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O fascista é sempre uma pessoa comum

O fascista é sempre uma pessoa comum

“Preciso escolher melhor meus amigos de copo”

Por Rodrigo Perez Oliveira/via Mídia Ninja

Navegando pelas minhas mídias sociais nesse último 7 de setembro, me deparo com uma postagem de um conhecido que não vejo há anos. Em algum momento, acho que chegamos a ser amigos. Talvez “amizade” seja palavra forte para definir a relação que tínhamos.

Saíamos juntos para festas, bares. Paquerávamos as moças. Duas ou três vezes, não mais que seis ou sete, frequentamos a casa um do outro. Almoço, churrasco, jogo do Flamengo.

Tá, talvez fosse amizade mesmo. No mínimo “amizade de copo”, como costuma dizer minha mãe.

“Você tem que se afastar dessas amizades de copo”, repete a velha com alguma frequência. Acho injusto. Até porque “amizade de copo” me parece ser formulação um tanto redundante. Não tenho amigos que não sejam “de copo”. E não é copo de leite, e nem de chá. Copo de cerveja mesmo.

Enfim, não adianta tapar o sol com a peneira. O sujeito era meu amigo sim. De copo, como todo amigo deve ser.

Educado, trabalhador, de bom trato. Pessoa comum.

Nos afastamos quando mudei de cidade. Saí de Nova Iguaçu, baixada fluminense, para voltar a viver no Rio de Janeiro. Depois, vim morar na Bahia e deixamos de nos falar. À distância, acompanhei parte das mudanças na do tal “amigo”.

Vi que ele casou com uma moça que conheceu em uma das festas em que fomos juntos. Teve dois filhos. Perdeu parte do cabelo e engordou alguns quilos. Vida normal, de uma pessoa comum.

E o que tinha na tal postagem de 7 de setembro?

Tá bom, tá bom, leitor e leitora, digo agora. É que antes era preciso contextualizar o personagem.

Uma foto, onde o amigo, com um sorriso meio bobo estampado no rosto, estava acompanhado do filho mais velho, uma com seus cinco ou seis anos. Ambos vestiam verde e amarelo e apontavam para a bandeira do . Na legenda: “Deus, pátria e família”.

O amigo não sabe que o lema tem fascista. Não tem a menor ideia sequer do que seja . Não conhece os crimes que o fascismo cometeu contra a nesses seus quase 100 anos de existência. Parece ser um bom pai, marido carinhoso. Não duvido que seja mesmo. É bem provável que seja.

Trabalha em escritório, de 8 às 17, de segunda a sexta. Três horas de transporte público todos os dias. Não tem a perder com “política”.

Uma pessoa comum vivendo em um onde tudo parece estar confuso. As mulheres recusam o papel que tradicionalmente lhes era atribuído. As fronteiras que diferenciam masculino e já não são tão obvias. O trabalho não mais garante direitos sociais, como férias, 13° salário. Dificuldade de pagar os boletos. Desejos de consumo frustrados. A promessa “estude, trabalhe e vencerá” já não se sustenta.

Nada mais é sólido. Tudo é gasoso. Sem forma, sem consistência.

“Deus, pátria e família” categorias cujo sentido é conhecido, sólido, estável. Organizam a existência e colocam as coisas no lugar onde, aparentemente, sempre estiveram.

Ao lado do filho mais velho, o amigo parecia estar feliz, tranquilo, seguro. Feriado, dia de sol, junto com a família, sob as bênçãos de Deus e em defesa da pátria. Tudo que seja diferente disso é ameaça, representa perigo. O jovem negro identificado como bandido. A lésbica, o homem gay, o militante petista. Devem ser exterminados, levados à ponta da praia, como gosta de dizer o presidente Jair Bolsonaro.

Levanto e faço um café. Moro na Barra, bairro tradicional de Salvador. Pertinho do Farol da Barra, ponto turístico onde costumam acontecer os principais eventos da cidade. Olho pela janela e vejo muitas pessoas vestindo verde e amarelo.

Avós, avôs, pais, mães, filhos, filhas, irmãos e irmãs. Pessoas comuns.

Todos com a mesma expressão no rosto, ao mesmo tempo tranquila e abobalhada. Encontraram algo que faça sentido. Estão felizes.

Deus, Pátria e Família!

Termino o feriado com duas únicas certezas: o fascista é sempre uma pessoa comum e preciso escolher melhor meus amigos de copo.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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