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Professora Nilza: Preta nossa de Formosa!

Professora Nilza: Preta nossa de Formosa!

Professora Nilza: Preta nossa de !

Houve um tempo em Formosa, entre meados dos anos 1970 e 1980, em que a juventude boêmia circulava, a pé, de bar em bar, trocando prosa sobre qualquer coisa, ao som de boas modas de viola. Era o Corujão, na ponta do Mato da Bica; o Bar do Seu Elpídio, na Emílio Póvoa; e, na Praça da Feira, o Zé do Fole, um boteco camarada onde sempre se encontrava cerveja gelada, tira-gosto honesto e alegria garantida.

Por Zezé Weiss

Cada boteco tinha sua própria idiossincrasia, sua própria cultura. O Corujão ficava no fim da linha. Era ali, no quase-romper da aurora, que o dono, um cabra forte e sisudo, curava qualquer ressaca com seus inesquecíveis bifes acebolados.

Seu Elpídio era mais pra moda de viola, ainda que de vez enquanto o clima esquentasse em breves festivais de pimenta, onde alguém sempre se entupia de malagueta pra se livrar da conta.

Já com Zé do Fole era diferente, o dono era, em si, a figura central do boteco. Casado e apaixonado por Maria Abadia,  tanto quanto pela necessidade de gerar renda para o sustento de suas quatro crianças pequenas, Zé do Fole aguentava aquele bando de bebuns porque era um ser humano feliz, amante do movimento e da muvuca. Naqueles tempos bicudos da ditadura, Zé do Fole era vanguarda em Formosa: incentivava a cultura, tocava em temas proibidos, botava fogo no debate da política.

Professora Nilza: Preta nossa de Formosa!

Ao mesmo tempo, o bar do Zé do Fole era bem família. Ali, por entre as mesas e cadeiras, por vezes circulava uma menina barrigudinha, esperta e perguntadeira, que atendia pelo nome de Nilzinha.

Nascida e criada na Praça da Feira, onde até hoje mora sua família, Nilza Cristina Gomes dos Santos herdou do pai, que precocemente virou pó de estrela, o senso de justiça, o gosto pela política e, principalmente, o amor por Formosa, expressado nas muitas lutas que travou e trava em seus 48 anos de vida.

Menina inteligente, preta e pobre, para realizar o sonho de ser professora, formada em magistério pelo Colégio São José, como sua família não tinha condições de pagar a , a filha de Abadia e Zé do Fole entrou como bolsista, trocando o direito de assistir as aulas por serviços na limpeza do colégio, como era costume das freiras à época. 

“Eu a admiro muito por isso”, diz a filha Fernanda, com o sorriso aberto de quem muito se orgulha da mãe guerreira que lhe serve de estrela-guia.

Vinda de um berço rico em sensibilidade, educação, diversidade e cultura, a aluna Nilza,  aplicada nos estudos, depois de recém-formada professora passou no concurso da Prefeitura de Formosa e tornou-se, aos 19 anos, a primeira diretora da Escola Maria Lícia de Castro Trindade, no bairro São Vicente.

“Foi um bom começo,” diz Nilzinha, “porque ali, ganhei o respeito da comunidade por compreender e lutar contra as disparidades do mundo desigual em que viviam.”

Disciplinada, Nilza seguiu trabalhando e estudando. Cursou História e Letras na FECLISF, hoje UEG – Universidade Estadual de Goiás. Ali nasceu a aguerrida militante Nilza, a incansável combatente das boas e justas causas. Ali, como membro do Centro Acadêmico de História, Nilzinha ajudou a travar a luta vencedora pelo reconhecimento da Faculdade pelo MEC. Havia sido dada a largada para sua bonita trajetória de resistência e luta em defesa da educação, dos direitos humanos, da .

Em 1993, em busca de melhores condições de trabalho, de salário e de vida, Nilza foi trabalhar no sistema público de ensino do Distrito Federal. “Sim, minha mãe foi dar aulas em , foi militar em Brasília, foi fazer muitas coisas em Brasília, ficou muito tempo na estrada, mas nunca mudou pra lá. Graças a esse seu grude dela com a família, e a esse profundo amor que ela tem por Formosa, eu cresci com minha mãe sempre presente, sempre por perto,” diz orgulhoso o filho Felipe.

Como professora no DF, Nilza conheceu bem de perto a luta travada por sua categoria, envolveu-se e tornou-se dirigente sindical. Por três mandatos, fez parte da diretoria do Sindicato dos Professores do Distrito Federal – SINPRO/DF e, por 4 anos, fez parte da direção da Central Única dos Trabalhadores – CUT/DF. No entremeio, a vida de Nilza foi sendo pautada pela militância partidária, no – PT, especialmente em Formosa, onde é membro do Diretório Municipal e pré-candidata a vereadora nas eleições de 2020.

Educadora dedicada, centrada na filosofia da educação amorosa de Paulo Freire, professora em sala de aula, ensinando à distância nesses tempos de pandemia, Nilza se preocupa com a possibilidade do governo do Distrito Federal permitir a volta das crianças às aulas “sem a garantia da para toda a comunidade escolar e suas famílias.” Em um de seus últimos posts nas redes sociais, Nilza replica um texto de autoria desconhecida, que subscreve na íntegra:

Só acredita na segurança da “volta às aulas com protocolo” quem nunca mais pisou numa escola, desde que terminou os estudos. Na teoria, tem tapete sanitizante, álcool em gel e uso obrigatório de máscara. 

Na prática, tem um monte de criança com saudade dos amigos, se abraçando, incomodada com a máscara e mexendo o tempo todo, tem compartilhamento de lanche, sem dar tempo de a professora interferir, tem empréstimo de borracha, tem falta de profissional de limpeza de banheiros a cada uso e não tem sabonete pra lavar as mãos, durante todo o tempo. 

E mais: se não pode brincar, não pode ir pra quadra, não pode parquinho, não pode cantina, não pode e não pode, voltar pra quê? Pra sentar solitário com uma máscara incomodando e só fazer dever?

E tem mais, um estudante contaminado contamina outros que contaminam outras áreas da cidade e a doença volta a circular. Escola é mais. Muito mais que sentar longe dos amigos e só absorver conteúdos. Só acredita em retorno seguro sem vacina quem não sabe o que é escola.”

Professora Nilza: Preta nossa de Formosa!

Compromissada com a construção de um mundo melhor, mais humano, mais justo e menos desigual, a historiadora Nilza cerra fileiras com Bira, seu amado companheiro, na construção de sua casa, ali no Parque Lago, aqui mesmo, em Formosa; na defesa do ensino público, universal e de qualidade; na luta antirracista, contra a homofobia e pelos direitos das mulheres; contra a miséria e a fome, e a favor da justiça social, sobretudo para as pessoas jovens e idosas,  as que  mais precisam de proteção e apoio. Bira e Nilza estão juntos, é claro, na luta política.

Não sei como, mas Nilza sempre acha tempo, sempre encontra um jeito de participar dos movimentos sociais contra o retrocesso desse governo anti-pobre, anti-cultura, anti-indígena, anti-gente negra, anti-constituição, anti-democracia, esse governo contrário a todas as conquistas históricas do povo brasileiro. E, se não fosse pouco, Nilza agora deu de gastar horas estudando história, em especial a história da presença negra na formação social de Formosa,” conta Bira.

Qualquer que seja a referência histórica sobre a origem do , coincide-se no relato de que seu primeiro aglomerado de gentes, a Rua dos Crioulos, hoje Rua Jesulino Malheiros, era formada, essencialmente, por negros e negras, vindos do Arraial de Santo Antonio, na região do Salto do Itiquira. Ali viveu, segundo se conta, a negra Balbina, primeira mulher de que se tem notícia na história de Formosa.

Provavelmente na mesma época, no século 18, Tereza de Benguela, esposa do líder quilombola José Piolho, tornou-se rainha do Quilombo de Quariterê, no Mato Grosso. Visionária, a negra Tereza criou um parlamento local, organizou a produção de armas e alimentos, e criou, no próprio Quilombo, uma próspera fábrica de tecidos, todos eles vendidos nas vilas e comunidades próximas ao Quariterê de Tereza de Benguela.

No , a Lei 12.987, de 2014, honra o protagonismo e a resistência da Mulher Negra em nossa história, estabelecendo o 25 de julho como o Dia Nacional Tereza de Benguela. Nessa semana em que Formosa, nossa amada cidade de negras, caminha para o seu 177º aniversário, no primeiro dia de agosto, urge celebrar nossa negra,  traduzida no exemplo combativo de luta e resistência da Professora Nilza, essa fantástica preta nossa de Formosa!

Salve, #ProfessoraNilza!  #SalveJorge!  #SalveFormosa!

Fotos: Acervo Professora Nilza

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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