O EMBRANQUECIMENTO DE JOAQUIM
Este texto, publicado no Caderno 2 da Coleção “História do Negro no Brasil”, pela Revista Caros Amigos, é do historiador, professor e sambista Joel Rufino dos Santos (1941-2015), um dos grandes estudiosos da cultura do povo negro no Brasil
Por Iêda Leal
Por meio dele, o escritor negro, carioca do subúrbio de Cascadura, filho de pernambucanos, por toda sua vida militante da causa negra, autor de mais de 50 livros, coloca o dedo na ferida e nos faz refletir sobre um tema que nos indigna, nos incomoda e nos inquieta: o embranquecimento de lideranças negras ao longo da História.
Didático, o autor da biografia de Zumbi dos Palmares, publicada em 1985 pela Editora Moderna, Joel Rufino resume, em menos de uma lauda, o processo de embranquecimento de Machado de Assis, nosso maior escritor negro de todos os tempos. Vale a pena ler e refletir:
No dia glorioso da fundação da Academia Brasileira de Letras (20 de julho de 1897, houve festa desde cedo. Correspondentes estrangeiros receberam o folheto sobre seu presidente: obras principais, idade, local de nascimento.
Na entrevista coletiva, o representante da Associated Press, que acha poucos aqueles dados, levantou a mão para perguntar em que freguesia da cidade precisamente viera ao mundo, quem eram seus pais. Um colega veterano, do Corriere della Sera, o advertiu ao pé do ouvido:
“Morro do Livramento, centro. Mas não gostam de falar nisso aqui. E outra coisa, é filho de um pintor preto com uma lavadeira portuguesa. Para todos os efeitos, o homem é branco. Aqui não se usa a palavra mulato pra pessoas importantes. Não cometa essa gafe.”
(Todos os dados acima são verdadeiros. O diálogo dos jornalistas estrangeiros é imaginação. Não se faz história sem ela).
Como todo mulato, Joaquim Maria era meio negro, meio branco. Perdera a mãe cedo, foi criado por uma preta doceira, Maria Inês.
No Livramento, em pequenas chácaras que abasteciam a cidade, moravam, como agregados, operários, desempregados, biscateiros, burros-sem-rabo puxadores de carrocinha. Meio caminho entre a vida do campo e da cidade, do Livramento se via ali perto o Morro da Favela, a mais antiga.
Conforme se tornou importante e admirado, na maturidade, os retratos de Joaquim Maria foram retocados para esconder a pele escura, o cabelo, o nariz. Para chegar aonde chegou – o pai da literatura brasileira, presidente perpétuo da Academia Brasileira de Letras – era natural que fosse branco. Tanto que Joaquim Nabuco, seu amigo, ficou aborrecido quando Joaquim Maria morreu e um jornal lembrou que ele era mulato. Para Nabuco, uma ofensa.
No entanto, é assim, sem ofensa, que o famoso crítico americano, Harold Bloom, o situa:
“O gênio da ironia propiciou-nos poucos exemplos à altura do escritor afro-brasileiro Machado de Assis, a meu ver, o maior literato negro surgido até o presente.”
Iêda Leal – Dirigente do Movimento Negro Unificado. Conselheira da Revista Xapuri.