Meus tempos de criança nos Seringais do rio Muru – parte 1
Começa aqui, a partir deste texto, uma série de memórias que marcaram este personagem que vos escreve. Acompanhe as travessuras desse amigo de todos vocês através do espaço de crônicas indigenistas, e da Revista Xapuri.
Por Txai Antônio Macêdo
O que penso da palavra saudade? Bem, meu tempo de criança às vezes me dá saudades, às vezes não. Na minha concepção, saudade é palavra triste do ponto de vista da perda ou distância de alguma coisa infalível, ou uma maneira de lembrar com alegria, pessoas ou momentos vividos. Se assemelha a faca que corta nos dois gumes.
Abro essa conversa aqui falando de mim mesmo e dos meus tempos de infância vividos nos seringais do Aquiry. Graças a Deus, não perdi um grande amor, nesta estrada longa da vida, e mesmo assim, vou chorando a minha dor, igual uma borboleta, vagando por sobre a flor.
Nasci na colocação Bagaceira do Seringal Transval da bacia do Rio Muru, no Município de Tarauacá – Estado do Acre. Antes mesmo de fazer o primeiro aniversário, fui me banhar nas cinzas do fogão de lenha que minha mãe jogava debaixo do jirau de lavar pratos. A gente nem sabia que se chamava de ‘louças’. Minha mãe é quem servia os pratos de todos e a mesa da nossa casa era o chão da casa, o assoalho como falamos no seringal.
Um belo dia, segundo o que as minhas irmãs me contaram, eu quebrei toda ordem da casa, lançando um protesto sutil e pertinente. Eu ainda contava somente um ano de idade. Minha mãe colocou a panela de comida perto dela e foi aos poucos servindo os pratos de todos, no chão da casa.
No entanto, ela esqueceu de colocar carne no meu prato, que problema! Eu olhei a mesa toda reunida então falei as seguintes palavras, que nem sei de onde tirei: “Você vai pirão sem carne, sem carne mesmo mais você vai”. – Nossa! Isto virou motivo de muita alegria por parte da minha mãe, que sensibilizada e até emocionada, serviu meu prato pedindo mil desculpas. Esse acontecimento serviu de graça e ficou na boca de nossa família por muitos anos.
Muita cinza debaixo do jirau. Eis um atrativo forte para experimentar um banho nas cinzas. Estava todo lambuzado de cinzas, quando minha mãe viu e gritou comigo. Claro que me assustei e sai correndo, tentei pular uma cerca, mas, segundo depois – segundo me contaram minhas irmãs mais velhas – me içei por cima do braço direito , o que me fez quebrar o braço.
Minha mãe ficou extremamente aflita e correu para floresta, indo buscar ‘leite’ de Janaguba. Essa árvore produz um látex na casca, que funciona como gesso. Assim, rapidamente ela envolveu meu braço com algodão da nossa lavoura empapado com aquele leite da árvore e emendou o meu braço.
Naquela época, crianças não brincavam na presença dos adultos. Não tomavam parte nas conversas e nem ficavam andando ‘pelo meio’ deles, enquanto os adultos conversavam. Crianças não podiam ter opinião e muito menos destacar propostas.
Mas temos as lembranças ruins e tristes…
Numa certa noite de festa, que se realizava em outra colocação do mesmo seringal Transval, um sujeito chamado Pedro Elias assassinou o meu irmão Francisco Manuel.
Foi por ciúmes, porque meu irmão era bem aceito pelas moças com quem ele sempre dançava por ocasião das festas naquele seringal.
Sua morte foi á gota d’água para que meu pai e minha mãe se mudassem com toda família daquele lugar. E assim nos mudamos para a cidade de Tarauacá, onde fomos morar numa casa improvisada na rua da Anhinga.
Uma outra lembrança envolveu o senhor Antonio Sabino, que tinha uma filha moça que se chamava Maria Sabino. Eu era uma criança mesmo, mas, quando aquela moça falava ali perto de mim e até me acariciava, eu sentia fortes emoções.
Aquilo era mesmo muito forte em mim. Eu ainda não conhecia a palavra paixão, mas, hoje entendo que me apaixonei antes mesmo dos meus primeiros três anos de idade. E a moça comigo o tempo inteiro e dizia coisas que ficavam cantarolando na minha cabeça, mas, para ela tudo era uma brincadeira mesmo.
Eu ainda não havia completado meus primeiros três aninhos e já queria ser grande, digo, ser adulto.
Ainda com essa idade, certo dia, brincando, encontrei um canivete inoxidável daqueles que abri e recolhe a lâmina de forma manual. Lembro que minha sede de vingança foi aguçada em questão de instantes e ai veio-me à mente o famigerado Pedro Elias, o homem que tinha assassinado o meu irmão.
Ele estava preso na cadeia da cidade de Tarauacá e minha cabeça repetia, à todo momento, as palavras de minha mãe e minhas irmãs sobre a morte de meu irmão, que na verdade, nem cheguei a conhecer.
Assim, sem que minha família percebesse, peguei o canivete e me dirigi à Delegacia, que era a cadeia como se chamava ali. Sabia que lá estava o homem que matou o meu irmão, e eu com aquele canivete no bolso tinha uma boa oportunidade de vingar a morte do meu irmão. Com tal intenção parti para a cadeia, e ao chegar lá, logo à porta, fui surpreendido pelo Cabo Joaquim, um Policial da Guarda Territorial e amigo da minha família.
O cabo, ao me ver ali, e daquele tamanho, veio ao meu encontro. Me abraçou, colocou-me em seus braços, tirou o canivete do meu bolso e foi me deixar em casa, me levando em seus braços.
Ao chegar na nossa casa ele entregou o canivete ao meu pai, e procurou recomendar aos meus familiares que não me deixassem sair de casa. Vi minha tentativa de vingança frustrada, e notei que meu pai também ficou preocupado com aquilo que fiz na minha infância matutina.
Naquela época meu pai, Raimundo Batista de Macêdo, mantinha a família ali na cidade e trabalhava no seringal. Ele comprou do Cícero Kaxinawá a colocação Foz do Igarapé do Caucho. E ai, aos três anos de idade, fui levado pela família a morar junto com o povo Kaxinawá. Essa colocação, hoje em dia, é a Terra Indígena Kaxinawá do Igarapé do Caucho.
Não sei se atualmente ainda é este o nome daquela rua, talvez ainda seja o mesmo. Dessa época me recordo de poucas coisas.
Lembro do botequim do seu Antonio Sabino, onde meu pai comprava mantimentos, e de poucos outros incidentes fortes que, enquanto criança, me envolveram. Relembro alguns…
Eu criava um macaco prego. Ele se chamava Miguel. Ele mexia muito em tudo: comia o açúcar e derramava outras coisas, e o povo da família me enchia o saco por causa dele. Infelizmente aconteceu uma fatalidade, que nem sei se devo contar.
Enfim… De tanto reclamarem do macaco, numa daquelas vezes que mexeu no açúcar da lata, e por causa das reclamações contra ele, fiquei totalmente perdido e bati na cabeça do Miguel, que não obedecia e não largava de mexer nas coisas. Ele escapou mais depois morreu.
Nossa! Guardo até hoje o meu sofrimento por ter sido levado a espancar o coitado do macaco, como eu via os adultos fazerem com os animais, que merda.
Para mim, viver ali, ainda em idade tão tenra, não foi fácil. Bem no inicio de nosso relacionamento com os ‘caboclos’ – como os não índios os tratavam – dava para sentir que tudo ali era muito diferente da vida que eu levava na minha casa: as comidas, as bebidas, a maneira de preparar os alimentos, a forma de plantio das lavouras, a maneira como os indígenas tratavam seus mortos, como se dava suas festas. – Naquela época não me lembro de visto um Mariri.
Naquele tempo, os Huni Kuin (Kaxinawá) do Caucho já faziam festas dançantes tocadas com instrumentos, como: acordeão, cavaquinho, violão, pandeiro e maracá.
Eles trabalhavam na diária para os brancos da redondeza e contratavam dois irmãos cearenses e tocadores de acordeão, Isídio e Simão, que moravam na cidade de Tarauacá, para tocar em suas festas na aldeia.
Mesmo ainda uma criança dancei naquelas festas, por sinal muito animadas. Isso quando não aconteciam brigas entre índios e não índios, o que, graças a Deus, nunca aconteceu com nossa família, afinal, meus pais eram amigos dos índios.
Lembro que numa dessas festas, realizada na aldeia Kaxinawá do Seringal Tamandaré, houve uma briga, e um senhor de nome José Berto Lino matou a facadas o ‘caboclo’ Serrano Kaxinawá. Da nossa família não tinha ninguém naquela festa e ainda bem que não estávamos, pois nos falaram que a briga foi feia.
Os Huni Kuin sempre se mostraram muito animados, gostavam muito de festa, naquela época, tempo dos seringais. Embora guardassem com eles muito de seus saberes tradicionais, viviam como os seringueiros regionais, e não me lembro que eles tenham nos mostrado a época festas de sua própria cultura, o que atualmente se observa, está bem recuperada e praticada conforme a tradição deste povo.
NOTA DA REDAÇÃO: As Imagens utilizadas no texto foram selecionadas por nosso parceiro Jairo Lima (www.cronicasindigenistas.blogspot.com.br). Texto publicado originalmente no ano de 2017.
Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima).