OS PASSOS TARDIOS

OS PASSOS TARDIOS

OS PASSOS TARDIOS

Na manhã de 30 de agosto de 2024, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou o despacho que recriou a Comissão Especial sobre mortos e Desaparecidos – CEMDP, no período da ditadura civil-militar. A Comissão havia sido dissolvida, sob alegação de falta de objeto, no apagar das luzes do governo neofascista (2019/2022) como um gesto final, simbólico, para eximir de responsabilidade agentes do Estado brasileiro que praticaram graves violações dos Direitos Humanos, naquele período.

Por Pedro Tierra  

Ao recriar a CEMDP, o Presidente deu uma demonstração de compromisso do seu governo com o esclarecimento das circunstâncias em que foram perpetrados os crimes de torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados de opositores da ditadura (1964/1988). Foi o último ato político da gestão do Ministro Sílvio Almeida, afastado dias depois.

Com esse gesto Lula reduziu à sua verdadeira dimensão o significado das declarações de março, a propósito dos 60 anos do golpe de 1964.

Três meses mais tarde, uma reunião plenária do Conselho Nacional de Justiça aprovou por unanimidade em uma resolução:

“Art. 1º – Determinar aos cartórios do registro civil das pessoas naturais a lavratura e a retificação dos assentos de óbitos das pessoas mortas e desaparecidas políticas nos termos da Lei 9.140/1995 e da Lei 12.528/2011.

Art. 2º – Para fins do exposto no art. 80 da Lei 6015/1973, as lavraturas e retificações dos assentos de óbitos de que trata o Art. 1º serão baseadas nas informações constantes do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, sistematizadas na Declaração da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).

Parágrafo 1º – “Em atendimento ao disposto no item 8 do Art. 80 da Lei nº 6015/1973, deverá constar como atestante a CEMDP e, como causa da morte o seguinte: “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente do regime ditatorial instaurado em 1964”.

Transcrevi acima parte da Resolução nº 601 do CNJ, publicada em 13 de dezembro de 2024. Tal ato jurídico, em si, abre portas de forma inédita para uma espécie de redenção dessa data fatídica, 13 de dezembro de 1968 – a entrada em vigor do AI-5 –, que simboliza a legalização do terror de Estado para a história do Brasil.

Ao determinar aos cartórios de todo o país a correção dos assentos de óbitos dos mortos e desaparecidos políticos sob responsabilidade da ditadura (1964-1988), o Estado brasileiro, por meio do Judiciário, demarca a fronteira entre civilização e barbárie.

Restaura, tardiamente, a condição e a dignidade dos cidadãos e cidadãs que, naquele período, se levantaram contra a tirania e o arbítrio dos generais e pagaram com a vida seu desassombro. E, aos familiares, o reconhecimento dos crimes cometidos em nome das instituições.

Atesta, mais grave ainda, diante da História: eles foram alvo da estratégia do “desaparecimento”. Crime contra a humanidade, inafiançável e imprescritível, adotado como prática corrente pelas ditaduras que anoiteceram o continente por mais de duas décadas, a serviço dos interesses das elites dominantes e do Império.

Seus corpos, seus vestígios, foram dissolvidos na sombra e no silêncio, como se nunca tivessem existido para si, para os seus e para o povo pelo qual lutaram. Sua memória, não. Seguiu pulsando na esperança e na determinação de seus descendentes e companheiros de militância que cobram justiça para os responsáveis por esse crime continuado e odioso que os priva do direito ao luto. Um gesto elementar de respeito aos mortos, definidor, afinal, das sociedades civilizadas.

Na ausência de uma punição individualizada dos responsáveis, condição para viabilizar a Justiça de Transição ainda inconclusa, a Resolução nº 601 do CNJ, em nome do Estado, levanta o véu da cumplicidade e da hipocrisia que por décadas escamoteou dos cidadãos e das cidadãs a verdade sobre crimes e criminosos contra a humanidade. E abre caminho para o cumprimento das 29 Recomendações da Comissão Nacional da Verdade – CNV. Seguimos adiante.

Numa sociedade refém de um passado que se recusa a ser passado e atormenta o cérebro dos vivos, é necessário cobrar das instituições a resposta a uma questão objetiva, igualmente tardia, que apalpa o terreno e a sensibilidade da sociedade brasileira na forma de interpelação: A Lei de Anistia de 28/08/1979 protege os autores dos crimes de ocultação de cadáver?

Como nos casos Rubens Paiva, Joaquim Pires Cerveira, João Batista de Rita Pereda, Ana Rosa Kucinski, Wilson Silva, David Capistrano, José Roman, Luiz Ignácio Maranhão, João Massena Melo, Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, Eduardo Collier Filho, Armando Teixeira Frutuoso, Tomaz Antônio da Silva Meirelles Neto, para lembrar alguns nomes da extensa e macabra lista de homens e mulheres desaparecidos forçados que combateram a ditadura?

Na pauta de defesa dos Direitos Humanos, o Brasil se politiza. Não há como obscurecer os vínculos diretos entre os fatos de 8 de janeiro de 2023, quando foi detido o processo de golpe de Estado em marcha desde a terceira vitória de Lula, em outubro de 2022, e o golpe de 1º de abril de 1964.

Além de todas as evidências ostentadas por seus próprios promotores, as investigações da Polícia Federal lançam luz sobre a participação direta de tipos como o general da reserva Augusto Heleno, o mesmo esbirro que era ajudante de ordens de Sylvio Frota em outubro de 1977, quando a escória dos porões foi derrotada por Geisel, e, não por acaso, foi o chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência de República, durante o governo neofascista (2019-2022).

É preciso reafirmar: se o 1º de abril de 1964 foi, para o país, a tragédia que todos conhecemos, instaurou um regime reacionário que travou por mais de duas décadas o projeto de desenvolvimento soberano do Brasil, ao preço do sangue dos cidadãos e cidadãs, o 8 de janeiro encenou a farsa, hoje exposta pelas instituições, aos olhos da cidadania. 60 anos depois do golpe de Estado, a Comissão de Anistia pautou, apreciou e concedeu, tardiamente, anistia aos 11 cidadãos chineses vítimas do arbítrio, da ignorância e da violência do regime militar, nas primeiras semanas do golpe.

Com a reforma do Regimento Interno da Comissão, foram contemplados ainda com anistias coletivas, os imigrantes japoneses e seus descendentes, alvos da ferocidade da repressão do Estado brasileiro durante o período Vargas-Dutra, no imediato pós-guerra. E as comunidades Krenak e Kaiowá, esbulhadas de seu território ancestral no período 1964-1988.

No total, 1.564 requerimentos julgados. Depois do eclipse que durou os quatro anos do governo neofascista, foram julgados todos os recursos dos processos protocolados entre 2001 e 2010. Foram finalizados, portanto, os pleitos dos 10 primeiros anos de funcionamento da Comissão, um trabalho extraordinário realizado em condições extremamente difíceis por uma equipe empenhada em superar as metas fixadas.

Desenterramos o espelho da História e expusemos a face trágica e criminosa sepultada sob as ruínas do Cais do Valongo, no Rio. Fixamos a placa na Serra da Barriga, Alagoas, para honrar a saga de Zumbi e das gerações de escravos rebelados que se evadiram das fazendas de cana-de-açúcar e se acantonaram na Serra da Barriga ao longo de quase um século para escapar e resistir à escravidão. E restabelecemos as bases para o diálogo com as comunidades quilombolas de Alcântara, Maranhão.

A árdua reconstrução dos direitos à terra, à afirmação cultural, será obra da aliança entre aquelas comunidades, as populações originárias e as instituições do Estado democrático e da sociedade para devolver a elas o protagonismo sobre seu próprio destino.

Antes de concluir essas linhas me chega a notícia: o Prefeito de Petrópolis, Dr. Rubens Bomtempo (PSB) depositou em juízo o valor, destinado pelo Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, para desapropriar o imóvel conhecido como “Casa da Morte”, centro clandestino de torturas e assassinatos, operado por agentes do Exército, durante o regime militar, para convertê-lo num Memorial de Liberdade, Verdade e Justiça – Inês Etienne Romeu. Ela foi a única sobrevivente daquela casa de horrores, a quem a sociedade brasileira deve a denúncia, a revelação e a localização do imóvel.

O desafio é abrir a perspectiva para um programa consistente de Educação Democrática pela Memória, a partir de uma profunda reforma nos currículos de formação das Forças Armadas, capaz de envolver a sociedade a partir da ação coordenada de diferentes Ministérios, Universidades e outras instituições públicas, movimentos sociais e culturais comprometidos com a defesa da democracia, voltado para as novas gerações com um objetivo claro: 8 de janeiro Nunca Mais! Ditadura Nunca Mais!

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p style=”text-align: justify;”>HAMILTON PEREIRA DA SILVA PEDRO TIERRAPedro Tierra – Poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo. Militante da resistência à Ditadura de ontem e ao neofascismo contemporâneo. Assessor do MDHC. Conselheiro da Revista Xapuri. Fotos: Antônio Augusto/MPF

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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