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OS PEREIRA NO EXÍLIO: ENTREVISTA COM DAGMAR PEREIRA

OS PEREIRA NO EXÍLIO: ENTREVISTA COM DAGMAR PEREIRA

OS PEREIRA NO EXÍLIO: ENTREVISTA COM DAGMAR PEREIRA

Esta é uma conversa entre uma mãe e uma filha, não exatamente uma entrevista, é um encontro entre o que existe de memória e o que existe de afeto sobre uma história vivida por dois personagens: Athos Pereira, meu tio, e Dagmar Pereira, minha mãe. Ambos viveram um capítulo único da vida dos Pereira, o exílio político, juntos, e são estas lembranças que busco agora no diálogo com minha mãe para reencontrar o meu tio, que nos deixou neste último agosto. Escrevo para gravar o que só os dois levavam no peito e agora só ela pode contar. Para homenageá-los, assino pela primeira vez com o meu sobrenome materno. 

Luisa Pereira Dias 

Nota da Redação: Matéria editada por limitações de espaço. Ver entrevista na íntegra em www.xapuri.info.

L – Mãe, qual é a lembrança mais remota que você tem do tio Athos?  

D O Athos era muito levado, desafiador o tempo inteiro, briguento mesmo. Uma vez ele deu umas respostas lá para minha mãe, eu não me lembro bem o porquê, e saiu de casa. E eu fui incumbida de encontrá-lo, o encontrei entre a igreja e o seminário, e ele me deu uma bela de uma mordida, porque eu tentei trazer ele para casa. Esse era ele, combatente e resistente. 

L – E depois, quando meu tio cresce, como é que fica essa relação de vocês? 

D Sempre muito ligados, o Athos era muito fechadão, porque ele vivia lendo. Ele saía na rua com o livro debaixo do braço. Em Porto, de frente da igreja, tinha quatro pés de manga e tinha um banquinho. Ele se sentava lá pra ficar lendo.  Eu não sei onde ele achava [tanto livro], dentro de casa não era. E ele passava pra frente, falava pra gente ler. 

L – E os meus avós falavam alguma coisa sobre estudar? Como é que era essa conversa sobre escola dentro de casa?   

D O tempo todo era falando, “vocês têm que ir pra escola, porque vocês têm que aprender, porque aprender é a única coisa que temos pra oferecer”. Meu pai repetia muito que a gente tinha que ser sábio. Meu pai estudou três meses na vida, mas ele lia alguma coisa e sabia fazer conta. Minha mãe fazia conta menos do que ele, mas sabia ler mais do que ele. 

L – Como é que começa o envolvimento do tio Athos, seu e do tio Hamilton na política?  

D – O Athos foi para Catanduva (SP) fazer o segundo grau, na casa do meu irmão Gerson, que se ofereceu para ficar com ele. Fez tiro de guerra lá e no último ano foi pra Goiânia, fez vestibular na UFG, foi aprovado de primeira em Jornalismo, mas estudou só um ano. Acabou tendo contato com o movimento estudantil, já estávamos na ditadura, e logo ele entrou na clandestinidade. 

 L – Quais eram as notícias que vocês recebiam? 

D – Eu estava em Cristalândia, onde era professora. Começamos a receber as notícias com preocupação. Mas, mesmo assim, meu pai nunca recuou, na ajuda, na torcida. Era discriminado na cidade, as pessoas mudavam de calçada quando o viam, mas ele falava que os filhos tinham que lutar pelos ideais deles. Em algum momento, meu pai contabilizou que Porto Nacional teve 18 presos políticos e quatro eram filhos dele. Teve, de certa forma, orgulho.

L – Onde você estava quando aconteceu o golpe?  

D – Não me lembro. Ouvi no rádio, no Repórter Esso. O Hamilton estava em casa e não me recordo se o Athos voltou para Porto depois de Catanduva. Meu pai ficou mais retraído, mas não puxando a gente para trás, mas ficou mais apreensivo. Minha mãe era muito religiosa, rezava pelos filhos, entregava pra Deus. Athos foi para São Paulo e já não voltou. 

L – Tio Athos chegou a ser preso antes de ir embora? Como foi a saída dele?

D – Athos foi o primeiro preso político de Porto, junto com nosso irmão Hosterno e outros, mas foi uma prisão rápida, em 1969. Logo depois ele e Hamilton entram na clandestinidade.  Saiu por via terrestre, como eu, para o Chile. Era 1972, no começo do ano. Já tinha caído muita gente. Eu fui presa em abril, ele já tinha ido. Ficou sabendo por telegrama da minha prisão, algo assim.

L – Como foi este período da sua prisão? 

D – Muito duro. Quando sou solta, em julho, me sentei nas escadas da casa dos meus pais e chorei avisando que Hamilton estava preso, estivemos no mesmo presídio em Brasília. Era para ser um momento feliz, mas foi uma morte para todos. Contra ele havia mais coisas, contra mim não tinha nada de fato.

L – Como você saiu do Brasil? 

D – O Airton, nosso irmão frade dominicano, me avisou que iam pedir outra prisão preventiva contra mim. Os meses de prisão e tortura tinham sido muito duros. Eu tive medo. Ele disse: “O Athos está no Chile, se você quiser, eu te ajudo a sair do país”. Eu vim com três mudinhas de roupa para a Cidade de Goiás. Lá, o dom Tomás Balduíno falou pra eu ficar tranquila, que ia me levar para São Paulo no teco-teco dele. Foi conversando comigo o tempo inteiro. Não pôde pousar no aeroporto e baixou no Campo de Marte, que era militar. Ele me levou até um colégio e quando chego lá quem me recebeu foi a esposa de um militar. Eu fiquei na minha, fiquei caladinha. Em dois dias o Airton veio me buscar e desceu até Foz do Iguaçu comigo, dormiu comigo do lado argentino. 

L – Como foi a sua chegada no Chile? 

D O Athos tinha mandado um cartão de Dia das Mães e foi com o endereço deste cartão que eu cheguei lá no Chile, mas o Athos não estava naquele endereço.  Athos estava em Valparaíso, em uma casa onde morava com uns gaúchos. Ele ficou muito emocionado, chorou, me abraçava. Ele queria saber notícias do Hamilton, eu dei essa que eu tinha, que ele estava preso em Goiás. Ficamos em Santiago, morando na mesma casa, fomos trabalhar na entidade do Betinho. [Ali) a gente tinha acesso aos jornais do Brasil, trabalhava no arquivo. Betinho assessorava o Allende.

L – E de novo, o golpe? Como foi este dia? 

D No dia do golpe, eu e o Athos tivemos uma reunião com o pessoal do PS (Partido Socialista). Saímos de casa, fomos os dois caminhando, passamos na casa de uma chilena e ela falou que o golpe já estava acontecendo. Ficamos em uma esquina da Alameda onde moramos vendo o bombardeio do La Moneda. Muito triste. Tínhamos um contato com a embaixada francesa e fomos atrás disso. Daí os franceses nos levaram para a embaixada do México, que era a única aberta.

L – E como foi na embaixada? 

D Era um sobrado, no andar de cima estavam o embaixador e a família do Allende. Nosso grupo era grande, Vladimir Palmeira, Cid Benjamin, seu pai, Gaúcho, muita gente. Alguns dormiam nos degraus da escada, em cima da mesa, debaixo da mesa. De lá, só saímos uns dez dias depois, à noite, de ônibus, para o aeroporto. Naquele momento acreditávamos que teríamos exílio no México, mas não foi bem assim. Chegando lá eles disseram que não tinham condição de receber todo mundo, nos hospedaram em um hotel, e começamos a peregrinar de embaixada em embaixada pedindo asilo. 

L – E quando a Bélgica aceita vocês? 

D Ela não aceita. Conseguimos visto pra Iugoslávia, depois de meses no México. Mas decidimos arriscar e descemos na Bélgica, em uma conexão do nosso voo. Recebemos uma carta verde que permitia a gente ficar. Uma entidade belga nos alojou em uma casa em Nivelle, nos deu roupas e nos encaminhou para trabalhar, eu em uma gráfica e seu pai e seu tio em uma fábrica de móveis. Em menos de mês conseguimos alugar uma casa, que logo se tornou ponto de encontro, nos finais de semana, todos os exilados brasileiros em Bruxelas vinham pra nossa casa. 

L – Teve um momento em que fizeram greve de fome? 

D – Sim, por poucos dias, para apoiar presos políticos e pedir a anistia, porque nunca desistimos de voltar para o Brasil. Nesse tempo, o Athos era a pessoa mais próxima de mim. Ele estava comigo quando eu perdi minha primeira filha e quando você nasceu. Você o chamava de Tito quando aprendeu a falar. 

L – E como foi quando a anistia chegou? 

D Foi uma alegria! Corremos para a embaixada atrás dos documentos. A ONU bancou nossa volta, em pequenos grupos. O Vladimir veio primeiro. Depois viemos eu e seu pai. Athos ficou porque estava já esperando o Joaquim. Nós chegamos em outubro de 1979, eles em janeiro de 1980. Ficamos um tempo em São Paulo, daí eu vim para Goiânia, o Hamilton tinha conseguido emprego pra mim, e logo depois o Athos mudou com a família para cá. 

L – E agora, a despedida

D A parte mais difícil. Os filhos criados, os netos, a companheira que ele tanto amou, a casa que construíram juntos, e a vida tem dessas coisas. Mas eu agradeço muito poder ter estado com ele até o final. Agradeço a Thais por ter cuidado dele e por ter recebido a gente. Foi muito importante pra mim e acho que pra ele estarmos juntos. 

Dagmar Pereira da Silva, irmã de Athos Pereira, mãe de Luisa e Mariana, e avó de Tomás, Bento e Cora

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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