O compositor Djavan e o racismo no Brasil
Até hoje, negros são confundidos com assaltantes. Eles não precisam estar armados ou com um objeto furtado. Alguma coisa errada eles sempre fazem.
Em recente entrevista ao jornal O Globo, o compositor e cantor Djavan relatou o dia em que foi preso em uma loja de venda de pianos:
“Isso foi uma loucura. Eu estava ali para comprar um piano. Um piano elétrico. E os caras me levaram preso porque não achavam que um negro podia estar numa loja como aquela, pelo menos pra comprar um piano. Achavam que só podia estar ali no mínimo pra assaltar, não é? E me levaram para a Praça da Sé, uma coisa horrível…
Me levaram puxando pelo cós das calças, naquela condição humilhante. Lá na Praça da Sé, na época a gente usava umas bolsinhas a tiracolo, não é? Primeiro, eles me pediram a carteira de trabalho. Eu dei a carteira de músico, que era a minha carteira de trabalho. Eles acharam aquilo ridículo, começaram a rir e falavam: ‘Você vai cantar agora na prisão’. E me levaram…
Chegaram na Praça da Sé, acharam pouco e pegaram a bolsa, despejaram no chão, aí começou a juntar gente. E alguém entre as pessoas me reconheceu e ligou para a Odeon, que era a minha gravadora, e a Odeon mandou um advogado. Mas eu fiquei cinco horaslá dentro da cadeia, junto com os marginais ali até chegar o advogado”.
É escandaloso e dolorido tamanho insulto e agressão a um grande compositor e a qualquer pessoa. Mas tal injustiça no Brasil, para os negros, é comum. Mais de uma vez, em pesquisa pude notar um sintoma da barbárie nacional, quando pude ver que os melhores relatos sobre a nossa escravidão vêm de estrangeiros, como os descritos em Charles Darwin e Vauthier, o engenheiro francês que viveu no Recife. Ou de Maria Graham, a digna escritora que visitou Pernambuco em 1821. Cito as palavras da inglesa:
“Os cães já haviam começado uma tarefa abominável. Eu vi um que arrastava o braço de um negro sob algumas polegadas de areia, que o senhor havia feito atirar sobre os seus restos. É nesta praia que a medida dos insultos dispensados aos pobres negros atinge o máximo. Quando um negro morre, seus companheiros colocam-no numa tábua, carregam-no para a praia onde, abaixo do nível da maré-cheia, espalham um pouco de areia sobre ele”.
Mas na perigosa escrita do sociólogo Gilberto Freyre o mesmo quadro se conta assim:
“Foi numa praia perto de Olinda que Maria Graham, voltando a cavalo da velha cidade para o Recife, viu um cachorro profanando o corpo de um negro mal enterrado pelo dono. Isto, em 1821. Olinda pareceu à inglesa extremamente bela vista do istmo e da praia pela qual, indo do Recife, chegou até o pé dos montes da primeira capital pernambucana”.
Vocês viram: o horror ocupa uma só linha em Gilberto Freyre, perdida na bela vista de Olinda. Quem quiser, confira, essa ocultação do real está em sua Olinda, Guia Prático, Histórico e Sentimental de uma Cidade. E nesse caso, tão brasileiro, pela dissolução da crueldade com ares de fazer graça, piada, entre um pigarro no cachimbo e um costume bárbaro, como quem dilui a violência com um gracejo.
Para mais adiante ser descomido, superado em uma etapa necessária rumo ao lugar onde a verdade da nossa história seja soberana. Até o dia em que se faça um acerto de contas com o passado escravocrata, estudado por ele a partir da casa-grande, que continua viva entre os brasileiros.
Djavan, o Racismo e o Preconceito
Darcy Ribeiro já havia observado que entre os brasileiros a solução do negro se deslocou da raça para a cor. São suas palavras, num enfrentamento com a democracia racial pintada por Gilberto Freyre, sem lhe citar o nome:
“O preconceito nosso é por natureza diferente do preconceito americano. Aqui há um conceito curioso de branquização, o negro quando vai ficando claro, a mestiçagem facilita isso sobretudo quando vai ficando rico, fica branco. Esse preconceito de branquização é um conceito bonito, não é democracia racial. É branquização, é uma possibilidade até preconceituosa de que o negro é aceito como alguém que vai deixar de ser negro, que vai transar com todas as brancas que vão clarear os filhos deles.”
Segundo o mesmo Darcy, até o ano de 1850 cerca de 6 milhões de pessoas negras haviam entrado no Brasil como escravos. No mesmo período, os imigrantes brancos não passavam de 500 mil, e os índios, de 5 milhões de pessoas. É muito estranho, para dizer o mínimo, que um país com essa composição de raças pudesse se tornar um país branco, nas relações com o mundo exterior, que não se engana.
Mas o que se deu? Carregamos nas costas, como um peso vivo, que nos oprime a todos, a colonização portuguesa e a sociedade de classes. Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes, mas a democracia ainda não nos alcança como povo, nem como a nossa própria imagem.
Há uma sobrevivência ideológica, de pensamento racista e excludente, que vai das Escolas Militares às instituições civis. Nós até admitimos que o Brasil seja produto de três raças. Mas – e esse “mas” é tudo – com a parte negra em seu devido lugar. Lá na cozinha, longe da sala de visitas. Não venha o negro manchar com a sua presença a imagem do Brasil…
Fundado em 1978, Movimento Negro Unificado derrubou mito da ‘democracia racial’ e denunciou racismo como problema estrutural. Foto: Jesus Carlos
É preciso todos os dias acordar e arregalar bem os olhos para ver o que a névoa ideológica de séculos não deixa. Isto é, o que mais causa espanto: onde estão os generais, almirantes e brigadeiros negros do Brasil? Onde estão os reitores, presidentes de senado, da câmara, governadores negros? Onde estão as nossas misses e modelos de exportação negras? Onde estão, de modo mais sério, os nossos grandes físicos e cientistas negros?
Essas não são perguntas retóricas. Entendam, porque até os mulatos que pularam a cerca e o cerco da exclusão no Brasil, em um trabalho extraordinário, heroico e colossal de autoeducação, como foi o caso de Machado de Assis, viraram “brancos”.
Vocês lembram, não faz muito um anúncio da Caixa Econômica Federal exibia um Machado de Assis ariano, bem distante do queimadinho de sol. Mas não só ele atesta a nossa glória de nação europeia. Olhem, por exemplo, as imagens que viraram ícones de Carlos Gomes, de Castro Alves, ou num exemplo menos ilustre, de Roberto Marinho. Veem? Viraram todos brancos, ou quase brancos.
Até hoje, negros são confundidos com assaltantes. Eles não precisam estar armados ou com um objeto furtado. Alguma coisa errada eles sempre fazem. Na mais simples, eles furtam mais que valores materiais: furtam a paciência de quem vê aquela cor.
Então não perguntem por que um homem honesto, trabalhador, é confundido com um ladrão sem nunca ter roubado. Pois não veem que é negro? Se não roubou, vai roubar. Se não foi ele, foi seu cúmplice. Perguntem a Djavan. Perguntem a todos os homens e mulheres do Brasil.
Compositor Djavan – Foto: Leo Martins





