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NARRATIVA KRENAK: O ETERNO RETORNO DO ENCONTRO

NARRATIVA KRENAK: O ETERNO RETORNO DO ENCONTRO

Narrativa Krenak: O eterno retorno do encontro

Esta é uma boa oportunidade para reportar algumas das narrativas antigas de muitas das nossas tradições, das diferentes tribos que vivem hoje nesta região da América que identificamos como o Brasil, mas que, naturalmente, bem antes de identificarmos como essa região geográfica do Brasil, já vinha fazendo história. 

Por

Os registros dessa memória, dessa história, estão tomados de falas, de narrativas em aproximadamente 500 línguas diferentes, só daqui da América do Sul.

Essas narrativas são narrativas que datam dos séculos XVII, XVIII, na língua de alguns povos que nem existem mais. Desde o século XVIII, já eram escritas em alemão, inglês, e distribuídas na Europa, narrativas muito importantes falando da criação do mundo, falando dos eventos que deram origem aos sítios sagrados, onde cada um dos nossos povos antigos viveu na Antiguidade e continua vivendo ainda hoje.

Fico admirado de reconhecermos que em mais de 500 línguas e durante aproximadamente 300 a 400 anos são divulgados textos, como o texto muito importante que tem o título de XilãBalã. O XilãBalã é um texto sagrado, que tem tanta importância para os Maya quanto os textos sagrados da cultura do Ocidente, como a Bíblia ou o Alcorão.

São textos que fundam a tradição e a memória – útero da cultura que cada uma dessas antigas tradições tem do ser social, da história, do mundo, da realidade circundante, e a minha admiração é que esses textos maravilhosos já tenham sido divulgados há tanto tempo, e mesmo assim a maioria das pessoas continue ignorando essas fontes de nossa história antiga.

Como essa história do contato entre os brancos e os povos antigos daqui desta parte do tem se dado? Como temos nos relacionado ao longo desses quase 500 anos? É diferente para cada uma das nossas tribos o tempo e a própria noção desse contato?

Em cada uma dessas narrativas antigas já havia profecias sobre a vinda, a chegada dos brancos. Assim, algumas dessas narrativas, que datam de dois, três, quatro mil anos atrás, já falavam da vinda desse outro nosso irmão, sempre identificando ele como alguém que saiu do nosso convívio e nós não sabíamos mais onde estava.

Ele foi para muito longe e ficou vivendo por muitas e muitas gerações longe da gente. Ele aprendeu outra tecnologia, desenvolveu outras linguagens e aprendeu a se organizar de maneira diferente de nós. E nas narrativas antigas ele aparecia de novo como um sujeito que estava voltando para casa, mas não se sabia mais o que ele pensava, nem o que ele estava buscando.

E apesar de ele ser sempre anunciado como nosso visitante, que estaria voltando para casa, estaria vindo de novo, não sabíamos mais exatamente o que ele estava querendo. E isso ficou presente em todas essas narrativas, sempre nos lembrando a profecia ou a ameaça da vinda dos brancos como, ao mesmo tempo, a promessa de ligar, de reencontrar esse nosso irmão antigo.

Tanto nos textos mais antigos, nas narrativas que foram registradas, como na fala de hoje dos nossos parentes na aldeia, sempre quando os velhos vão falar eles começam as narrativas deles nos lembrando, seja na língua do meu povo, onde nós vamos chamar o branco de Kraí, ou na língua dos nossos outros parentes, como os Yanomami, que chamam os brancos de Nape.

E tanto os Kraí como os Nape sempre aparecem nas nossas narrativas marcando um lugar de oposição constante no mundo inteiro, não só aqui neste lugar da América, mas no mundo inteiro, mostrando a diferença e apontando aspectos fundadores da identidade própria de cada uma das nossas tradições, das nossas culturas, nos mostrando a necessidade de cada um de nós reconhecer a diferença que existe, diferença original, de que cada povo, cada tradição e cada cultura é portadora, é herdeira.

Só quando conseguirmos reconhecer essa diferença não como defeito, nem como oposição, mas como diferença da própria de cada cultura e de cada povo, só assim poderemos avançar um pouco o nosso reconhecimento do outro e estabelecer uma convivência mais verdadeira entre nós.

Os fatos e a história recentes dos últimos 500 anos têm indicado que o tempo desse encontro entre as nossas culturas é um tempo que acontece e se repete todo dia. Não houve um encontro entre as culturas dos povos do Ocidente e a cultura do continente americano numa data e num tempo demarcado que pudéssemos chamar de 1500 ou de 1800.

Estamos convivendo com esse contato desde sempre. Se pensarmos que há 500 anos algumas canoas aportaram aqui na nossa praia, chegando com os primeiros viajantes, com os primeiros colonizadores, esses mesmos viajantes, eles estão chegando hoje às cabeceiras dos altos rios lá na Amazônia.

De vez em quando a televisão ou o jornal mostram uma frente de expedição entrando em contato com um povo que ninguém conhece, como recentemente fizeram sobrevoando de helicóptero a aldeia dos Jamináwa, um povo que vive na cabeceira do rio Jordão, lá na fronteira com o Peru, no estado do Acre.

Os Jamináwa não foram ainda abordados, continuam perambulando pelas florestas do alto rio Juruá, nos lugares aonde os brancos estão chegando somente agora! Poderíamos afirmar, então, que para os Jamináwa 1500 ainda não aconteceu. Se eles conseguirem atravessar aquelas fronteiras, subirem a serra do divisor e virarem do lado de lá do Peru, o 1500 pode acontecer só lá pelo 2010. Então eu queria partilhar com vocês essa noção de que o contato entre as nossas culturas diferentes se dá todo dia.

No amplo evento da história do Brasil o contato entre a cultura ocidental e as diferentes culturas das nossas tribos acontece todo ano, acontece todo dia, e em alguns casos se repete, com gente que encontrou os brancos, aqui no litoral, 200 anos atrás, foram para dentro do Brasil, se refugiaram e só encontraram os brancos de novo agora, nas décadas de 30, 40, 50 ou mesmo na década de 90. Essa grande movimentação no tempo e também na geografia de nosso território e de nosso povo expressa uma maneira própria das nossas tribos de estar aqui neste lugar.

Territórios Tradicionais

O território tradicional do meu povo vai do litoral do Espírito Santo até entrar nas serras mineiras, entre o vale do rio Doce e o São Mateus. Mesmo que hoje só tenhamos uma reserva pequena no médio rio Doce, quando penso no território do meu povo, não penso naquela reserva de quatro mil hectares, mas num território onde a nossa história, os contos e as narrativas do meu povo vão acendendo luzes nas montanhas, nos vales, nomeando os lugares e identificando na nossa herança ancestral o fundamento da nossa tradição.

Esse fundamento da tradição, assim como o tempo do contato, não é um mandamento ou uma lei que a gente segue, nos reportando ao passado, ele é vivo como é viva a cultura, ele é vivo como é dinâmica e viva qualquer sociedade humana. É isso que nos dá a possibilidade de sermos contemporâneos, uns dos outros, quando algumas das nossas famílias ainda acendem o fogo friccionando uma varinha no terreiro da casa ou dentro de casa, ou um caçador, se deslocando na floresta e fazendo o seu fogo assim – autossustentável.

Essa simultaneidade que temos tido a oportunidade de viver é uma riqueza muito especial e um dos maiores tesouros que temos. O Darcy Ribeiro costumava dizer que a maior herança que o Brasil recebeu dos índios não foi propriamente o território, mas a experiência de viver em sociedade, a nossa engenharia social. A capacidade de viver junto sem se matar, reconhecendo a territorialidade um do outro como elemento fundador também da sua identidade, da sua cultura e do seu sentido de humanidade.

Esse entendimento de que somos povos que temos esse patrimônio e essa riqueza tem sido o principal motivo e a principal razão de eu me dedicar cada vez mais a conhecer a minha cultura, conhecer a tradição do meu povo e reconhecer também, na das nossas culturas, o que ilumina a cada época o nosso horizonte e a nossa capacidade como sociedades humanas de ir melhorando, pois se tem uma coisa que todo mundo quer é melhorar. Os índios, os brancos, os negros e todas as cores de gente e culturas no mundo anseiam por melhorar.

O contato anunciado

Na história do povo Tikuna, que vive no rio Solimões, na fronteira com a Colômbia, temos dois irmãos gêmeos, que são os heróis fundadores desta tradição, que estavam lá na Antiguidade, na fundação do mundo, quando ainda estavam sendo criadas as montanhas, os rios, a floresta, que nós aproveitamos até hoje…

Quando esses dois irmãos da tradição do povo Tikuna, que se chamam Hi-pí – o mais velho ou o que saiu primeiro e Jo-í – seu companheiro de aventuras na criação do mundo tikuna, quando eles ainda estavam andando na e criando os lugares, eles iam andando juntos, e quando o Jo-í tinha uma idéia e expressava essa idéia, as coisas iam se fazendo, surgindo da sua vontade.

O irmão mais velho dele vigiava, para ele não ter idéias muito perigosas, e quando percebia que ele estava tendo alguma idéia esquisita, falava com ele para não pronunciar, não contar o que estava pensando, porque ele tinha o poder de fazer acontecer as coisas que pensava e pronunciava. Então, Jo-í subiu num pé de açaí e ficou lá em cima da palmeira, bem alto, e olhou longe, quanto mais longe ele podia olhar, e o irmão dele viu que ele ia dizer alguma coisa perigosa, então Hi-pí falou: “Olha, lá muito longe está vindo um povo, são os brancos, eles estão vindo para cá e estão vindo para acabar com a gente”.

O irmão dele ficou apavorado porque ele falou isso e disse: “Olha, você não podia ter falado isso, agora que você falou isso você acabou de criar os brancos, eles vão existir, pode demorar muito tempo, mas eles vão chegar aqui na nossa praia”. E, depois que ele já tinha anunciado, não tinha como desfazer essa profecia. Assim as narrativas antigas, de mais de quinhentas falas ou idiomas diferentes, só aqui nessa região da América do Sul, onde está o Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, nos lembram que os nossos antigos já sabiam desse contato anunciado.

Os Tikuna têm suas aldeias parte no Brasil e outra na vizinha Colômbia. Os Guarani partilham o território dessas fronteiras do sul entre Paraguai, Argentina, Bolívia. Em todos esses lugares, áreas de colônia espanhola, áreas de colônia portuguesa, inglesas, os nossos parentes sempre reconheceram na chegada do branco o retorno de um irmão que foi embora há muito tempo, e que indo embora se retirou também no sentido de humanidade, que nós estávamos construindo. Ele é um sujeito que aprendeu muita coisa longe de casa, esqueceu muitas vezes de onde ele é, e tem dificuldade de saber para onde está indo.

Por isso que os nossos velhos dizem: “Você não pode se esquecer de onde você é e nem de onde você veio, porque assim você sabe quem você é e para onde você vai”. Isso não é importante só para a pessoa do indivíduo, é importante para o coletivo, é importante para uma comunidade humana saber quem ela é, saber para onde ela está indo.

Depois os brancos chegaram aqui em grandes quantidades, eles trouxeram também junto com eles outros povos, daí vêm os pretos, por exemplo. Os brancos vieram para cá porque queriam, os pretos eles trouxeram na marra. Talvez só agora, no século XX, é que alguns pretos tenham vindo da América para cá ou da África para cá por livre e espontânea vontade. Mas foi um movimento imenso.

Imagine o movimento fantástico que aconteceu nos últimos três, quatro séculos, trazendo milhares e milhares de pessoas de outras culturas para cá. Então meu povo Krenak, assim como nossos outros parentes das outras nações, nós temos recebido a cada ano esses povos que vêm para cá, vendo eles chegarem no nosso terreiro. Nós vimos chegar os pretos, os brancos, os árabes, os italianos, os japoneses.

Nós vimos chegar todos esses povos e todas essas culturas. Somos testemunhas da chegada dos outros aqui, os que vêm com antiguidade, e mesmo os cientistas e os pesquisadores brancos admitem que sejam de seis mil, oito mil anos. Nós não podemos ficar olhando essa história do contato como se fosse um evento português.

O encontro com as nossas culturas, ele transcende a essa cronologia do descobrimento da América, ou das circunavegações, é muito mais antigo. Reconhecer isso nos enriquece muito mais e nos dá a oportunidade de ir afinando, apurando o reconhecimento entre essas diferentes culturas e “formas de ver e estar no mundo” que deram fundação a esta nação brasileira, que não pode ser um acampamento, deve ser uma nação que reconhece a , que reconhece 206 línguas que ainda são faladas aqui, além do português.

Então parabéns, vocês vêm de um lugar onde tem gente falando duzentos e tantos idiomas, inclusive na língua borum, que é a fala do meu povo, é uma riqueza nós chegarmos ao final do século XX ainda podendo tocar, compartir um elemento fundador da nossa cultura e reconhecer como riqueza, como patrimônio. O encontro e o contato entre as nossas culturas e os nossos povos, ele nem começou ainda e às vezes parece que ele já terminou.

Quando a data de 1500 é vista como marco, as pessoas podem achar que deviam demarcar esse tempo e comemorar ou debaterem de uma maneira demarcada de tempo o evento de nossos encontros. Os nossos encontros, eles ocorrem todos os dias e vão continuar acontecendo, eu tenho certeza, até o terceiro milênio, e quem sabe além desse horizonte.

Nós estamos tendo a oportunidade de reconhecer isso, de reconhecer que existe um roteiro de um encontro que se dá sempre, nos dá sempre a oportunidade de reconhecer o Outro, de reconhecer na diversidade e na riqueza da cultura de cada um de nossos povos o verdadeiro patrimônio que nós temos, depois vêm os outros recursos, o território, as florestas, os rios, as riquezas naturais, as nossas tecnologias e a nossa capacidade de articular desenvolvimento, respeito pela natureza e principalmente educação para a .

Hoje nós temos a vantagem de tantos estudos antropológicos sobre cada uma das nossas tribos, esquadrinhadas por centenas de antropólogos que estudam desde as cerimônias de adoção de nome até sistemas de parentesco, educação, arquitetura, conhecimento sobre botânica. Esses estudos deveriam nos ajudar a entender melhor a diversidade, conhecer um pouco mais dessa diversidade e tomar mais possível esse contato.

Me parece que esse contato verdadeiro, ele exige alguma coisa além da vontade pessoal, exige mesmo um esforço da cultura, que é um esforço de ampliação e de iluminação de ambientes da nossa cultura comum que ainda ocultam a importância que o Outro tem, que ainda ocultam a importância dos antigos moradores daqui os donos naturais deste território. A maneira que essa gente antiga viveu aqui foi deslocada no tempo e também no espaço, para ceder lugar a essa ideia de civilização e essa ideia do Brasil como um projeto, como alguém planeja Brasília lá no Centro-Oeste, vai e faz.

Essa capacidade de projetar e de construir uma interferência na natureza, ela é uma maravilhosa novidade que o Ocidente trouxe para cá, mas ela desloca a natureza e quem vive em harmonia com a natureza para um outro lugar, que é fora do Brasil, que é na periferia do Brasil.

Uma outra margem, é uma outra margem do Ocidente mesmo, é uma outra margem onde cabe a idéia do Ocidente, cabe a idéia de progresso, cabe a idéia de desenvolvimento. A idéia mais comum que existe é que o desenvolvimento e o progresso chegaram naquelas canoas que aportaram no litoral e que aqui estava a natureza e a selva, e naturalmente os selvagens. Essa idéia continua sendo a idéia que inspira todo o relacionamento do Brasil com as sociedades tradicionais daqui, continua; então, mais do que um esforço pessoal de contato com o Outro, nós precisamos influenciar de maneira decisiva a política pública do Estado brasileiro.

Esses gestos de aproximação e de reconhecimento, eles podem se expressar também numa abertura efetiva e maior dos lugares na mídia, nas universidades, nos centros de estudo, nos investimentos e também no acesso das nossas famílias e do nosso povo àquilo que é bom e àquilo que é considerado conquista da cultura brasileira, da cultura nacional. Se continuarmos sendo vistos como os que estão para serem descobertos e virmos também as cidades e os grandes centros e as tecnologias que são desenvolvidas somente como alguma coisa que nos ameaça e que nos exclui, o encontro continua sendo protelado.

Tem um esforço comum que nós podemos fazer que é o de difundir mais essa visão de que tem importância sim a nossa história, que tem importância sim esse nosso encontro, e o que cada um desses povos traz de herança, de riqueza na sua tradição, tem importância, sim.

Quase não existe literatura indígena publicada no Brasil. Até parece que a única língua no Brasil é o português e aquela escrita que existe é a escrita feita pelos brancos.

É muito importante garantir o lugar da diversidade, e isso significa assegurar que mesmo uma pequena tribo ou uma pequena aldeia guarani, que está aqui, perto de vocês, no Rio de Janeiro, na serra do Mar, tenha a mesma oportunidade de ocupar esses espaços culturais, fazendo exposição da sua arte, mostrando sua criação e pensamento, mesmo que essa arte, essa criação e esse pensamento não coincidam com a sua idéia de obra de arte contemporânea, de obra de arte acabada, diante da sua visão estética, porque senão você vai achar bonito só o que você faz ou o que você enxerga.

Nosso encontro – ele pode começar agora, pode começar daqui a um ano, daqui a dez anos, e ele ocorre todo o tempo. Pierre Clastres, depois de conviver um pouco com os nossos parentesNhandevá e M’biá, concluiu que somos sociedades que naturalmente nos organizamos de uma maneira contra o Estado; não tem nenhuma ideologia nisso, somos contra naturalmente, assim como o vento vai fazendo o caminho dele, assim como a água do rio faz o seu caminho, nós naturalmente fazemos um caminho que não afirma essas instituições como fundamentais para a nossa saúde, educação e felicidade.

Desde os primeiros administradores da Colônia que chegaram aqui, a única coisa que esse poder do Estado fez foi demarcar sesmarias, entregar glebas para senhores feudais, capitães, implantar pátios e colégios como este daqui de , fortes como aquele lá de ltanhaém.

Nossa é que o desenvolvimento das nossas relações ainda possa nos ajudar a ir criando formas de representação, formas de cooperação, formas de gerenciamento das relações entre nossas sociedades, onde essas instituições se tornem mais educadas, é uma questão de educação. Se o progresso não é partilhado por todo mundo, se o desenvolvimento não enriqueceu e não propiciou o acesso à qualidade de vida e ao bem-estar para todo mundo, então que progresso é esse?

Parece que nós tínhamos muito mais progresso e muito mais desenvolvimento quando a gente podia beber na água de todos os rios daqui, que podíamos respirar todos os ares daqui e que, como diz o Caetano, alguém que estava lá na praia podia estender a mão e pegar um caju.

Tem uma música do Caetano, tem uma poesia dele que fala disso, o nativo levanta o braço e pega um caju. As pessoas estão preferindo em nome do progresso instalar aquelas casas com aquelas placas luminosas e distribuir Coca-Cola na praia.

À margem do Oriente

No norte do Japão tem uma lha que se chama Hokaido, lá vive o povo Ainu, tem um porto nessa ilha que se chama Nibutani, é uma palavra ainda que dá nome para esse lugar

Assim como aquela montanha bonita lá em Tóquio, no Japão, o monte Fuji, também reporta a uma história muito antiga do povo Ainu, uma história muito bonita, de uma mãe que ficou sentada esperando o filho que foi para a guerra e que não retornava, passou o inverno, passaram as estações do ano e ela ficou cantando, esperando o filho voltar e o filho demorava demais, então ela chorava de saudade do filho; as lágrimas dela foram formando aquela montanha e o lago, e toda aquela paisagem linda é dessa mãe que ficou com saudade do filho que saiu para a guerra e que não voltou, então ficou chorando por ele.

Os Ainu estão lá em Hokaido há mais ou menos uns oitocentos anos, talvez mais um pouco, porque eles foram tendo que subir lá para cima, que é o lugar mais gelado, liberando aqueles territórios cá de baixo para a formação desses povos que vieram subindo. O Japão agora no final do século XX é uma das nações mais tecnológicas, digamos assim, do mundo, mas eles não puderam negar a existência dos Ainu, eles negaram isso até agora.

Na década de 70 alguns Ainu conseguiram chegar à comissão da ONU que trata desses assuntos e apresentaram uma questão para o governo do Japão: querem reconhecimento e respeito pela sua identidade e cultura. Quinhentos anos não é nada.
 “O Eterno Retorno do Encontro”, de Ailton Krenak, foi publicado anteriormente em: www.pib.socioambiental.org. Novaes, Adauto (org.), A Outra Margem do Ocidente, Minc-Funarte/Companhia Das Letras, 1999. Nesta  nossa edição, os parágrafos foram reformatados, para dinamizar a leitura. 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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