha espinha tiver condições de aguentar a barra de bater à máquina. Estou pensando em escrever um romance de ficção científica passado também aqui na Amazônia, 100 anos depois da ação do Galvez, em 1999. Aqui, no nosso continente, não é muito difícil fazer ficção científica. Por exemplo, Cenas de um Casamento Sueco, do Bergman, é ficção científica aqui no Brasil.
V: Talvez você pudesse adiantar alguma coisa sobre a peça do “Plácido de Castro”
Márcio:
É uma peça que pergunta muito, preocupada em deixar perguntas. Não tivemos pretensões de explicar nenhum fenômeno, nem mesmo a personalidade de Plácido de Castro. Realmente ele é um personagem muito estranho, ficou com a noiva a vida inteira em Porto Alegre e nunca se preocupou em buscar a senhorita.
Muito falador, tinha uma oratória impressionante, gestos cavalheirescos, mas ao mesmo tempo uma rudeza, um caudilho gaúcho. A ação de Plácido de Castro nos pareceu um dos momentos de verdade do ciclo da borracha: o Brasil não tinha interesse de ampliar o seu território, naquele momento, mas foi uma situação de fato.
O Barão de Rio Branco foi obrigado a entrar em negociação já com uma situação de fato. Tudo isso aconteceu não só pela presença do cearense aqui, mas pela visão de política continental que o Plácido de Castro tinha. Não sei onde ele foi buscar, mas acho que raros brasileiros tinham a sua visão de política continental.
Preocupado com o enclave de uma corporação internacional dentro da América do Sul, numa região com tantos países envolvidos, de matéria-prima interessante ao departamento da economia mundial, realmente essa visão torna-se surpreendente em Plácido de Castro.
Outra surpresa é a visão que ele tinha da falta de perspectiva do extrativismo da borracha. Tanto que um dos aspectos dessa atual desmistificação do Plácido de Castro é o de acusá-lo de latifundiário, envolvendo, inclusive o seu assassinato, como um caso de posseiro e dono de terra.
Pouco se fala, entretanto, da experiência de agricultura que ele fez em suas terras: uma agricultura que deixava de ser de sustentação: o método de contrato do trabalhador; a mecanização e o abandono das formas tradicionais de extrativismo. Tenho a impressão que o que não se perdoou em Plácido de Castro foi justamente ele ter tocado na estrutura sacrossanta do extrativismo.
Os livros, as monografias que você encontra sobre Plácido de Castro são trabalhos importantes, mas não contém uma avaliação. A única que conheço está no livro “Las Vienas Abiertas”, do Eduardo Galeano, um sofisticadíssimo escritor latino-americano. Ele diz uns absurdos tão grandes que eu simplesmente parei de ler sua obra. Ele fala sobre a Nicarágua, eu não conheço a História da Nicarágua, nem tenho obrigação de conhecer.
Mas de repente, quando ele fala sobre a minha História, diz absurdos tão grandes que eu não posso mais levá-lo a sério. Será que ele não está fazendo a mesma coisa com a Nicarágua. Veja: ele coloca o personagem Plácido de Castro e o caso da anexação do Acre como um ato puramente imperialista do Brasil, o que é profundamente ridículo. É vulgar uma afirmação dessa.
Parece um publicista materialista do século XIX, escrevendo com pieguismo latino-americano. E faz isso com tanta imprudência, que você fica nessa situação de até partir para agredir o саra.
V: Conta um pouco do que é o teu mundo artístico, em Manaus, desse movimento que está crescendo…
Márcio:
Olha, Manaus atualmente está atravessando um período muito difícil, porque ela recebeu uma patada histórica com a Zona Franca. Não tinha ainda refeito da patada histórica que foi o ciclo da borracha e já recebe essa nova. Desde o ciclo para cá, tem havido uma atividade literária-artística muito intensa, embora com defeitos, mas que se firmou.
Atualmente, há várias correntes dentro da cultura regional, ligados especificamente ao Estado do Amazonas. Tem uma literatura que é feita pelos sobreviventes da decadência da borracha, que está na Academia de Letras. Nela, entretanto, você encontra um Thiago de Melo, por exemplo, um Nunes Pereira. E uma Academia realmente muito estranha.
Tem também o Grupo da Madrugada, um movimento importante dentro do Estado. Foram os primeiros artistas a se preocupar com os problemas da região. Hoje é uma geração literariamente firmada. São contistas, poetas, muito bons, como Elson Ferias, Jorge Tufic, que por sinal é acreano, Luiz Bacelar e outros.
Da minha geração tem uma turma mais nova ligada ao Teatro Experimental do SESC, que é também um movimento cultural e, em relação ao Movimento Madrugada, radicaliza essa busca da região. O grupo está completando 10 anos e parece que foi ontem. Nele você encontra o Aldízio Silveira, poeta, jornalista e o Ednei que é dramaturgo.
V “Dessana-Dessana” você é que fez?
Márcio:
É, esse documentário é sobre os desenhos feitos pelo Feliciano Lana, um amigo nosso, que é índio Dessana, do povo Dessana. São desenhos ilustrando a estória da Criação do Mundo. Fizemos uma peça sobre essa estória que ele escreveu. Ele nos deu acessoria para fazer essa peça, montá-la.
Fiz um documentário bem simples, apenas reproduzindo os desenhos que ele fez, com o texto que ele mesmo escreveu para o filme. É um documento etnográfico. E uma produção de 30 minutos e serviu muito para divulgar o trabalho do Feliciano, que é um cara maravilhoso, escritor também, que se tem preocupado muito com a reprodução de sua cultura, a cultura dos Dessana.