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O PROFETA ZÉ KETI: NA FILA DO OSSO

O PROFETA ZÉ KETI: NA FILA DO OSSO

O profeta Zé Keti: na fila do osso

“Se não tem carne, eu compro um osso e ponho na sopa /E deixo andar, deixo andar”.  (Zé Keti. Opinião. 1964) 

Por José Ribamar Bessa Freire/TaQuiPraTi

Meninas, eu vi. Vi e ouvi o Zé Keti cantar seu samba “Opinião” no Teatro de Arena, em Copacabana, no show com João do Vale e Maria Betânia. Foi um deslumbramento para o amazonense de 18 anos que havia se pirulitado de Manaus, em 1965, com uma mão na frente e outra atrás para estudar jornalismo e direito no Rio. De repente, estava ali, a um metro de distância de três artistas, que ora cantavam, ora narravam suas vivências no tablado que servia de palco e permitia essa intimidade com o público. Uma semana depois, uma humilhante experiência me daria a dimensão do osso na sopa. Conto como foi.

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Antes, uma advertência: ínvios e tortuosos são os caminhos e as armadilhas da memória! A lembrança do Zé Keti foi provocada nesta semana pelas discretas comemorações do centenário do compositor e cantor carioca nascido em 1921. A letra de “Opinião” adquiriu, então, um tom profético ao permitir sua associação com recentes cenas sinistras da fila do osso em várias cidades brasileiras.
– Tem gente que pega o osso e já raspa os fiapos de carne crua com os dentes, ali mesmo na fila – disse Samara Rodrigues, dona do açougue Atacadão da Carne, em Cuiabá. Ela contou chorando que nunca viu a fome tão de perto quanto na fila dos ossos. No (des)governo Bolsonaro, a fila cresceu assustadoramente. O número de brasileiros com fome duplicou nos últimos dois anos, são quase 20 milhões, conforme reportagem do “Fantástico”.
É bem verdade que quando o cantor e compositor carioca cantou “Opinião”, logo após o golpe militar-empresarial de 1964, ele protestava contra a remoção forçada das favelas promovida pelo governador do Rio, Carlos Lacerda: “Daqui do morro, eu não saio não”. Mas agora a letra do samba se torna ainda mais dramática. Brasileiros em situação de extrema vulnerabilidade social disputam ossos e pelancas antes distribuídos a cachorros, sob o olhar insensível da classe empresarial e de seus representantes no governo, o ministro Paulo Guedes Offshore e Bob Fields Grandson, que trocaram o inferno fiscal do Brasil pelo paraíso da Suíça e das Ilhas do Caribe.
Televisão de cachorro
Tal insensibilidade me fez evocar a experiência ocasional com a fome de um estudante provinciano pobre numa sociedade mendicante. O fato, circunscrito ao âmbito pessoal, carece de qualquer dimensão histórica. Embora irrelevante, ilustra de forma microscópica a desumanidade e indiferença daqueles que, podres de rico. humilham os famintos. Foi assim.
spaghetillandia
Sem ter onde cair morto, assisti ao show do “Opinião” graças ao professor Orígenes Martins, de quem eu havia sido aluno de Didática no Curso Pedagógico do Instituto de Educação do Amazonas. Diretor e dono do colégio Christus, ele me contratou naquela época para dar aulas no 5º ano do Ensino Primário. Daí nasceu uma amizade. Agora, de passagem pelo Rio, convidou seu ex-aluno para ir ao teatro e, em seguida, para jantar, bancando os gastos na véspera de seu retorno a Manaus. Beleza!
No domingo seguinte, o restaurante do Calabouço para estudantes estava fechado. Eu tinha, se bem me lembro, apenas Cr$500,00, o preço de um sanduíche de queijo no Bob´s, o que era insuficiente para matar a fome de um mancebo saudoso do feijão da mamãe. Precisava de algo mais consistente. Caminhei até a Cinelândia, Lá, na rua Álvaro Alvim, o restaurante Spaghettilândia, que continua ainda hoje no mesmo endereço, oferecia um espaguete à bolonhesa com resíduos de carne moída por CR$700,00 Era o que havia de mais barato no menu.
Sai explorando os arredores, em busca de algo compatível com o capital que dispunha onshore, digo, no meu bolso. Na rua Senador Dantas, o restaurante Olona, que permanece atualmente no mesmo lugar, oferecia um prato de talharim ao alho e óleo ao preço de Cr$600,00, ou seja, aproximadamente 0,8% do salário mínimo, que na época era Cr$84.000,00. Fiquei ali, como um cachorro diante de uma máquina de assar frango, olhando o movimento e criando coragem para “entrar na fila dos ossos”.
Acender as velas
Lewgoy%20barbichaDe repente, saiu do restaurante um senhor bem vestido que acabara de almoçar. Nunca esquecerei suas feições. Nunca. Ele parecia fisicamente com o Professor Scaramouche, o vilão do filme Aviso aos Navegantes, vivido por José Lewgoy. Não tinha a barbicha do personagem, mas era o mesmo formato do bigode. Parou na porta para acender um cigarro. Levantou a sobrancelha espessa. Aproveitei o momento, me aproximei e falei bem baixinho, discretamente, de cabeça baixa, mostrando as notas do dinheiro na mão como nos filmes em branco e preto do neorrealismo italiano:
– Me desculpe. Sou um estudante amazonense. Estou com fome. Tenho esses Cr$500,00. Preciso de Cr$100,00 para poder comer um prato de macarrão. Será que o senhor pode completar?
Cem cruzeiros era o preço de um cafezinho. Se ele me desse pequena parte da gorjeta do garçom, matava minha fome. Sua reação, no entanto, foi outra. Berrou em voz alta, tornando pública a humilhação para o restaurante e até para quem passava na rua:
– Vai criar vergonha, vai trabalhar. Um moço forte, que esbanja saúde, pedindo esmola como um vagabundo…
Santo remédio. A fome passou. O lado positivo do episódio foi que economizei os Cr$500,00. Fugi dali em disparada, tão humilhado, que perdi até a vontade de comer o sanduiche de queijo no Bob’s e nem tive ânimo para pegar um osso e colocar na sopa.
As cenas de gente atrás dos ossos, me fez evocar as diversas fomes, a minha e a histórica, que a humanidade sofre nos períodos de barbárie. Lembrei o samba do Zé Keti, filho de um marinheiro tocador de cavaquinho que morreu cedo. A criança tímida de três anos educada pelo avô flautista e pianista legou ao Brasil um vasto repertório de mais de 200 músicas. Participou de vários filmes como ator e como assistente de câmara e atuou no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). Talvez seja desconhecido das novas gerações que, apesar disso, cantam suas músicas no carnaval, entre elas a famosa marcha-rancho Máscara Negra.
José Flores de Jesus, o Zé Quieto, o Zé Quietinho, o Zé Keti, se despediu da vida em 1999 cantando: “O doutor chegou tarde demais […] E a gente morre sem querer morrer”.
Meninas, eu vi o Zé Keti da Portela cantar no show do Opinião: “Acender as velas / já é profissão / quando não tem samba / tem desilusão”.
Mem%C3%B3ria%20Cei%C3%A7aP.S – Nesta quinta (7), Conceição P. de Souza descansou, deixando saudosos sua filha Janaína, seu genro Amaro Júnior, suas netas Beatriz e Mariana, além de Ângela Maria, em cuja casa viveu durante quase vinte anos em Manaus.  Fica aqui o registro dos sentimentos da coluna Taquiprati.
Por ter perdido a visão, ela não pôde ler o livro recomendado por sua amiga Maria do Céu “A morte é um dia que vale a pena viver” escrito pela médica Ana Cláudia Arantes. Lá, a autora propõe repensar a existência e oferecer às pessoas a oportunidade de viverem bem até o dia da partida.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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