O Teto do Tatu

O Teto do Tatu

O Teto do Tatu

Quando carapaças envernizadas criam soluções mágicas, o resultado pode ser bestial…

Por Letícia Bartholo

Mãe Tatu-Bola ganhou de presente de casamento uma boa herança familiar: uma toca estruturada, construída durante alguns anos pelas próprias patas de seu pai e de seu avô. Ali, naquela toca, Mãe Tatu se alojou com Pai Tatu e deu à luz a três serelepes tatuzinhos.

Seu pai e avô não eram tatus de muitas posses e tampouco os melhores construtores da região, de modo que a toca era funcional, mas possuía algumas falhas de finalização. Entre elas, a que mais incomodava Mãe Tatu era o teto. Feito de galhos e folhas, requeria constante cuidado: era preciso trocar suas folhas no período de seca, para que ofertasse proteção durante as chuvas. 

Além deste trabalho de reparação frequente, Mãe Tatu considerava o teto bem fora de e assim resolveu pedir ajuda ao Tatu Decorador, seu amigo de gosto inconteste, para dar um tapa no visual no teto. Analisando a localização da toca, Tatu Decorador convenceu Mãe Tatu de que o teto, mesmo repaginado, não funcionava esteticamente e desvalorizava a morada. Mais ainda, seria bem melhor viver sem teto, pois a toca estava logo abaixo de uma frondosa árvore, capaz de lhes dar praticamente o mesmo abrigo do sol e da chuva que aquele teto mal-acabado.

Induzida pelo amigo, Mãe Tatu resolveu pôr o teto abaixo. “Ah, realmente a toca está com outra cara”, pensou ela ao notar que ganhara um bom pedaço de jardim. Tudo ia bem e a família passou a mais agradável primavera, sentindo a brisa leve nas carapaças e o cheiro das flores nos focinhos.

Porém, quando o verão tomou lugar, com seu sol causticante e as fortes pancadas de chuva, a promessa de que a árvore lhes traria a proteção necessária não se cumpriu. Casca dura, Mãe Tatu demorou um pouco a admitir o fracasso, mas ficou impossível empurrar o problema com a barriga e ela decidiu buscar a ajuda de outro amigo. Eis que foi literalmente impedida: deste assunto agora cuido eu, porque esses seus amigos aí não entendem de nada!, esbravejou o marido. 

Orgulhoso por finalmente ter conquistado seu espaço de tatu macho nas decisões domésticas, Pai Tatu pôs-se a pesquisar empresas especializadas em telhado. Que decepção! Só encontrava alternativas demoradas ou de custos proibitivos – e ele tinha pressa! Por sorte, deu de cara com uma empresa nova: Carapaça Tocas e Telhados – projetos ágeis e inovadores para tatus. Cobrimos qualquer orçamento, dizia o anúncio. Pai Tatu correu até a loja e foi atendido por um Tatu descolado, de colete e topete.

 – Muito boa tarde! Sou o CEO! – disse Tatu Colete, estendendo-lhe a pata.

 – Boa tarde. Tenho um problema na minha toca pra resolver – respondeu Pai Tatu, sendo imediatamente interrompido por Tatu Colete.

 – Não. O senhor tinha um problema. Quando passou por aquela porta, já alcançou a solução!

Pai Tatu gostou do de confiança e abriu o verbo, contando toda a da sua toca. Tatu Colete o escutou atentamente, explicou não ser a primeira vez que via uma família humilde cair no conto da possibilidade de toca sem teto e que trataria de dar fim àquela agrura por um precinho camarada.

 – Eu tenho simplesmente a solução mais inovadora para lhe oferecer! – informou Tatu Colete, deixando Pai Tatu completamente animado.

 – Ora, que ótima notícia! E como é exatamente este teto inovador?

 – É o nosso Magic Teto! Uma fenomenal! Uma invenção disruptiva!

 – Disruptiva? Vai quebrar??? – perguntou Pai Tatu, sem entender muita coisa.

 – Não, claro que não! – disse Tatu Colete, rindo da limitação semântica do cliente. Disruptivo em outro mindset! Aceita um café com blueberry?

Pai Tatu serviu-se do café azul, enquanto o CEO seguiu a explicação:

 – Nosso Magic Teto protege completamente da chuva e do calor e só precisa de manutenção após 20 anos de uso! E o melhor de tudo eu vou lhe contar agora: o senhor terá em sua casa algo que nenhum tatu tem no mundo! 

 – Mas, se ninguém tem, funciona?  – questionou Pai Tatu, um pouco ressabiado.

 – Ah, sem dú nenhuma! Alguns tatus internacionais usam tetos parecidos, mas sem o mesmo padrão de acabamento. Nosso Magic Teto tem vedação muito superior. O senhor terá um teto completamente inovador e será um case de sucesso para todo o planeta!

Persuadido pela firmeza do Tatu Colete, que, afinal, era um CEO, Pai Tatu fechou o negócio. E, em menos de uma semana, sua toca já estava toda moderna, revestida de Magic Teto. No entanto, após a primeira noite com a invenção disruptiva, a família Tatu sentiu certo incômodo: o ambiente estava abafado, porque o teto praticamente vedava toda a toca. E a toca ficou fria, sem sequer um raio de sol. 

Pai Tatu então ligou para Tatu Colete, que novamente transmitiu-lhe muita segurança, esclarecendo tratar-se somente de uma fase inicial de adaptação: Logo logo estarão todos numa Magic Life sob o nosso Magic Teto!, afirmou o CEO. Porém não foi o que ocorreu: com a chegada do inverno, tudo sob o teto gelava. E a toca, outrora menos moderna, mas aconchegante, ficou inabitável.

Pai Tatu correu novamente até a loja, desta vez disposto a reclamar e pegar seu dinheiro de volta. Sua surpresa foi saber que a empresa agora estava sob outra administração. 

 – Fique tranquilo, o senhor agora não será atendido por um CEO qualquer, mas por um doutor. – disse um tatu de óculos e gravata, apresentando-se a Pai Tatu. E continuou: ocorre que o administrador anterior não lhe deu informação suficiente sobre o teto no inverno. 

 – Como assim? – indagou Pai Tatu.

 – O Magic Teto é realmente bom. O problema é a má orientação sobre o uso. 

Pai Tatu fez cara de poucos amigos, mas Tatu Gravata não se afetou.

 – Pois bem, o que o antigo administrador não lhe contou é que, para o bom funcionamento do teto, no inverno o senhor precisa quebrar o piso.

 – Quebrar o piso? Eu sou um tatu, e não um burro, caramba! Minha toca é clássica, feita de piso de barro!!! Que solução idiota! Eu vou processar vocês!

 – Acalme-se, senhor. Quebrar o piso é uma metáfora, entende? O que é preciso é tornar o piso da sua toca mais fundo, para que atinja o calor do núcleo terrestre.  

Os olhos de Pai Tatu pareciam saltar pra fora do rosto, de tanta revolta.

 – Veja, sei que parece um pouco contraintuitivo, mas é a ciência. O núcleo terrestre é bem quente, como o senhor deve saber. Cavando mais fundo, sua toca se aproxima do núcleo e ficará devidamente aquecida no inverno.

 – Mas eu não quero quebrar o piso, eu quero é reformar aquele teto estúpido!

 – É uma escolha que não recomendo. Se o senhor mudar algo no teto durante os 10 primeiros anos de uso, deixará de seguir as recomendações do fabricante e pode gerar um dano estrutural à sua toca. E perderá a garantia. – respondeu Tatu Gravata, dando de ombros.

Pai Tatu voltou para a casa com a intuição de que havia algo errado em toda aquela conversa, mas, sem outra solução, restou-lhe convencer a família de que o que deveria ser feito, simplesmente deveria ser feito. Ou cavavam até as cercanias do núcleo terrestre, ou perderiam toda a toca.

 – Puseram-se então os três tatuzinhos e seus pais a cavar. Dia a dia, cravavam suas patas mais e mais fundo. E, dia a dia, a toca ficava mais escura e fria.

 – Tá tudo bem aí? – perguntava lá de cima Tatu Gravata, sentado sob a agradável sombra da árvore.

 – Até agora não achamos núcleo nenhum! – gritava Pai Tatu do fundo da toca.

 – Pois persistam. Não é hora de desistir! O mundo todo está com uma excelente expectativa sobre o trabalho de vocês!

Exauridos e já sem nas profundezas da terra, os tatus estavam prestes a desistir quando, numa cavada forte, Pai Tatu sentiu a mudança na textura do solo. Chacoalhou a carapaça, puxou as unhas com ansiedade e abriu caminho para um enorme aquífero, donde a água brotou intensa, inundando toda a toca.  A família tentou subir, mas a toca era tão funda que todos se afogaram antes de chegar à superfície. A água jorrou, rompendo o Magic Teto e lançando os cinco corpos à tradicional aridez da morte.

Ao ver a cena, Tatu Gravata correu para sua toca, cujo teto era de palha, fez as malas e partiu. Soube-se depois que Tatu Gravata era irmão e sócio de Tatu Colete. A última notícia dos pilantras é de 2018: haviam mudado de segmento e esbanjavam dinheiro. Colete e Gravata fundaram uma nova empresa, especializada na assessoria em construção de barragens para castores. Funcionava em Brumadinho. 

 

Letícia Bartholo – Socióloga. Mestre em Demografia. Especialista em e Gestão Governamental. 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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