Círio de Nazaré

O CÍRIO E OUTRAS PROCISSÕES DO BRASIL

Jaime Sautchuk

A sensação que se tem é de que o mar toma as ruas de Belém do Pará. Um mar de gente. São pessoas do estado inteiro, do restante da , de todo o Brasil e até de outras partes do mundo. Chegam a pé, de barco, por todos os meios e caminhos, e nos últimos tempos têm somado mais de 2,5 milhões de almas.

Assim é o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, celebração realizada há 226 anos, no segundo domingo de outubro, na capital paraense. É um momento de encontro da sociedade na fé, na devoção, no civismo e na pura diversão, que vai muito além do seu caráter religioso.

Há manifestações carnavalescas, de grupos étnicos, de gênero, de protesto, de carimbó, de lundu e de outros ritmos regionais, inclusive contemporâneos, como a lambada. A cultura se sobrepõe, agregando ano a ano novas manifestações, e por isso o evento é considerado da Humanidade, pela Unesco.

Em verdade, eventos de rua (e de rios) relacionados à Festa de Nazaré ocorrem desde uma semana antes, em Belém e nas ilhas da região. Alguns são de caráter puramente religioso, outros são laicos, profanos até, mas não amaldiçoados, pois todos convergem no rumo da grande procissão no segundo domingo de outubro.

PASSEIO DA SANTA

O Círio se dá em torno da imagem de Nossa Senhora de Nazaré, uma estatueta esculpida em madeira, encontrada no ano de 1.700 por um caboclo, junto ao igarapé, ou córrego Murutucu. Ali mesmo,ele ergueu uma capelinha, hoje transformada na suntuosa igreja Basílica Santuário de Nazaré, na cidade de Belém. Mas a procissão só surgiu 93 anos depois.

Várias pesquisas históricas contam que, por diversas vezes, a imagem sumiu dali, mas sempre reaparecia misteriosamente, o que era tido como milagre. Transferida pra capela do palácio do governo da província, também sumia e reaparecia ao lado do igarapé. Surgiu uma vila ao redor do local, o Arraial de Nazaré, que atraía romeiros o todo, em busca de proteção contra as frequentes epidemias que assolavam a região.

Em 1774, a estatueta foi levada a Portugal, de onde tinha vindo, pra ser restaurada, pois não havia santeiros habilitados naquela parte da colônia. Na volta, quase um ano depois, foi recebida com festa no cais do porto e transportada em procissão de volta ao palácio, mas a celebração ainda não era autorizada pela Coroa nem pelo Vaticano e era necessário o aval da Rainha e do Papa.

Foi assim até que, em 1793, o então capitão geral (governador) da província do Rio Negro e Grão-Pará, Francisco de Souza Coutinho, adoeceu e atribuiu sua recuperação à santa de Nazaré. Resolveu por isso devolver a imagem à sua capelinha do arraial, o que foi feito em uma procissão no início da noite, sendo necessário o uso de grandes velas (os círios) acesas. Foi a primeira procissão, que recebeu o nome de círio e passou a ser repetida todos os anos desde lá.

É certo que houve períodos de alguns anos, ainda no século XIX, em que a hierarquia católica se indispôs com organizadores e se afastou dos preparativos, mas a procissão saiu do mesmo jeito. Ficou claro, assim, que desde aqueles tempos o evento já não era uma possessão da Igreja, pois esta não detinha mais o controle exclusivo sobre os festejos, não apenas rituais.

Mesmo com a volta da harmonia, houve mudanças com o passar dos anos, inclusive no trajeto e horário, até chegar ao seu formato atual. A mais importante talvez tenha sido a perambulação da imagem por localidades das inúmeras ilhas da Bahia do Guajará, onde também está Belém, nos dias que antecedem ao da procissão.

Já durante setembro, inúmeras ações da Igreja são apresentadas como preparatórias. São missas, seminários, encontro de jovens, mas tudo no âmbito interno. E este ano houve também a eleição do novo coordenador da Diretoria da Feira de Nazaré, o reitor da Basílica de Nazaré, padre Luiz Carlos Nunes, a quem cabe cuidar da parte litúrgica do evento, o que repercute nos horários e na organização da parte formal dos festejos. Mas isso é só uma parte do enredo.

Como atividade formal, mas já festiva, no sábado à tarde, a imagem da santa sai de Marituba e Ananindeua, em procissão fl uvial. São barcos de todos os tipos, desde as chatas que transportam automóveis e iates até os pequenos botes de pescadores, todos enfeitados com muitas fi tas, fl ores e balões, e disparando fogos de artifício e as buzinas que tiverem.

Ao chegar ao porto de Belém, uma multidão aguarda a chegada, também com fogos. Dali, a imagem sai em carro aberto, dentro de uma berlinda de vidro, sendo seguida por um cortejo de milhares de motoqueiros, em frenético buzinaço, indo até o Colégio Bittencourt, uma antiga instituição educacional católica, onde passará o dia em exposição.

No início da noite, após a celebração de missa, a santa sai de novo pelas ruas de Belém, numa procissão à luz de velas, imitando aquela de 1793, até a Catedral de Belém, onde passa a noite de véspera, sob permanente visitação. Enquanto isso, contudo, a cidade já está em festa. E as casas, lojas, muros e outras edificações do trajeto são pintadas e enfeitadas

com desenhos, fi tas e fl ores.

TAMBORES DA LIBERDADE

A festa do Círio é, desde o sábado, um grande conclave democrático, que segue preceitos litúrgicos, mas também acolhe com aconchego materno os mais diversos tipos de manifestação. Um evento que abarca muitos outros eventos, profanos, de caráter político ou puramente carnavalesco, que colocam no mesmo balaio o discurso ofi cial e muitas outras falações.

Um caso exemplar é o da chamada Festa das Filhas da Chiquita, concorrida passeata gay, que desde a década de 1970 encontra ali um espaço pra se manifestar, cada ano mais volumosa. Ocorre como se fosse uma continuação da procissão das velas que leva a imagem da santa do Colégio Bittencourt à Igreja da Sé, na noite de véspera do Círio, com suas fantasias, bonecos e pequenos carros alegóricos.

E é organizada pelo movimento LGBT, que no Pará tem como líder o cantor e agitador cultural Eloy Iglesias. No momento em que a manifestação das chiquitas completa 40 anos, ele repete com frequência que aquele foi um espaço pioneiro no Brasil da luta por reconhecimento que trava a comunidade gay por reconhecimento e inclusão.

Outra manifestação já tradicional também, com mais de três décadas, é o Arraial da Pavulagem, que valoriza os ritmos, danças, brinquedos e outras festas populares do Pará e de toda a Amazônia. Sai já no sábado à tarde e ajunta milhares de pessoas na mesma Praça da República que à noite receberá as Filhas da Chiquita e depois percorre o trajeto que o Círio fará no dia seguinte, passando pelo mercado e o centro antigo da capital paraense.

As raízes da cultura regional afl oram na avenida. Junto, vem o “Cordão do Peixe-boi” e o “Cordão da Cobra Grande”, que lembram os brinquedos em madeira da palmeira miriti, artesanato de Abaetetuba e de outras cidades do interior do Pará. São flexíveis, com as partes conectadas por arames, imitando cobras, jacarés e outros . A madeira branca, bem leve, é desenhada e pintada com tinturas do mato.

Nas ruas, esses brinquedos são reproduzidos em formas gigantes e carregados sobre as cabeças por foliões da pavulagem – a palavra é sinônimo de fanfarrice, quixotismo, bravata ou presepada. Ali, essas peças são feitas com material reciclável, como garrafas pet, retalhos de tecidos e bolas de borracha, e requebram no meio da multidão, ao som de músicas regionais.

Nisso também o grupo do Arraial da Pavulagem é craque. As danças, enfeites, ritmos e letras das músicas são coletadas nos mais remotos rincões da Amazônia. Vêm de manifestações de todo tipo, inclusive festas juninas, de reis, boi- umbá, rodas de carimbó, lundu, siriá e outras variedades musicais.

Também os instrumentos tocados pelo grupo nas ruas de Belém são reproduções daqueles usados nos locais de origem, sejam eles de percussão, sopro ou cordas. O mesmo corre com as vestes e adornos.

Círio de Nazaré
Após a tradicional missa em frente à Catedral de Belém, a procissão do 224º Círio de Nazaré começou um pouco antes das 06h30 e carregou um mar de gente em torno da berlinda com a imagem da padroeira do povo paraense e Rainha da Amazônia: Nossa Senhora de Nazaré.
FOTO: THIAGO GOMES / AG. PARÁ DATA: 09.10.2016 BELÉM – PARÁ

NOVOS FIÉIS (OU FOLIÕES)

Todos os anos, a Festa do Círio traz novidades. São grupos de fi – éis e foliões que se manifestam das mais diversas formas. A Romaria dos Poetas, por exemplo, surgiu nos últimos anos e tem por base poetas e escritores que se agrupam nos dias que antecedem o Círio pra leitura de textos em lugares públicos de Belém, acompanhados por percussionistas que fazem a trilha sonora dos saraus itinerantes.

No domingo da procissão, no entanto, é que aparece grande variedade de outras manifestações de grupos étnicos, profissionais, religiosos, de gênero e de outras naturezas. Nos últimos anos, até grupos de evangélicos têm sido vistos em meio às hordas de caminhantes. E grupos políticos se renovam, portando faixas e cartazes com as demandas que estejam em voga.

De igual modo, dias antes da procissão milhares de romeiros chegam a Belém em carroças, lombo de animais, bicicleta e principalmente a pé, sem falar na grande quantidade que se move em pequenos botes pelas águas que vão bater na costa belenense. A maioria leva dias pra chegar, quase sempre sem dinheiro, levando apenas alguma e bebida nas bolsas e alforjes, e sem apoio logístico.

Por isso, em 2016 a Diretoria da Festa de Nazaré criou o projeto “Peregrinos de Nazaré”, que conta com apoio de vários órgãos governamentais, inclusive a Polícia Rodoviária Federal e as secretarias de saúde dos municípios da região e do estado.

Esbarra, porém, em um problema burocrático: os viajantes solitários ou em grupos devem preencher antecipadamente um formulário, disponibilizado na Internet, pra assegurar o apoio. Pode- se deduzir, pois, que esse é um obstáculo quase intransponível à grande parte, senão esmagadora maioria deles.

Círio de NazaréDe todo jeito, há também os turistas que lotam a rede hoteleira de Belém nos dias do Círio, dos hotéis de luxo às modestas pousadas. Eles chegam de outras partes do país e mesmo do exterior, por avião ou navio, e no ano passado somaram perto de 100 mil pessoas. Muitos desses fi cam em arquibancadas montadas no percurso, com ingressos revertidos aos festejos do ano seguinte.

O DOMINGO DO CÍRIO

É certo que desde a noite de sábado multidões já se aglomeram nas proximidades da Catedral, na Praça da República, e em vários pontos do trajeto de 5 km que será percorrido no domingo de manhã, até a Basílica de Nazaré. Mas o horário de início e fi m da marcha é definido pela Igreja, pois segue a imagem da santa.

Em 2018, ficou definido o horário de 6 da manhã, após missa que se inicia às 5h, com a chegada pouco antes do meio- ia. Houve períodos em que a caminhada se prolongava até o final da tarde, provocando uma série de problemas que as equipes de saúde e de segurança não davam mais conta de controlar. Desmaios e brigas eram os mais frequentes.

A segurança na procissão, aliás, é feita por uma guarda própria, que hoje tem uns 2 mil componentes, entre homens e mulheres, e pela Polícia Militar, com mais de 3 mil soldados. O Batalhão de Infantaria de Selva (BIS) do Exército e o de Bombeiros dão apoio, além da Polícia Civil, que reforça o policiamento. São instaladas 20 plataformas elevadas, onde ficam contingentes de PMs e bombeiros, com visão panorâmica de cada trecho do percurso.

Uma das funções principais da guarda do Círio é proteger a berlinda de vidro onde está a imagem da santa e a corda- uia em que muita gente disputa pra se agarrar durante a marcha. É uma corda grossa, tipo aquelas que amarram navios nos portos, feita de fibra de sisal, enleada por um arame fi no, com perto de 500 m de comprimento.

Ela fica presa ao carro que leva a santa e estendida pra frente, como manda a tradição. Sua origem está na procissão de 1855, quando a carroça que transportava a imagem da santa atolou na lama e os animais não davam conta de tirá-la de lá. Um dono de armazém do cais emprestou uma corda, que foi presa à carroça e os romeiros puxaram. Virou parte do evento.

A guarda junto dela tem dupla função. Primeiro, evitar conflito entre peregrinos que disputam espaço junto a ela. Segundo, evicorda transportar que ela seja picotada por esses mesmos peregrinos, pois muitos querem levar um pedacinho como relíquia.

Também é muito disputado o lixo deixado pela multidão, considerado um luxo pelos catadores de Belém. Quase não há restos orgânicos. . São dezenas de toneladas garrafas pet, latas de alumínio, sacos plásticos e copos de água mineral. Depois de separado, todo o material é vendido e se transforma em renda para famílias de catadores, que formam diversas cooperativas.

Logo após a procissão, a multidão abarrota um enorme barracão onde é servido um almoço com pratos típicos do Pará. As áreas de comércio popular, como o enorme mercado Ver-o-peso, também ficam lotadas, mas a festa ainda não terá terminado.

Nas semanas seguintes, muitos outros eventos do Círio ainda ocorrerão, a começar por uma procissão menor, no domingo seguinte, em que crianças e idosos com dificuldade de locomoção seguem a imagem da santa pelas ruas próximas ao Santuário de Nazaré. Em verdade, durante o ano todo há eventos relacionados a essa procissão, um símbolo do Pará.

BRASIL AFORA

O Círio de Nossa Senhora do Nazaré é considerado a maior procissão religiosa do Brasil e do mundo, em volume de pessoas. Mas há centenas de outras, com formatos e tamanhos variados, mas todas representativas de um tempo e uma cultura, um pouco da história das cinco regiões do país. Selecionamos meia dúzia delas, como exemplos, que passamos a descrever de modo sucinto.

DESFORRA DOS ESCRAVOS

A segunda quinta-feira de janeiro é um dia normal, não é feriado em Salvador, na Bahia. Mas a cidade para. É dia da procissão da Lavagem da Igreja do Bonfim, uma tradicional encenação da desforra dos escravos diante da elite branca que, em 1773, os proibiu de entrar naquele templo católico.

Desde três décadas antes, era realizada a Festa do Bonfim no segundo domingo de janeiro. Os escravos negros não participavam desse evento, mas eram obrigados a lavar a igreja dias antes. A tarefa, porém, era cumprida em meio a cantorias em louvor a Oxalá, o orixá que corresponde a Jesus no sincretismo religioso.

Isso fez com que eles fossem impedidos de entrar no templo, só lavando suas escadarias e adro, mas as portas eram fechadas aos negros. Só que, com o passar dos anos, o ritual da lavagem se tornou muito maior do que a festa, tradição que se transformou na principal manifestação da cultura popular baiana, depois do carnaval.

Por volta das 8 horas da manhã, um grupo de baianas do , devidamente paramentadas, portando vasos de água de cheiro e vassouras, sai de junto da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e toma a dianteira de uma caminhada de 8 km até a Colina Sagrada, onde está o Bonfim. Logo em seguida, sai o bloco afro Filhos de Gandhi, com seus 6 mil figurantes, carroças enfeitadas com fi tas e e o povo em geral.

Esse local da partida é uma praça que fica ao lado do Mercado Modelo e do Elevador Lacerda, dois conhecidos pontos turísticos da capital baiana. Desde ali, muitos grupos de percussão se revezam na animação da caminhada.

O caminho percorrido é pela Cidade Baixa, área mais pobre de Salvador, percurso o dia inteiro repleto de romeiros, muitos dos quais turistas, que cultivam o costume de aspergir água de cheiro uns nos outros. Quase todos trajam roupas brancas, formando um extenso tapete alvo.

CIDADES HISTÓRICAS DE MINAS

É certo que as principais cidades históricas de Minas Gerais são palcos de verdadeiras romarias o ano inteiro. A religiosidade é seu maior e mais rentável atrativo turístico. Mas é na Semana Santa que são realizadas as mais atraentes procissões, eventos que revelam a crendice e o apego das comunidades locais e encantam até os mais cépticos visitantes.

Ouro Preto, Mariana, São João Del Rei, Diamantina, Tiradentes, Sabará, Brumadinho e Congonhas são algumas delas. Todas encravadas em vãos de montanhas, com traços urbanísticos e arquitetura de uma mesma época (do barroco), dão a sensação de que são iguais, ou muito parecidas. E são mesmo, inclusive na cultura de seu povo.

Círio de Nazaré
Lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim 2013. Fotos: Carla Ornelas/GOVBA

Mariana, antiga capital do estado e depositária de algumas obras de Aleijadinho, talvez seja a que mais bem resume essas características. Ali, como nas demais cidades da região, a procissão de domingo de Páscoa, em que as ruas são cobertas por tapetes de serragem tingida e borra de café, ricamente desenhados, e que atrai maior público. Essa, em verdade, é uma tradição do Brasil inteiro.

Em Mariana, porém, ocorre a Procissão das Almas, que ganha as ruas da cidade após a meia- -noite da Sexta-feira da Paixão, um evento que só existe lá. Apesar do horário, muita gente acompanha essa que, no fundo, é uma evocação à ressurreição de Cristo, celebrada pelos católicos.

Algumas dezenas de voluntários, trajando roupas brancas com capuz, caminham carregando velas acesas e ossos e param diante das igrejas que têm cemitérios para rápidos rituais. Uma dessas pessoas, com uma longa foice às mãos, representa a morte, e os ossos se referem a uma suposta “vida eterna”.

NAS SERRAS DO PARANÁ

Na antiga e bela estrada-de-ferro Curitiba-Paranaguá, a litorina faz mais viagens nas duas primeiras semanas de novembro, quando se realiza a Festa de Nossa Senhora do Rocio naquela cidade litorânea. Também as rodovias que transpõem a Serra do Mar ficam abarrotadas de carros, bicicletas e gente a pé.

O ponto alto dos festejos é a procissão do segundo domingo daquele mês, que todos os anos atrai cerca de meio milhão de fiéis, turistas e festeiros. A romaria é um misto carros, barcos, bicicletas e gente a pé. Nas duas semanas, há uma sequência de ritos religiosos e festas populares, com baladas, gastronomia e shows musicais, com destaque também às comidas e ritmos regionais.

FRONTEIRAS BOLIVIANAS

As danças do siriri e do cururu, típicas da região pantaneira dos dois Matos-Grossos, têm sido um dos pontos altos da Festa de São Benedito, em Cuiabá, nos últimos anos. Os festejos duram a semana inteira, mas têm seu ápice na procissão em louvor ao santo negro, que ocorre no último domingo de junho pelas ruas da capital mato- -grossense.

Ambas as danças usam a viola de cocho pantaneira e ganzá, mas diferem na batida e no formato. O siriri é dançado principalmente por mulheres, trajando saias longas, arredondadas e muito coloridas. Já o cururu é um sapateado tradicionalmente executado só por homens, como até há poucos anos ocorria também com o catira.

Círio de Nazaré

Ambas são originárias de ritos e festas religiosas, em que usavam temáticas litúrgicas. São puxadas por duplas de cantadores, mas o siriri usa letras longas, com as vozes femininas fazendo coro. Já o cururu é um desafio de viola, em que um violeiro lança um tema e o outro rebate, provocando o bate-rebate de improviso.

O ritmo do cururu ficou nacionalmente conhecido quando, em 1910, o folclorista e violeiro Cornélio Pires cantou uma moda nessa toada numa emissora de rádio de São Paulo. Depois, passou a ser um formato muito usado por duplas caipiras famosas. É, no entanto, música de raiz pantaneira.

A festa de São Benedito em Cuiabá atrai gente de toda a região do Pantanal Mato-grossense, da região de fronteira e mesmo da vizinha Bolívia. Um dos temas lembrados com frequência pelos cantadores de siriri e cururu é a Guerra do Paraguai, período em que Cuiabá e toda aquela parte do Brasil esteve sob domínio paraguaio.

SERTÕES DE GOIÁSCírio de Nazaré

O estado mais festeiro do Centro-Oeste brasileiro é, sem dúvidas, o de . Quiçá do Brasil inteiro. Isso muito se deve às suas cidades históricas muito bem preservadas, como é o caso de Pirenópolis e Cidade de Goiás, a antiga Vila Boa, capital do estado até a construção de Goiânia, na década de 1940, e mais conhecida por Goiás Velho.

Há várias outras localidades, também surgidas a partir da ocupação do que é hoje Goiás pelos bandeirantes, nos anos 1720. A elas, somam-se festejos ligados às águas, nas bacias dos rios Araguaia e Tocantins, e cultos indígenas das várias comunidades remanescentes no estado.

A maior de suas festas, em volume de público, no entanto, não está nessas cidades históricas ou ribeirinhas. Está em Trindade, vizinha à capital, Goiânia, e registrada como município já no século passado, em 1923.

Tudo começou, porém, em 1840, quando os lavradores Clementino e Ana Rosa Xavier acharam no campo um medalhão de cerâmica com a imagem da Santíssima Trindade – ou Pai, Filho e Espírito Santo, na crença católica.

O casal passou a fazer rezas em casa, que começaram a juntar gente, e esses fiéis divulgavam supostos milagres que teriam ocorrido a partir desses cultos. Assim, o público foi crescendo continuamente, ano após ano. Hoje, a vila que surgiu no local tem 130 mil habitantes e durante 10 dias, entre o final de junho e início de julho, realiza a Festa do Divino Pai Eterno, que provoca intensa romaria de gente.

Segundo dados do governo do estado, mais de 2,5 milhões de pessoas passaram pela cidade durante os dias da festa, em 2018. São romeiros que chegam de todas as partes de Goiás e estados vizinhos, grande parte a pé, em penitência, e participam de perto de 200 missas e outros ritos religiosos.

ROMARIA CANDANGA

Círio de Nazaré
Brasília – No Distrito Federal, a apresentação do maior espetáculo, a via-sacra do Morro da Capelinha ocorre há 42 anos e, como em todas as edições, atrai uma multidão para o evento religioso (Wilson Dias/Agência Brasil)

No Distrito Federal, a encenação da morte de Cristo, realizada na sexta-feira da Semana Santa, completou este ano sua 45ª edição. A Via-Sacra do Morro da Capelinha, como é conhecida, é realizada na cidade-satélite de Planaltina, que já existia antes do surgimento de Brasília, e neste ano foi acompanhada por perto de 150 mil pessoas.

A representação foi criada por um grupo de teatro local, mas hoje tem a participação de 1.400 voluntários da própria comunidade, 800 dos quais atuando como atores (soldados, apóstolos, Maria e o próprio Jesus), em trajes similares ao da Antiga, e 600 no apoio técnico, na contrarregra.

jaimeDivino Jaime Sautchuk

Jornalista

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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