Os Ninguéns
As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos que a bala que os mata.
Os ninguéns, que custam menos que a bala que os mata.
Eduardo Galeano. “O livro dos abraços”. Tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 1995.
Eduardo Galeano (1940-2015) foi um escritor e jornalista uruguaio, autor do livro “As Veias Abertas da América Latina”, uma obra que exerceu profunda influência no pensamento de esquerda latino-americano. Eduardo Galeano (1940-2015) nasceu em Montevidéu, Uruguai, no dia 3 de setembro de 1940.
Descendente de uma família de classe média, de formação católica, pensava em se tornar jogador de futebol, mas percebeu que não tinha habilidade necessária para isso, mas veio a escrever muito sobre o esporte. Acabou exercendo trabalhos diferenciados, como caixa de banco e datilógrafo.
Embora aos 14 anos ele já houvesse enviado uma charge para o jornal El Sol, do Partido Socialista, sua carreira na imprensa só se firmaria na década de 60, quando se tornou editor do jornal “Marcha”, ao lado de colaboradores como Vargas Llosa (futuro Prêmio Nobel) e Mario Benedetti.
Nos anos 70, com regime militar no Uruguai, foi perseguido pela publicação de seu livro “As Veias Abertas da América Latina” (1971), obra de referência de esquerda, na qual o autor analisa a história da América Latina do colonialismo ao século 20. Em 1973, foi preso em decorrência do golpe militar em seu país, exilou-se, posteriormente na Argentina, onde lançou a revista cultural “Crisis”.
Em 1976, Eduardo Galeano mudou-se para a Espanha, por causa da crescente violência da ditadura argentina. Em 1985, lançou na Espanha o livro “Memória do Fogo”. Nesse mesmo ano voltou ao Uruguai.
Autor de mais de trinta livros, traduzidos para cerca de vinte idiomas, Galeano declarou, em 2014, que não se identificava mais com sua anticapitalista obra “As Veias Abertas da América Latina”. Sobre ela, disse o autor: “Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é extremamente árida, e meu físico já não a tolera”.
Em 2006, Eduardo Galeano ganhou o Prêmio Internacional de Direitos Humanos através da Global Exchange, instituição humanitária americana.
Eduardo Galeano faleceu em Montevidéu, no Uruguai, no dia 13 de abril de 2015.
Eduardo Galeano (1940-2015)