O CORPO QUE FALA: A IDENTIDADE À FLOR DA PELE NO FOLCLORE SURDO

O CORPO QUE FALA: A IDENTIDADE À FLOR DA PELE NO FOLCLORE SURDO

O corpo que fala: a identidade à flor da pele no folclore surdo

“O Gesto é anterior à Palavra. Dedos e braços falaram milênios antes da Voz”, já lembrava Luís da Câmara Cascudo em A História de Nossos Gestos, de 1973. Afinal, a corporalidade era meio de e linguagem da espécie humana quando a oralidade ainda engatinhava entre grunhidos, interjeições e onomatopeias.

Esse folclore gestual ainda hoje passa despercebido, tão incorporado que foi ao cotidiano. Ele está nas medidas determinadas pela mão – a pitada, a mão cheia, a palma; na firmeza dos cumprimentos; no bater do pé da insistência; na mão sacudida no ar para indicar algo doloroso – sempre acompanhada de uma expressão de agonia. “O homem do , com as mãos amarradas, fica mudo”, resume Cascudo. Mas não apenas a mão, o corpo todo fala.

Apesar da ressalva daquele que é considerado o maior folclorista brasileiro, nem sempre essa potência do corpo é lembrada quando se pensa na cultura popular de um povo. “Dizemos que folclore é vivo, que está também no gesto, no visual. Mas no momento de escrever sobre ele, resumimos tudo em oralidade”, aponta a professora da graduação em Libras da UFSC, Rachel Sutton-Spence.

Sem esta visão mais complexa, é impossível compreender expressões folclóricas desvinculadas da oralidade. Impossível compreender o que é o folclore do povo surdo.

DEAF-LORE E O POVO SURDO

O CORPO QUE FALA: A IDENTIDADE À FLOR DA PELE NO FOLCLORE SURDO
Arte: Ashley Shaffer

O termo folclore é um neologismo criado pelo escritor britânico William John Thoms, num artigo publicado em 22 de agosto de 1846. É por isso, inclusive, que nessa data se comemora o dia internacional do Folclore.  Folk, vem de povo, Lore de conhecimento, saber. É o saber popular, local, geracional e compartilhado que circula pela e caracteriza um povo.

Em um país continental como o Brasil, existem vários sotaques, hábitos, costumes, mas é no fundo comum do folclore que nos encontramos na experiência de ser brasileiros.

O mesmo acontece ao se pensar no folclore surdo, o deaf-lore, como propôs em 1970 o folclorista americano Simon Carmel. O conceito é mais abrangente que outro também criado por ele, o sign-lore, folclore sinalizado. Isto por que o folclore surdo não é somente sobre os sinais, mas sobre a própria experiência compartilhada de ser surdo. Algo que vai para além dos sinais convencionados universais, ultrapassando qualquer fronteira, país ou idioma.

“Eu já estive em um festival de folclore surdo que reuniu americanos e britânicos”, conta Rachel. “Foi muito interessante, por que a língua de sinais de cada país é completamente diferente uma da outra”. Conscientes disso, os artistas buscaram representar uma essência visual desta vivência. “Os surdos na plateia entenderam tudo. Por outro lado, os ouvintes – mesmo versados na língua de sinais – não conseguiam acompanhar. Faltava a eles essa subjetividade. É uma… coisa de surdo”, resume ela.

Ainda assim, o poder do corpo é tão grande que é capaz de tocar aqueles sensíveis o suficiente para ouvi-lo. Fernanda de Araújo Machado, também professora da graduação de Libras na UFSC, é atriz, poetisa, artista plástica e surda, e foi testemunha desta força. Em 1999 ela compôs o visual Voo sobre o Rio, representando um pássaro que voa sobre o Rio de Janeiro, percorrendo os principais pontos turísticos da Cidade Maravilhosa e, por que não, apaixonando-se no percurso. Nele, a autora foca muito menos em sinais convencionados e mais em dimensões de espaço, e afetos.

“Uma vez havia um pai de um menino surdo na plateia que não sabia língua de sinais. Mesmo assim, ao final da apresentação, ele chorava, chorava… Ele assistia emocionado, por que a questão visual é muito amplificada”. A própria Fernanda não passou incólume a essa experiência. Isto por que mesmo tendo composto o poema, foi apenas em 2011 – graças a filmagem feita por um conhecido – que ela pode se ver o apresentando. “Eu tomei um susto! Quando percebi estava chorando também”. A própria mídia audiovisual privilegia o compartilhamento dessas narrativas. Youtube e Whatsapp se tornaram grandes aliados do povo surdo, mas, obviamente, nada ainda supera o ato de estar presente e em relação.

Assim como o folclore ouvinte caracteriza a identidade do povo que representa, o folclore surdo caracteriza essa identidade de um povo surdo. A transmissão e circulação desses saberes fortalece, para crianças e adultos surdos, o senso de comunidade e pertencimento. Paddy Ladd, pesquisador e ativista surdo da Universidade de Bristol, propôs o termo deafhood, em oposição a deafness – normalmente utilizado para se referir a surdez. É que o último carrega com muita força esta ideia de deficiência, incompletude. Já o primeiro fala sobre o surdo como modo de estar no , com suas próprias características e peculiaridades. São modos de ser, pensar e agir, costurados pela linha guia da cultura.

A  ÁRVORE SURDA – , LENDAS E CONTOS POPULARES

O CORPO QUE FALA: A IDENTIDADE À FLOR DA PELE NO FOLCLORE SURDO
Arte: Ashley Shaffer

Se folclore, como um todo, abrange este aspecto identitário da constituição de um povo, existe um braço dele onde esta força fica ainda mais a flor da pele: é o universo simbólico, dos mitos, lendas e contos. Metáforas vivas do cotidiano, cuja profundidade por vezes não é percebida.

Liina Paales, folclorista da Estônia, faz um percurso histórico sobre os mitos envolvendo surdez na Europa. O mais conhecido, provavelmente, é o deus Heimdall, o guardião da ponte do Arco-Íris da nórdica. Da mesma forma que Odin, o pai de todos, entregou seu olho na fonte de Mirmir em troca de sabedoria, Heimdall entregou seu ouvido. Ao fazê-lo, passou a ouvir o inaudível, escutando tudo o que se passava ao longo dos 9 reinos.

Na Enciclopédia do Folclore Americano, Simon Carmel relata que entre os surdos, o que mais se comenta é sobre pessoas famosas que são parentes de surdos ou capazes de sinalizar. Na própria estátua de Abraham Lincoln, dizem, o presidente estaria sinalizando com os dedos um A e um L. É o desejo de valorar-se em função do outro.

Há ainda uma grande variedade de piadas e contos populares cuja grande força está na interpretação corporal, mas que por motivos de curiosidade vale ser representado em texto. Uma das histórias mais conhecidas chama-se A Árvore Surda. Na história, um lenhador no bosque golpeia as árvores com seu machado. Uma, duas, três vezes. Na terceira, dá o aviso:

– MADEIRA! – e a árvore prontamente cai.

Vai então para uma segunda árvore. Golpeia uma, duas, três vezes e avisa novamente. A grande árvore vai ao chão, sem representar esforço algum para o homem.

Chega então a vez da terceira árvore. Novamente golpeia uma, duas, três vezes e grita. Nada acontece. Golpeia mais algumas vezes e grita de novo. Mais uma vez, a árvore permanece ali, impá, sem esboçar qualquer interesse em cair. O homem então chama um cirurgião de árvores que logo faz o diagnóstico: a árvore é surda! O lenhador então se afasta, e em língua de sinais soletra:

– M-A-D-E-I-R-A! – e finalmente a árvore desaba.

A árvore é uma metáfora frequente na surda, como explica Rachel Sutton-Spence. A imagem transmite a ideia da resiliência e continuidade que o povo surdo precisa ter em um mundo cercado de ouvintes e insensibilidade.

É a mensagem que um outro conto transmite: Árvore, do britânico Paul Scott. Nele, um homem planta uma semente que germina e se torna uma árvore, apenas para ao final, quando ela já está grande e frondosa, derrubá-la com um machado. Mesmo depois disso, de onde ela estava, nasce um broto. “Aqui está a árvore”, encerra o autor.

“No poema, a árvore é cortada para atender às necessidades do homem, assim como a comunidade surda é frequentemente ‘podada’ pelas forças do mundo ouvinte. Mas a árvore cresce novamente, assim como os surdos também sobrevivem frente aos desafios aparentemente impossíveis”, explica a professora.

Fernanda de Araújo Machado, ao recontar a história de Paul, fez algumas adaptações. A árvore, no Brasil, não é plantada por um lenhador, mas por um saci. Nela pousam araras, descansam onças, mas a árvore – e o saci – não conseguem deixar de se sentir sozinhos. Ao final, a árvore não é derrubada. Pelo contrário, ganha a companhia de outra árvore que brota ao seu lado, e agora ambas podem aproveitar a companhia do saci e do sacizinho, filhote, que acaba de chegar.

A história de Fernanda diz sobre o povo, o coletivo, a força que existe no grupo. E nos lembra que folclore – ouvinte ou surdo – é e sempre será resistência.

NOTA DA REDAÇÃO: Este texto foi originalmente publicado no blog Colecionador de Sacis que tem ótimos textos sobre o folclore brasileiro. O blog tem o mesmo nome de uma curta metragem, dirigido por Andriolli Costa, autor desta matéria, a quem agradecemos por nos permitir compartilhar aqui o seu trabalho. As artes que ilustram esta matéria são de Ashley Shaffer. A imagem de capa é de  Nancy Rourke. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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