O imperador é canibalizado pelo candidato a ditador

O imperador é canibalizado pelo candidato a ditador

No 7 de setembro, o oficial vai comemorar o bicentenário da proclamação da sua independência. Essa data foi consagrada pelo simbolismo de um ato do “príncipe regente”, Dom I, construído pela narrativa do poder. Não houve uma , nem a instituição de uma outra estrutura de , ou de governo. O “Grito do Ipiranga” foi no grito. Não houve propriamente independência, mas a secessão da Coroa Portuguesa, num mundo em que a Grã-Bretanha emergia como potência hegemônica.

Por Márcio Santilli/via Mídia Ninja

A tela do pintor Pedro Américo, a mais famosa a ilustrar o momento do grito, foi feita 66 anos depois. É um exemplo clássico de construção da narrativa idealizadora, da invenção de uma . Na verdade, naquele dia, às margens do Ipiranga, não havia o herói equestre acompanhado por uma tropa com uniformes galantes, mas apenas o príncipe com alguns poucos acompanhantes de viagem. Ele montava uma mula e usava roupas frugais. E foi por causa de uma indisposição estomacal que foi alcançado pelo mensageiro, com notícias também indigestas de Portugal: ele deveria retornar ao país de origem e o Brasil deveria retornar à condição de colônia. Daí o grito.

A separação de Portugal e a organização de uma monarquia no Brasil foi um processo em várias etapas, mas, talvez, a fuga de Dom João VI para o Brasil, em 1808, tenha sido mais emblemática. Por outro lado – o de cá – os detentores das terras e de outros serviços reagiam à monárquica para preservar os seus próprios privilégios. Customizar a família real foi também a sua opção. “Não se tratou de construir uma república, nem de pôr fim à escravidão, muito menos à colonial.”

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“O Grito do Ipiranga”, de Pedro Américo (1888) | Domínio Público

Coração e mente

Dom Pedro I governou pouco, com muitos problemas. Dissolveu a primeira Assembleia Constituinte e impôs um constitucional em 1824. Pipocaram várias revoltas contra o poder central e, dois anos depois, o imperador abdicou do trono em favor de seu filho, que tinha, então, apenas cinco anos de idade, e voltou para Portugal. Como expressão de afinidade profunda, Pedro, em , doou o seu coração à cidade lusitana do Porto.

Na falta de melhor referência sobre o que seja a independência do país, o presidente Jair Bolsonaro pediu emprestado o órgão preservado até hoje por 15 dias, período em que ficará exposto à visitação, no contexto das comemorações do bicentenário do Grito do Ipiranga. O coração foi recebido pelo próprio presidente, na rampa do Palácio do Planalto, com honras de chefe de Estado. Foi a canibalização simbólica do imperador pelo candidato a ditador.

As circunstâncias do destino daquele período turbulento fizeram de Pedro I um personagem-chave para a separação do Brasil de Portugal. Mas ele não nasceu e nem morreu aqui e a independência foi, para ele e para a sua família, uma espécie de reserva de exílio diante da nobreza europeia. O seu coração nunca escolheu aqui.

Empulhação

As cenas bizarras da transmutação cardiológica de Pedro I em Bolsonaro, ou vice-versa, vão alimentar a propaganda reeleitoral e a loucura mercurial do presidente. Na sua estética messiânica, aquele cálice corpulento reforça o intento de se fazer passar por um enviado de Deus. É para lá de ridículo, mas contenta monarquistas, fundamentalistas e fetichistas, que tendem a votar em Bolsonaro.

O presidente é useiro e vezeiro na produção de fakes e na apropriação dos símbolos pátrios em proveito próprio. A canibalização do coração de Pedro I não chega a surpreender no vale-tudo reeleitoral, mas enoja. Porém, a paciência ainda é a melhor conselheira há 40 dias das . E a prioridade é defenestrar ‒ de vez ‒ esse bode nas urnas.

https://xapuri.info/grito-verde-que-anda/

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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