O CERRADO NA ENCRUZILHADA DE UM FUTURO NÃO TÃO DISTANTE
Há cerca de dez anos, dei uma entrevista para o jornal Opção, de Goiânia, que alcançou grande repercussão. Antes, já havia escrito vários artigos científicos sobre a extinção do Cerrado, sobre queimadas, e temas climáticos, todos com abrangência baixíssima, em comparação à entrevista.
Por Altair Sales Barbosa
Não sei se foi por causa da linguagem, ou se foi em virtude do alcance do jornal. O fato é que a repercussão da entrevista rendeu várias indagações e atitudes, em diferentes pessoas e grupos de pessoas e até movimentos surgiram em algumas partes do Brasil, como consequência da entrevista.
Volta e meia, depois de alguma palestra, proferida no Brasil e no exterior, surge sempre uma pergunta com base naquela interlocução, o que me obriga a explicar tudo novamente, só que num espaço de tempo mais curto, limitado ao contexto de uma palestra.
Essas perguntas também me causavam muitas indagações e inquietações que, aliadas aos princípios de honestidade e responsabilidade que sempre me acompanharam, revisitei, principalmente nos últimos cinco anos, alguns locais estratégicos citados na entrevista, mas que me inquietavam, em virtude da falta de dados mais precisos. Os que obtinha eram provenientes de notícias vagas, a mim enviadas por ambientalistas, e surgidos posteriormente à entrevista.
Confesso que cada situação que constatava era mais degradante que a descrita na entrevista, fato que sempre me deixou muito triste, pois pude constatar que minhas palavras não foram levadas em consideração e que o ato da educação vai muito além das palavras.
Entretanto, se não houver uma mudança radical na forma de como vemos o mundo, as relações sistêmicas, os avanços da ciência associados aos avanços da tecnologia, e se não formos capazes de tirar a venda da ignorância e do egoísmo que encobre nossa visão, talvez antes que chequemos ao ano 2125, dois cenários, cujos vislumbres já despontam no horizonte, estão aguardando de braços abertos nossos futuros descendentes.
A ENCRUZILHADA DO PRIMEIRO CENÁRIO

A retirada total da cobertura vegetal já afetou de forma decisiva a já reduzida recarga dos aquíferos, cujas reservas chegarão a um nível crítico, pois as águas pluviais que conseguirem penetrar através do solo serão de imediato absorvidas por estes, em virtude dos seus estados de aridez em função da insolação. A pouca umidade retida se evaporará de forma rápida devido às mesmas causas.
No início, os problemas oriundos dessa situação poderão ser contornados com a construção de barramentos com curvas de nível e pequenos açudes, para reter as águas das chuvas. Entretanto, os ambientes que surgem desse processo têm caráter bêntico, fato que origina a argilicificação e a consequente impermeabilização do fundo dos poços que, associada à forte insolação, resultará numa ação de nula eficácia.
O primeiro aquífero a ter suas reservas diminuídas será o Urucuia (até o quase total desaparecimento), seguido do aquífero Bambuí e do aquífero Guarani.
Com o desaparecimento do lençol freático, seguido da diminuição drástica da reserva dos aquíferos, os rios iniciarão um processo de diminuição da perenidade, oscilando sempre para menos, entre uma estação chuvosa e outra, e desaparecendo quase por completo na estação seca.
Esse fato afetará primeiro os pequenos cursos d’água, depois os de médio porte e, em seguida, os grandes rios. Os fenômenos ocorridos nos chapadões centrais do Brasil, em função do desaparecimento do Cerrado, afetarão de forma direta várias partes do continente.
A parte sul da calha do rio Amazonas, representada pelos baixos chapadões, terá uma rede de drenagem insignificante no que diz respeito ao volume d’água, uma vez que os grandes afluentes da margem direita, que têm suas nascentes e seus alimentadores situados no Cerrado, deixarão de existir ou terão seus volumes diminuídos de forma significativa nos cursos superiores e médios.
Os grandes afluentes do rio Amazonas, pela sua margem direita, serão alimentados apenas nos seus cursos inferiores, fato que reduzirá em mais de 80% suas vazões. A floresta equatorial deixará de existir na sua configuração original, sendo paulatinamente substituída por uma vegetação rala tipo caatinga, salpicada em alguns locais por espécies de plantas adaptadas a um ambiente mais seco.
O vale do Parnaíba, englobando a bacia geológica Parnaíba-Maranhão, será invadido na direção sul/norte por dunas arenosas secas, provenientes da formação Urucuia, existente no Jalapão e Chapada das Mangabeiras. E, na direção norte/sul, por sedimentos arenosos litorâneos que caracterizam os Lençóis Maranhenses e Piauienses que, em virtude de condições favoráveis, terão facilidade de transporte eólico em direção ao interior.
Os atuais poços jorrantes do vale do Gurguéia deixarão de ser fluentes. O próprio rio Gurguéia desaparecerá, projetos como o MATOPIBA serão responsáveis por esse processo.
Com o desaparecimento dos principais afluentes do rio São Francisco, pela sua margem esquerda, que cortam o arenito Urucuia, a ausência de alimentação constante, associada ao assoreamento, contribuirá para o desaparecimento do grande rio, nos seus aspectos originais. Permanecerão algumas lagoas e cacimbas onde o terreno tiver característica argilosa ou outra rocha impermeabilizante originária da metamorfose do calcário Bambuí.
A Caatinga, que já caracteriza parte do curso inferior do rio São Francisco avançará um pouco mais em direção ao norte, transicionando paulatinamente para a formação de uma grande área desértica, que certamente abrangerá o centro, o oeste, o sul da Bahia e norte e centro de Minas Gerais.
A região da Serra da Canastra permanecerá com alguns elementos originais como uma espécie de enclave geoecológico, com clima subúmido.
Nas áreas correspondentes aos formadores e bordas da Bacia Hidrográfica do Paraná, as desintegrações intensas dos arenitos Botucatu e Bauru, que já formaram na região grandes desertos durante os períodos Triássico e Cretáceo, abrangendo um período de tempo compreendido entre 245 a 70 milhões de anos antes do tempo atual, com pequenas variações de tempo, acordarão de um sono profundo, expandindo seus grãos de areia em várias direções, provocando erosões colossais, assoreamento e acúmulos de sedimentos na configuração de dunas.
Do curso médio da Bacia do Paraná até a parte superior de seus afluentes, haverá muitas áreas desérticas, separadas por formações rochosas ostentando vegetação de características áridas e semiáridas.
A sub-bacia do rio Paraguai, alimentada pelo aquífero Guarani, sofrerá as mesmas consequências das demais regiões hidrográficas do Cerrado, transformando o atual Pantanal Matogrossense numa área de desertos arenosos, tal como já ocorreu na região durante o Pleistoceno Superior, quando ali existia o deserto do Grande Pantanal.
Logo após o desaparecimento por completo das comunidades vegetais nativas, fato que poderá ocorrer entre dez e trinta anos, a agroindústria terá seus dias de grande apogeu em termos de produtividade.
Os núcleos urbanos criados ou dinamizados como suportes dessas atividades atingirão também seu apogeu em termos de aumento demográfico e em termos de ofertas e oportunidades de serviços de natureza diversa.
Passado certo tempo, contado em alguns poucos anos, essa realidade experimentará um grave processo de modificação. A produtividade agrícola começará a diminuir assustadoramente, causando ondas de demissões nas empresas estabelecidas. Isso acontecerá porque a água dos lençóis subterrâneos não será mais suficiente para sustentar a produção no sistema de rotatividade de antes. Não haverá água para fazer funcionar os pivôs centrais. A atividade agrícola sobrevivente se restringirá à época da estação chuvosa, que já se manifesta com instabilidades sazonais.
Os solos, outrora preparados intensivamente para os cultivos, serão ocupados em pequenas parcelas, deixando exposta uma grande superfície desnuda. Da mesma forma, as pastagens que sustentavam a pecuária encontrar-se-ão afetadas, o que provocará a redução paulatina do rebanho.
Essa situação começará a se refletir de forma visível nos polos urbanos. Haverá racionamento de água, em função da diminuição da vazão dos rios e da consequente redução do nível dos reservatórios. O racionamento de energia elétrica também será imposto pelas mesmas causas. O desemprego e os serviços, antes fartos e variados, afundarão numa crise sem precedentes.
Isso provocará o aumento de pessoas ociosas e vadias nas cidades, situação que criará enormes embaraços sociais desagradáveis, como a intensificação da criminalidade de todas as espécies, desde pequenos furtos, saques, assaltos e assassinatos.
A prostituição se generalizará, trazendo consequências consideráveis para a saúde pública, que estará cada vez mais decadente. Os serviços públicos incluindo a educação, por falta de arrecadação e manutenção, começarão a beirar o caos.
Depois de aproximadamente uma década, a ausência de água nos rios criará uma paisagem desoladora. Áreas outrora ocupadas pelas lavouras serão caracterizadas por formas vegetacionais rasteiras e exóticas, típicas de formações desérticas, com um ciclo vegetativo muito curto.
Grande parte dos campos agrícolas abandonados, sem a cobertura vegetal necessária para fixar o solo, passará, durante algumas épocas do ano, a ser assolada por ventos e tempestades fortes, que criarão uma atmosfera escura, carregada de grãos finos de poeira em extensões quilométricas.
Será possível ainda avistar um ou outro ser humano vivente, utilizando água empoçada, provavelmente de chuvas, e exercendo pequenas atividades de subsistência. Também será possível encontrar uma ou outra família desgarrada e solitária, sobrevivendo de restos que ainda poderão ser obtidos. Os mais bem situados economicamente migrarão para outros locais.
Os polos urbanos serão assolados por diversas epidemias, que provocarão índices alarmantes de mortalidade. A maioria da população sucumbirá diante da miséria crescente.
A fauna nativa praticamente desaparecerá, mas ainda será possível observar alguns urubus e outras aves de rapina. A população de ratos aumentará descontroladamente num primeiro momento, contribuindo também para o aumento da população de felinos, outrora domésticos. Mesma sorte, porém, não será compartilhada pelos cães, que no início desenvolverão alguns hábitos selvagens, mas não terão êxito na sobrevivência.
Passadas aproximadamente duas décadas, praticamente não existirão mais formas efetivas de população humana.
A população de ratos e gatos diminuirá de forma brusca e outros grupos de animais como répteis, tanto pequenos lagartos e cobras, começarão a aparecer em certos locais. Também será possível observar aracnídeos e insetos, dentre estes, pequenos besouros e escorpiões.
A ENCRUZILHADA DO SEGUNDO CENÁRIO
Outro cenário que também já desponta no horizonte poderá, de certa forma, amenizar os impactos mais violentos do primeiro cenário descrito, em decorrência da evolução tecnológica.
Há bem pouco tempo seria possível descrever a humanidade atual como o resultado de dois processos evolutivos que se sobrepuseram ao longo do tempo: a evolução biológica, que compartilha com os demais seres vivos e que fundamentalmente consiste na transferência de adaptações biológicas que facilitam a sobrevivência e a seleção das espécies, e a evolução cultural, resultado dos avanços tecnológicos logrados pela espécie humana em sua evolução biológica.
A evolução cultural tem significado, por um lado, a organização do homem em grupos sociais que têm gerado problemas demográficos, problemas de saúde, problemas de educação, problemas institucionais etc.
Por outro lado, ela agregou ao fluxo básico de energia, de informação e de circulação de matéria o fluxo do dinheiro, como resultado dos intercâmbios e das transações, gerando uma série de variáveis econômicas relacionadas com produção, capital, trabalho, comércio, indústria, consumo, níveis de preços, planificação de inversões, maximização de ganho, transferências de tecnologias etc.
A aplicação das diversas tecnologias sobre as biogeoestruturas naturais originou diversas manufaturas, tais como: artesanato, instrumentos, maquinários etc., e deu origem a uma grande quantidade de ecossistemas artificiais, cidades, metrópoles, megalópoles, campos de cultivos, áreas de pastoreio, pastagens artificiais, represas, canais de regadio, rodovias, vias férreas, aeroportos, grandes usinas, complexos atômicos etc.
Por último, a evolução cultural tem originado uma série de estruturas culturais ou ideofacturas: ideias filosóficas, crenças, conhecimentos, valores, normas etc.
Se tudo isso, aliado aos avanços eletrônicos, já nos causa surpresas às vezes desagradáveis e espantosas, devemos nos preparar muito mais para o que nos aguarda: os resultados da engenharia genética, as possibilidades incertas da inteligência artificial, a vida biônica e até a possibilidade de outras vidas. Somos mais poderosos do que nunca.
Desde o início da década de 1970, como simples professor universitário, eu procurava colocar para meus alunos esses tipos de conhecimento e preocupações, frutos de minhas pesquisas, tanto aquelas desenvolvidas em campo, laboratório, como também fruto da leitura de centenas de livros. Às vezes, até achava que estava exagerando quando falava do desaparecimento dos rios, dos ambientes naturais, ou mesmo quando ousava predizer sobre o futuro do homem, sua liberdade e felicidade etc.
Entretanto, o tempo se encarregou de trazer a certeza das preocupações. Não é preciso ter cérebro brilhante nem ser um gênio da futurologia para sabermos que, de uma forma ou de outra, a bomba Z já foi plantada.
Também não é necessário ser genial para perceber que vivemos num planeta inteligente, cuja capacidade foi adquirida ao longo de bilhões de anos de experimentação e evolução e que, por isso, cobra caro pelos desequilíbrios provocados pelas intervenções mal planejadas.
A revolução cibernética, que não veio sozinha, trouxe no seu bojo uma série incontável de invenções, com impactos profundos na humanidade atual e na perspectiva do futuro. Essas explosões estão criando super-homens com incomensuráveis poderes.
Um desses poderes se refere ao conhecimento atômico, com as infindáveis possibilidades que a fissão e a fusão nuclear podem oferecer, desde a possiblidade da destruição em massa, até a capacidade de implantação de grandes usinas atômicas, capazes de produzir energia, num momento crucial, depois que a humanidade descobriu que as reservas de combustíveis fósseis são finitas. É crescente a limitação imposta ao uso desses combustíveis, por discursos mais recheados de ideologia que de embasamento científico.
A dessalinização da água do mar, também fruto da implantação dessas usinas, pode brindar o exponencial crescimento da população humana com o fornecimento de água potável.
Seguindo os exemplos acima, a busca constante por motores elétricos e por fontes eólicas de produção de energia tem trazido perspectivas cujas consequências apenas começam a se delinear.
Desde o evento televisivo que transmitiu para o mundo a chegada do primeiro ser humano à lua em 1969 e, em seguida, a transmissão também em caráter mundial da copa do mundo de futebol, realizada no México em 1970, descobriu-se que a televisão, tal qual o rádio no início, tinha um poder magnifico de manipular massas e difundir informações em nível mundial, com a criação de cadeias globais.
Os cursos de jornalismo e outros intimamente ligados tiveram uma explosão mundial. No início, a ética era a estrela guia, mas logo em seguida os donos dessas corporações descobriram que esses meios eram instrumentos importantes para imporem suas “verdades” e logo se transformaram em senhores poderosos.
A manipulação estava apenas no início, mas, como um raio, logo atingiu os sistemas nervosos de grande parte da humanidade, mudando crenças, hábitos, e provocando o comodismo, que é a antessala da alienação.
No mesmo caminho surgem o raio laser, as micro-ondas, que vão revolucionar os telescópios, que irão revolucionar a nossa visão do universo e proporcionar o aparecimento de incontáveis formas de meios de comunicação, causando um transtorno nunca visto na história da humanidade. Se as migrações modernas já haviam proporcionado uma grande mestiçagem genética, agora a humanidade está diante de uma mestiçagem cultural sem precedentes.
O fato é que a teoria de sistemas, a teoria do caos, foi reforçada no âmago da sua compreensão, e o Homem pode compreender que seu novo mundo é agora o universo. Esse fato o impulsiona à busca de um novo arranjo dos sentidos individuais e coletivos e à busca de novos modelos educacionais de ensino e aprendizagem.
Junte-se a todos esses ingredientes os avanços da genética, a partir da descoberta do ácido ribonucleico na década de 1960, capaz de modificar o ser humano. Isto sem contar os tranquilizantes, os excitantes e outros capazes de criarem novas percepções.
É preciso compreender que um Novo Mundo já começou, e a
revolução, que está contida nele, é imprevisível. No início, essas situações provocarão, nos centros habitados, vários distúrbios sociais que serão controlados por soldados robotizados, ordenados por organizações poderosas, controladoras dos poderes, que procurarão criar várias formas de manipulação geral, através de espetáculos alienadores, sombrios e escabrosos.
Entretanto, a escassez de alimentos e o racionamento do uso da água e da energia sempre serão combustíveis para pequenas e grandes insurreições.
Os seres humanos, cada vez mais serão afetados por transtornos mentais e novas patologias. Os índices de suicídios serão alarmantes. Por fim uma nova adaptação está à espera. Se não, uma extinção em massa varrerá parte da humanidade da face do Planeta Terra.
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p style=”text-align: justify;”>Altair Sales Barbosa – Doutor em Antropologia e Geociências ela Smithsonian Institution – Washington, DC. Sócio Emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Pesquisador do CNPq. Professor Visitante da UniEvangélica. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri. Foto: Wikimedia.