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MESTRA JAPIRA E A LINGUAGEM DAS PLANTAS

MESTRA JAPIRA E A LINGUAGEM DAS PLANTAS

Mestra Japira e a linguagem das plantas

Quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover, eles dizem: ‘Isso é folclore, montanha não fala’. Eles se divorciaram da nossa mãe Terra” (Ailton Krenak).

Por José Ribamar Bessa Freire

Mestra Japira Pataxó recebeu o título de doutora pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) nesta quinta-feira (10), depois de ser avaliada em um processo demorado e rigoroso por uma banca de cinco doutores, que deram um parecer favorável aprovado pela Câmara de Pós-Graduação e, em seguida, pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da UFMG.

O que se exige para alguém ser doutor? Cursar disciplinas num Programa de Pós-Graduação, escrever uma tese após quatro anos de pesquisa e submetê-la a uma banca. Há, porém, pessoas com alta qualificação, que não cursaram o doutorado, mas possuem conhecimentos equivalentes adquiridos fora do ensino formal. Esses podem ser titulados como “doutores por notório saber”. Foi o caso de Antônia Braz Santana – a Mestra Japira – pajé, parteira, rezadeira e profunda conhecedora das plantas, com quem ela fala.  

O saber dela é notório, reconhecido por meio mundo, como consta na documentação por ela apresentada e no memorial de dez capítulos acompanhado de vídeos, além de seu livro “Saberes das terras Pataxó: da Beira Mar à Mata Atlântica”, resultado de pesquisas de mais de 40 anos, com ilustrações de seu filho Ararauí e de seu neto Braz. Lá, ela descreve ervas exóticas, animais com uso terapêutico e 131 plantas medicinais de cinco grandes biomas: o Quintal, a Capoeira, a Mata Atlântica, a Restinga e o Brejo, classificando quantidade maior do que a registrada em teses acadêmicas sobre fitoterapia e farmacopeia em território Pataxó.

O sistema de classificação constitui a base de qualquer ciência – dizem os cientistas, unânimes em ressaltar sua importância. “Sem a taxonomia se torna impossível o conhecimento científico” – escreve o linguista Nicolas Ruwet. O antropólogo Levi-Strauss destaca a contribuição para a humanidade do “pensamento selvagem” capaz de elaborar sistemas sofisticados de classificações no campo da botânica, da zoologia, da biologia, o que já havia fascinado o botânico Barbosa Rodrigues, que nos fala do “rigor do método de classificação e da nomenclatura clara, precisa e exata” dos saberes indígenas.  É esse rigor classificatório que a doutora Japira traz para dentro da universidade.

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O idioma vegetal

Sua classificação cataloga diferentes espécies de plantas, descreve seus habitats preferenciais, sua relação com o clima e a ecologia, seu potencial de uso medicinal e alimentar, especialmente a concepção sobre a natureza do universo vegetal e seus constituintes. Antes de perguntar a utilidade de uma planta, Mestra Japira responde de onde ela veio, onde cresceu, e como adquiriu as propriedades medicinais, contextualizando-a em seu tempo histórico e em seu espaço. As plantas que maneja são empregadas como um tipo de “idioma vegetal”. Ela fala e entende a linguagem das plantas.

– Mestre Japira registra os conhecimentos curativos, ecológicos, poéticos e históricos dos Pataxó, nunca antes descritos com tamanha profundidade desde uma perspectiva própria. Está tudo lá: as plantas, as ervas boas e as venenosas, o modo de colher as folhas e seus usos e como fazer os preparos – escreve na apresentação Victor Miranda, um dos organizadores do livro.  

Isso é confirmado pela Comissão de Avaliação, em seu parecer conclusivo, ao destacar que o livro oferece ‘uma diversidade impressionante de recursos úteis de diferentes ecossistemas, que possibilitam um horizonte amplo de saberes sobre o relevo, os solos, a água, a fauna e a flora. E é essa compreensão que confere à mestra Japira sua força e seu papel social como guardiã de saberes, educadora, formadora, líder política, xamã, curadora, condutora de cantos e danças e contadora de histórias de seu povo.

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Resta perguntar: De onde retirou ela tanto saber? A resposta está no Memorial relatado pelos doutores Rosângela de Tugny, Vanessa Tomaz e Victor Miranda, que transcreveram as narrativas de Mestra Japira realizadas ao lado de seu esposo Jonga durante rodas de conversas e em caminhadas pelos quintais, matas, capoeira. Mestra da oralidade, a sábia Japira não faz uso da escrita alfabética.

Natureza humanizada

Herdeira de ancestralidades multiétnicas afro-indígenas, Mestre Japira teve, como em todo doutorado, uma orientadora – a avó parteira Maria Rosa, de origem negra – e um coorientador, o tio Pataxó Karuncha Dendê. A avó, possuidora de conhecimento fitoterápico e dos cuidados pré e pós-parto pegou mais de mil crianças.  

O tio pajé, profundo conhecedor do poder das plantas, percebia as espécies vegetais e outras formas de vida como partes da ação milenar da “natureza humanizada”. Ambos repassaram oralmente uma teia refinada de saberes, na qual plantas são portadoras de qualidades humanas e sociais.

– As plantas me chamam, é como um imã, elas mostram seus saberes e força para mim. O que eu aprendi sobre elas veio dos espíritos dos antepassados e das conversa com os mais velhos – diz Mestra Japira, cuja biografia é relatada no memorial descritivo, com informações sobre a história dos Pataxó no sul da Bahia, especialmente sua participação na luta pela demarcação das terras.

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Desde que nasceu, ela pulou de aldeia em aldeia, semeando seus saberes por onde transitava. Na Aldeia Novos Guerreiros, onde vive atualmente, criou o projeto jardim-escola, um espaço de diálogo e aprendizado com as plantas, visitado por indígenas e não-indígenas, por turistas e por pessoas que buscam a cura para os males para os quais a medicina convencional não tem resposta. Ela é reconhecida pela comunidade como grande educadora e detentora dos saberes tradicionais e da história do povo Pataxó. Seu trabalho une os três pilares indissociáveis da academia: pesquisa, ensino e extensão.

– Quando a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) me convidou para dar aulas, em 2014, conheci a professora Rosângela. Aí, fui tendo que construir uma forma própria de ensinar esses saberes. Em um encontro, eu passava os conhecimentos das plantas, suas qualidades, histórias e preparos, enquanto Ararauí as desenhava no quadro.

Depois, em 2017, participei com alunos da universidade no projeto da Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha. Fui convidada outra vez, no ano seguinte, pela UFSB para dar aulas aos alunos de artes, acompanhada de Jonga, que me ajudou muito – conta Mestra Japira.

Jardim-escola  

A vontade de fazer um livro cresceu – segundo Japira – quando ela deu aulas na universidade:

– Percebi que só a palavra falada não era suficiente para mostrar para o povo os saberes sobre os remédios e nossa medicina.  

Daí nasceu também a metodologia transdisciplinar e intercultural por ela empregada, que envolve narrativas históricas imemoriais, aulas de educação ambiental, cura a partir das plantas e a tecitura de uma rede de saberes coletivos que a torna uma biblioteca viva.

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A forma como ela ensina, a maneira como conversa com os estudantes e os professores em suas palestras, rodas de conversa e andanças, leva os alunos para fora do espaço da sala de aula, criando uma pedagogia diferenciada. Ela vai andando e mostrando as plantas, suas raízes, o tipo de solo que cresce, a cor do caule, das folhas, as flores, os frutos cada espécie e o traçado das plantas. O diálogo com ela já orientou muitas monografias de conclusão de cursos e pesquisas de pós-graduação e contribuiu para a produção de uma proposta curricular para as escolas indígenas.

Surpreendente é como essa sabedoria milenar, sempre banida do conhecimento dominante no Brasil, somente agora entra pela porta da frente da academia, num novo momento para as universidades brasileiras na luta por ampliar os direitos das políticas afirmativas. Apesar do MEC com seus retrocessos. Sueli Maxakali e Valdemar Xakriabá igualmente receberam o título de doutor por notório saber – segundo informa a dra. Ana Gomes

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Referências:

1 – Japira Braz Pataxó: Os saberes das terras pataxó: da beira mar à mata atlântica. Porto Seguro. 2020.  Orgs: Ana Boross Queiroga Belizario e Victor André Martins de Miranda.

2. Memorial descritivo sobre a vida e obra da mestra Antônia Braz Santana (Mestra Japira). Relatoria: Victor Miranda (UFSB e UNMdP), Rosângela Pereira de Tugny (UFSB, UFMG-PPGMUS) e Vanessa Sena Tomaz (Fae-UFMG)

3. Parecer Conclusivo Fundamentado da Banca de doutorado por notório saber da Mestra Japira: Marina de Lima Tavares (UFMG), Samira Lima da Costa (UFRJ), Gilton Mendes dos Santos (UFAM), Edson Kayapó (IFCT da Bahia) e José R. Bessa Freire (UNIRIO).

P.S – É com profunda tristeza que registramos a morte de Caroline Valeria da Silva Machado, filha de Carlos Tukano, presidente do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas (CEDIND). Ao querido amigo Carlos e a sua esposa Valéria, toda solidariedade neste momento de perda tão dolorosa.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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