O PERIGO DE ESQUECER AS TRAGÉDIAS

O PERIGO DE ESQUECER AS TRAGÉDIAS

O perigo de esquecer as tragédias

O questionado Muro da Mauá, concluído em 1974 para prevenir tragédias como a de 1941, em Porto Alegre, segurou 5m de água do Guaíba em 2024

Letícia Heinzelmann/BSB Capital

Pode parecer impossível agora, mas é bem provável que em breve esqueçamos da enchente de 2024. Talvez, contemos a história a filhos e netos. Ainda assim, com o , de forma geral, a sociedade esquecerá. E daqui a 50 anos, se o Muro da Mauá resistir até lá, a população estará questionando sobre a utilidade daquele centenário monstro de concreto, e falando em derrubá-lo.

É isso que ocorre quando não criamos marcos de  – ou não atribuímos memória aos marcos existentes, como o Muro da Mauá, que completa 50 anos em 2024. Parte da paisagem da cidade – eu e muita gente nunca vimos Porto Alegre sem ele –, há o muro recebe enxurradas de críticas.

Mas, desde 2023, recebe mesmo é muita água. Água que chega ao nosso Guaíba, que além de cenário para um belíssimo pôr-do-sol, é desaguadouro de uma bacia hidrográfica que abrange um terço do território gaúcho. Chuvas fortes, mesmo longe da capital, têm o potencial de inundar a cidade, situada a apenas 3 metros acima do nível do mar.

Até os açorianos que chegaram por aqui há mais de 250 anos já sabiam da vulnerabilidade dessa posição geográfica. Porto Alegre sofreu sucessivas desde sempre. Então, após a trágica e histórica enchente de 1941, se ergueu um muro para integrar o sistema de proteção contra cheias. 

Concluído em 1974, em meio a grandes obras urbanas executadas no contexto da ditadura militar, muito provavelmente não houve popular sobre sua construção – o que gera ruídos até hoje. Mas fato é que ele contou com muitos cálculos sobre a recorrência de enchentes, estudos e .

O Muro da Mauá é uma estrutura em concreto armado, com 3m de altura, profundidade similar variável e extensão de 2,6 Km. O sistema de proteção da capital gaúcha, do qual o muro é apenas a parte mais visível, foi projetado a fim de evitar catástrofes semelhantes à da década de 1940, quando o nível do Guaíba chegou à então marca recorde de 4,76m – superada agora em 57cm. 

Os estudos de recorrência já previam a possibilidade de uma cota de até 6m, o que foi considerado em sua construção. Ele está lá há 50 anos, de prontidão, mas sem nos informar nada. Ao invés de ser visto como marco de memória sobre o risco de enchentes, ele foi execrado, ameaçado e, o mais grave, negligenciado. 

Enquanto a sanha da especulação imobiliária que toma Porto Alegre vive buscando alternativas mais “cosméticas” ànossa brava cortina de proteção, ela praticamente não recebeu a manutenção necessária para seu pleno funcionamento em caso de grandes cheias.

Como esquecer uma catástrofe em que as águas invadiram a cidade, na qual 70 mil pessoas tiveram que deixar suas casas e mais de 600 empresas fecharam as portas? Uma tragédia em que como tifo, varíola, difteria e leptospirose foram disseminadas e que os prejuízos à cidade foram calculados em US$ 50 milhões?

Trauma coletivo – Parece impossível, mas Porto Alegre esqueceu a enchente de 1941 por oito décadas. Esse esquecimento está ligado ao trauma coletivo. O apagamento das traumáticas após sucessivas gerações é um fenômeno comum, especialmente em catástrofes que podem ter recorrência após longos períodos. 

Mas, apenas ao lembrar do passado, pode-se ajudar na prevenção de novas tragédias. Para isso, é necessário que haja lembretes, marcos que nos confrontem com esse sentimento incômodo.

Porém, mesmo após a ocorrência de grandes cheias em 2023, autoridades estaduais e municipais seguiam defendendo o fim do Muro da Mauá.

Em meio à enchente atual, enquanto o muro ainda contém mais de 5m de Guaíba – a água que invade a cidade é, principalmente, fruto de falhas em casas de bombas –, o prefeito Sebastião Melo (MDB) especulou sobre a necessidade de substituir partes do sistema anticheias por “nova tecnologia”.

Não disse que tecnologia ou quais partes seriam, mas o muro é sempre alvo. Questionado sobre o papel da falta de manutenção na inundação, respondeu que o tema renderia “dois seminários”.

Pois que se convoquem os seminários! Diante do aquecimento global e da perspectiva de agravamento de eventos climáticos extremos, precisamos debater a preservação do Muro da Mauá, que deve ser analisada não por razões estéticas, mas do ponto de vista prático – ele foi testado e resiste à pressão d’água acima dos 5m – e histórico-cultural – como marco de memória.

O tão criticado Muro da Mauá poderia ser considerado um antimonumento da capital:  com capacidade de alertar sobre situações-limite enfrentadas por uma população, expressando um trauma ou medo iminente. 

Como as enchentes já ocorridas – e mesmo as evitadas – em Porto Alegre, e alerta vívido de que, pela própria localização geográfica, elas sempre podem voltar a ocorrer.

Letícia Heinzelmann é Jornalista, graduanda em Museologia e integrante do grupo de pesquisas Gestão de Acervos e Direitos Humanos (GADH-UFRGS)

Capa: Reprodução

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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