O TEMPO DA DELICADEZA

O TEMPO DA DELICADEZA

O tempo da delicadeza

Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu”, diz o texto sagrado. O amor também tem os seus tempos e ele muda como mudam as estações.

Por Rubem Alves

Nos países frios, a primavera é o tempo da pressa. Os bulbos, que por meses haviam hibernado sob o gelo, repentinamente despertam do seu sono, rompem da noite para o dia a camada de neve que os cobria e exibem, sem o menor pudor, os seus órgãos sexuais coloridos e perfumados, suas flores. ”Que lindas…”, dizemos. Ignoramos que aquela é uma beleza apressada. A primavera é curta. Outro inverno virá. É preciso espalhar o sêmen com urgência, para garantir a continuidade da vida. Por isso se exibem assim, em sua nudez colorida e perfumada, para atrair os parceiros do amor.
 
Se as plantas pensassem, teriam os mesmos pensamentos que têm os jovens quando neles desperta o sexo, em todo o seu furor de realizar-se É só isto que importa: o coito. Passado o êxtase. Vai-se o interesse, fuma-se um cigarro, vira-se para o lado…
 
O verão é o tempo em que a fúria reprodutiva já se esgotou. Tempo maduro, tempo do trabalho dos filhos, das rotinas domésticas. Os mesmos olhos que se excitavam ao contemplar o corpo nu da pessoa amada já não se excitam. Já não sorriem nem têm palavras poéticas a dizer sobre ele. Há uma rotina sexual a ser cumprida. Vai-se o encantamento, os olhos e as mãos se cansam da mesmice e começam a procurar outros corpos e vem a saudade da juventude que já passou. Cumprido o ato, vem o silêncio.
 
O outono é a estação de uma nova descoberta. Não há urgência. Nenhuma obrigação. A natureza está tranquila. Na adolescência qualquer mulher servia, porque o sexo era comandado pelas pressões vulcânicas dos hormônios e pelos genitais. Agora o que excita é o rosto da pessoa amada. O sexo deixa de ser movido pela bioquímica que circula no sangue e passa a ser movido pela beleza. O amor se torna uma experiência estética. E o que os amantes outonais mais desejam não são os fogos de artifício do orgasmo, mas aquela voz que diz: “Como é bom que você exista…”
O outono é o tempo da tranquilidade. É bom estar juntos, de mãos dadas, sem fazer nada. É bom acariciar o cabelo da amada… Esta é a grande queixa das mulheres – que para os homens a intimidade é sempre preparatória de uma transa. Talvez porque se sintam obrigados a provar que ainda são homens. O que as mulheres desejam não é o prazer, é felicidade. O outono é o tempo do amor feliz.
 
O Chico escreveu sobre esse tempo e lhe deu o nome de “tempo da delicadeza”, na canção “Todo o sentimento” (letra de Chico Buarque e melodia de Cristovão Bastos)“Preciso não dormir até se consumar o tempo da gente…”
Sim, preciso não dormir, preciso não morrer, porque há muito amor ainda não realizado. “Vem-lhe então a memória do amor que, por descuido, não se realizou, e via em busca da sua recuperação: Pretendo descobrir no último momento um tempo que refaz o que desfez…”
Esse verso me comove de maneira especial. Pensando no meu desajeito, na minha desatenção, vou lembrando das coisas que derrubei, das palavras que não ouvi, das flores que pisei. E dá uma vontade de fazer o tempo voltar para poder refazer o que foi desfeito, para recolher todo o sentimento e colocá-lo no corpo outra vez…
Aí ele vai mansamente dizendo as palavras que o amor deve saber dizer, palavras que só existem no “tempo da delicadeza”. “Prometo te querer até o amor cair doente, doente…” Por isso, por causa desse tempo misterioso, é preciso amar cuidadosamente com o olhar, com os ouvidos, com a mão que tateia para não ferir… enquanto há tempo.

Lembrei-me do amor de Florentino Ariza por Fermina Daza, de o ‘Amor nos tempos do cólera’. Tiveram de esperar 53 anos e passaram o resto da vida navegando no rio da delicadeza.

Fonte: Revista Prosa Verso e Arte

Capa: Ronaldo Rosa/Blog da Franssinete Florenzano

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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