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O mundo mágico de Zé Mutum

O mundo mágico de Zé Mutum

Seria impossível para alguém que nasceu na barranca do Rio das Almas passar a existência incólume e não tentar registrar o universo em que fora criado.

Por Djalma Barbosa Gonçalves

O lançamento do Zé Mutum, obra de caráter eminentemente regionalista e surrealista, expressa minhas vivências neste universo mágico no qual é inserida a cultura cabocla do Cerrado, onde a linha divisória entre o real e o irreal é apenas um tênue fio que permeia a existência do caboclo goiano, criado em meio às lendas que povoam os sertões desde datas imemoriais.

Zé Mutum é um personagem surreal, que vive imerso em seus delírios em meio à religiosidade de uma Pirenópolis da primeira metade do século passado. Sempre acompanhado por um casal de mutuns, daí o seu nome, perambula pela cidade e arredores se envolvendo em confusões com os locais, com seus fantasmas, com entidades do imaginário caboclo e com a tormenta interior que o assola sempre.

Entender o em que o personagem Zé Mutum vive imerso passa primeiramente pelo entendimento da sua condição de ex-coroinha das igrejas locais e pelo amor que nutria pela catolicidade ali praticada. Após uma experiência amorosa malsucedida, se embrenha pelo Cerrado, começando aí sua saga.

Zé Mutum expressa em seus sonhos e delírios toda a iconografia presente no imaginário religioso pirenopolino. Suas incursões no mundo do subconsciente trazem à tona a dramaticidade das imagens e representações sacras presentes na iconografia das igrejas locais.

Seus encontros com as entidades do imaginário caboclo reproduzem oniricamente a vivência dos sertanejos com esse universo encantado que faz parte do seu ser. Foram assim seus embates com o Caipora, o Nego d´água, a Mula Sem Cabeça e as entidades imaginárias da Cidade de Pedra.

Procedi ao registro das rezas, cantorias, benditos, litanias, motetos e cânticos sacros católicos presentes em uma Pirenópolis anterior ao Concílio Vaticano II.

Sua breve passagem pelo movimento messiânico de Santa Dica, obra do acaso de quem ficava do alto das serras observando o movimento dos sertanejos, pontilha de religiosidade mística alguns capítulos do livro.

Face ao avanço da globalização que tenta universalizar a cultura a partir dos padrões das sociedades hegemônicas, procedi a um de resgate das parlendas cantadas na região e que se conectam, na obra, com o momento vivido por Zé Mutum.  São cânticos infantis, muitos já esquecidos pelas , mas que tive o cuidado de registrá-los em profusão pela obra.

Zé Mutum, talvez influenciado pelo tempo que vivera na República dos Anjos de Santa Dica, também constrói sua Jerusalém Celestial aos pés do Morro do Frota, onde estabelece seu reinado. A descrição dos templos e da iconografia que decorou cada um deles nos remete a um tempo mítico vivido então no Cerrado. Pairava sobre a região a profecia de Dom Bosco, a concretização da Missão Cruls, a construção da futura capital e algo mais estava no ar, além dos aviões da Panair. Essa atmosfera a todos contagiava.

Existe uma grande preocupação no livro com os registros da flora . Zé Mutum é antes de tudo um caipira, alguém longe da medicina ensinada nas faculdades, mas que sobrevivia praticando os usos fitoterápicos das plantas do Cerrado. Pontuei ao longo do livro uma verdadeira descrição dessas utilidades medicinais.

Os sinos repicavam da longínqua Pirenópolis e de longe Zé Mutum traduzia seus toques e dobrados. Existe toda uma linguagem que procurei detalhar na obra. Para o caipira, os sinos ainda falam. Resquício da barroca, transmitem os acontecimentos do plano do sagrado e toda a população acompanha ansiosamente suas mensagens. Assim é arte da linguagem dos sinos.

A obra se passa em planos distintos, reforçada com as imagens que descrevem todo o desenrolar da trama. Não bastasse a gama fortíssima de imagens presentes, pois trata-se de uma imersão no irreal, como obra surrealista que também é, existem também as inserções das músicas de Tonico do Padre, que embalam a de Zé Mutum nos momentos mais marcantes. Palavras, sons e imagens compõem a tríade que coloca a obra num patamar encantado.

A presença de inúmeros textos em latim, a começar pela introdução de cada capítulo, nos transporta para o universo religioso de então.  Essas rezas, cânticos e litanias povoam o universo mental de Zé Mutum e expressam na obra a tônica de cada capítulo ou o momento vivido pelo personagem principal. Procedi à tradução de cada texto em latim, possibilitando ao leitor a compreensão do que está se passando.

Como Zé Mutum também é uma obra de resgate da cultura cerratense da região do Rio das Almas, tive a preocupação de reproduzir as falas dos personagens das Cavalhadas e descrever o que se passa em cada cena da imponente festa religiosa pirenopolina. Pela riqueza das imagens e pela imersão num mundo irreal ou já inexistente, Zé Mutum deve ser sorvido como um bom vinho, sem nenhuma pressa.

É difícil estabelecer uma conexão maior da minha obra com outros autores da literatura goiana. Talvez uma proximidade maior com J. J. Veiga, quiçá o superando na carga surrealista, pois além de ser uma obra com forte presença de imagens, totalmente simbólicas, seu personagem central vive a cada momento transitando também pelo irreal.

Mais do que uma obra surrealista e regionalista, representa o resgate de toda uma cultura regional, verdadeiro registro das expressões culturais daquela porção do Rio das Almas.  A saga da vida do personagem Zé Mutum por si só já justificaria a obra. Mas ela é muito mais do que tudo isso, com direito a um final surpreendente.

O vento sopra de para o Morro do Frota em Pirenópolis e meu ser o acompanha para o reino encantado de Zé Mutum e suas rezas em latim, parlendas antigas, cantorias religiosas, cânticos de pousos de catira e oferendas ao Divino, seres míticos e sonhos impregnados de profunda religiosidade barroca.

“No meio da mata eu vi, o piar de dois mutum, piava que arretumbava maninha, tum, tum, tum”.

Djalma Barbosa Gonçalves –  Antropólogo. Escritor.


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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