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Nhe´ẽ Porã: A PALMATÓRIA E A BÍBLIA

Nhe´ẽ Porã: A PALMATÓRIA E A BÍBLIA

Minha Bíblia é o petўnguá. Quando dou uma baforada, tudo se ilumina. – Wherá Tupã, Alcindo Moreira, 2004.

Por José Bessa Freire 

Elas estão lá, exibidas numa vitrine da Exposição Nhe´ẽ Porã: Memória e Transformação, inaugurada no dia 19 de abril no Museu de Arte do Rio (MAR).  Elas, que eu digo, são uma palmatória e uma bíblia traduzida ao guarani.

Nhe´ẽ Porã foi concebida e realizada, em 2023, pelo Museu de Língua Portuguesa de São Paulo, sob o patrocínio do Instituto Cultural Vale, com a curadoria da artista Daiara Tukano e a assistência da antropóloga Majoí Gongora.

Nhe´ẽ Porã

De lá, passou a itinerar pelo país, acrescentando em cada local alguns itens em relação à versão original. Na passagem por Belém, incorporou peças do acervo do Museu Goeldi. No Rio, também, houve alguns acréscimos.

Diante da vitrine com os dois objetos que me pertencem emprestados para a Exposição no MAR, expliquei como eles chegaram às minhas mãos a alguns amigos ali presentes: o linguista Marcos Maia, a doutora em Artes Visuais Chang Wan e a antropóloga Maria José Alfaro, cujo pai é meu melhor amigo.

– Esta palmatória – contei – estava sendo usada, em 1995, pela professora de uma escolinha rural de Amargosa, região do Jequié (BA), embora isso fosse proibido desde 1990 pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Reparem os buraquinhos nos quais eram enfiados grãos crus de arroz para ferir as mãos das crianças. 

Compramos a palmatória ali, no local, para exorcizar meu passado e pensando evitar novos castigos.  Em vão.  A professora nos vendeu, mas tirou outra da gaveta, que continuou usando sob os nossos olhos.

No momento da minha fala, o linguista estadunidense, Andrew Nevins, docente da UFRJ, se aproximou do grupo, olhou a vitrine e perguntou:

– O que é palmatória? Para que serve?

PAUDAGOGIA

Andrew não sabia que era um instrumento de castigo físico, hoje proibido em 131 países, segundo a organização Global Iniative to End All Corporal Punishment of Children, mas – caiam pra trás – a Suprema Corte dos EUA decidiu, em 1977, que a Constituição garantia seu uso, o que permitiu a promulgação de leis locais. 

No estado de Missouri, o Conselho Tutelar de Cassvile autorizou, em 2022, que o pau comesse na Casa de Noca – informa o jornalista Eduardo Barão.

O estranhamento de Andrew talvez se deva ao formato retangular da palmatória da terra dos Donald, o pato e o Trump.  Ou porque, muito mais jovem, Andrew deu mais sorte nas escolas na Califórnia do que eu, aluno nos anos 1950 da dona Lourdes Normando, no bairro de Aparecida, em Manaus. 

Sexta-feira, dia de sabatina, a Mãe dos Burros – assim ela chamava a palmatória – tirava o couro de quem errava a tabuada. Eu saía daquele reino da “paudagogia” com as mãos inchadas. Ela conseguiu… Sou ruim de tabuada até hoje.

Mas o que é que a Palmatória faz junto com a Bíblia lá na Exposição sobre memória e línguas indígenas? É que elas ajudam a entender a história. Introduzidas pelos missionários no período colonial, ambas aceleraram o processo de etnocídio, glotocídio e epistemicídio. 

O jesuíta João Daniel, que viveu no Pará quase 20 anos, testemunhou em meados do séc. XVIII o espancamento de uma indígena do Marajó, com uma palmatória como essa, mas marcada na extremidade redonda por cinco furos em cruz.

– Só paro de bater quando você disser “basta”, mas não na tua língua – ameaçava o padre, segundo relata João Daniel no seu Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas. Ela recusou. Suas mãos sangraram. 

O jesuíta concluiu: as mulheres resistem mais que os homens que, diante da repressão, abandonam sua língua. Desta forma, centenas e centenas de línguas foram extirpadas a ferro e fogo, mas, graças às mulheres, 274 continuam vivas no Brasil, segundo autodeclaração no Censo do IBGE (2022).

CHUVA DE PALAVRAS 

Língua e Memória, Palavra tem Poder, Palavra tem Espírito Terra é Viva são os nomes das salas da Exposição, lembra Majoí Gongora. No percurso, concebido em forma circular, o público é guiado por um rio desenhado no chão, que carrega os belos versos do poema Chuva de Palavras, de Daiara Tukano, e de suas versões em diversas línguas indígenas. 

Rio de palavras
Foto: Divulgação/ Ciete Silvério

Uma dessas línguas foi usada na abertura da Exposição por Daiara e seu tio Carlos Tukano, que cantaram e saudaram o público no idioma Tukano. Carlos lembrou que essa violência testemunhada pelo jesuíta se repetiu até o final do séc. XX nos internatos salesianos do Rio Negro, onde muitas crianças eram castigadas física e moralmente se fossem flagradas falando sua língua. Os depoimentos de Carlos e de Álvaro Tukano são dramáticos. Com as línguas proibidas se apagava saberes ancestrais e as palavras sagradas que nelas circulavam oralmente.

Essa história pode ser vista na Exposição em fotos, documentos, mapas, obras artísticas, mais de 90 registros sonoros e audiovisuais, animações e conteúdos multimídias. E é aqui que entra a Bíblia.

O funcionário do MAR, que redigiu o contrato de empréstimo para a Exposição, escreveu “Bíblia Guarani”. Pedi para mudar para “Bíblia traduzida na língua Guarani”, o que não é a mesma coisa, conforme o fato ocorrido que explica como passei a ser seu “proprietário”. Foi assim.

Em 2004, ministrava eu a disciplina Etnohistória no Curso Kuaa-Mboé de Formação de Professores Guarani da Região Sul e Sudeste do Brasil, em Palmas, município Gov. Celso Ramos (SC), quando membros da Sociedade Bíblica do Brasil, sem pedir licença, chegaram ao local e surpreenderam os 80 guarani ali presentes, doando a cada um deles exemplares da Sagrada Escritura traduzida à língua Guarani Mbyá, com um discurso preconceituoso em linguagem bíblica rebuscada, algo assim como:

– Oh, vós, que estais mergulhados em superstições, abandonai-as. Lede este livro sagrado em vossa língua e aqui vós encontrareis a verdade.

Os Guarani não gostaram do tratamento, nem da voz do vós. Na reunião que fizeram à noite, devolveram os livros, que ficaram empilhados na sala da coordenação do curso, mas o pajé Wherá Tupã, Alcindo Moreira, que compartilhava a disciplina comigo, permitiu que eu ficasse com um exemplar. Crítico, ele disse:

– Minha Bíblia é o petўnguá. Quando dou uma baforada, tudo se ilumina no meio da fumaça.

Berta
Foto: TaquiPraTi

A AVÓ DO MUNDO 

Em geral, indígenas de diferentes etnias gostam de se inteirar sobre mitos de outras culturas e de contar a outros povos suas narrativas naquilo que é permitido revelar. É uma troca de saberes. Mas no caso da Sociedade Bíblica, não havia qualquer interesse nas palavras sagradas dos Guarani. Desqualificavam o que nem conheciam. “Seu mito não é melhor que o meu” disse um dia Álvaro Tukano.

Na região do Rio Negro, quando os salesianos chegaram com a Bíblia nos anos 1920, os Desana e os Tukano, entre outros povos, gostaram de ouvir a versão de criação do mundo do Antigo Testamento e de comparar o livro do Gênesis com seus próprios mitos. 

O tuxaua Firmiano Lana se negou a aprender português, mas publicou, em coautoria com seu filho Luiz Lana e assessoria de Berta Ribeiro, a versão Kenhiriporã dos Mitos Desana sob o título Antes o Mundo não existia”.

Também o kumu Gabriel Gentil publicou na Suíça o Mito Tukano em edição bilingue Tukano x Português com as histórias do Começo do Mundo. Ele estranhou que na Bíblia “os primeiros seres” são criados por um Deus Masculino, que não tem útero, o que é uma incongruência. 

Para os Tukano, “uma Mulher aparece por si mesma no espaço vazio, no tempo de escuridão, acariciada por sons musicais, que entravam no corpo dela, através dos ossos e dos pensamentos”. Ela é Ye´pá, Avó do Mundo, criadora de todos os seres.

A Exposição, que marca a Década Internacional das Línguas Indígenas, mostra as tentativas coloniais de exterminar essas línguas e as narrativas que nelas circulam. 

A resistência e a preservação da memória explicam seu nome Nhe´ẽ Porã – “um conceito dos povos Guarani que significa ´belas palavras´, a fala de divina sabedoria carregada de bons sentimentos” como explica no texto do Catálogo Carlos Papá, sábio do povo Mbyá.  

A Exposição fica no Rio até 14 de julho. Sua versão no Museu Goeldi permanece até 28 de julho em Belém. 

P.S. – Não poderia deixar de registrar aqui. Fiquei todo besta, todo “flosô”, quando na abertura do evento fui homenageado por Daiara, que me convidou a subir no palco com Carlos Tukano. Minha emoção subiu lá em cima. É pena que o edifício do MAR tenha apenas seis andares.  

essa palco bessa tukano 3
Foto: TaquiPraTi

Jose Ribamar Bessa

 

 

José Bessa Freire – Escritor. Cronista. Conselheiro da Revista Xapuri. Matéria publicada em seu blog: Taquiprati. Capa: Guatá/Divulgação.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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