Papo com Repasto: Sobre experiências esotéricas e cursos de xamanismo

Papo com Repasto: Sobre experiências esotéricas e cursos de xamanismo

Papo com Repasto: Sobre experiências esotéricas e cursos de xamanismo

Por Jairo Lima 

Batendo um papo com uns amigos, fechando a semana de visitas que recebi, após um bom repasto de domingo, regado a moqueca de peixe, acompanhado por um delicioso suco de cupuaçu, a conversa direcionou-se para questões espirituais (ou do sagrado), o que não poderia ser diferente já que estes costumam vir ao Acre anualmente em busca de experiências esotéricas e ‘xamânicas’.

Conversávamos sobre as pirações que andam rondando e movendo o ‘mercado’ xamânico, bem como as notícias de algumas bizarrices que andaram ocorrendo durante as viagens dos ‘pajecas’, pseudo-xamãs e ‘padrinhos’ pelos EUA.

Rimos muito com três histórias em particular: a de um padrinho do daime, bem conhecido no Sudeste brasileiro, que andou ‘pulando a cerca’ quando esteve nos EUA e foi flagrado dando uns pegas numa irmã da igreja, durante um hinário; a de um pajeca que fumou tanta erva que esqueceu de dar conta dos rituais e, por fim; a de um ‘xamã’ que informava a algumas (só as bonitas, e nunca informava nada aos homens) que, como parte do ritual teriam que ter relações sexuais com ele.

Claro que falamos, também, das pessoas sérias que andam divulgando e espalhando luz pelos quatro cantos do mundo, realizando rituais e trabalhos de cura tanto espiritual quanto material.

Papo com Repasto: Sobre experiências esotéricas e cursos de xamanismo

O papo seguiu enquanto eu servia um cafezinho,  e o assunto passou a ser o kambo. Refletimos sobre experiências pessoais com esta medicina, e trocamos ideias sobre o risco que esta pode trazer quando mal utilizada, como, por exemplo, o desequilíbrio entre as duas partes que compõem o ‘dualismo’ do espírito humano (yuxim e yuxibu), responsáveis pela harmonia e o equilíbrio necessário para o ‘bom viver’.

Ainda nesse assunto, um ponto de discussão acalorada foi sobre como está o mercado deste produto e, mais importante, como está sendo ministrado nas pessoas.

Nisso, meu compadre de muitos anos de amizade, vindo das areias do Saara, me perguntou qual ‘areias do Saara, o tal pajé*’ ou curador (índio ou não-índio) eu indicaria para que eles pudessem tomar uma vacina de kambo. Pensei um pouco e devolvi a pergunta:

– Depende. Você pensa em tomar como parte de um processo de limpeza, de um costume, ou como parte de algum processo de cura ou equilíbrio?  – Ele me respondeu que como parte de uma cura mesmo. Fiz então outra pergunta capciosa:

Certo… E você prefere que essa aplicação seja feita sem muitos rodeios ou rituais, como é realizada comumente por aplicadores ‘por aí’, ou prefere uma coisa mais roots**  seguindo todo o ‘protocolo’ tradicional mesmo?  – De pronto sua resposta foi de que gostaria de experimentar o jeito mais tradicional possível, e na oportunidade questionou-me como seria este ‘jeito tradicional’ indígena, o que lhe expliquei (e não replicarei aqui), conforme eu mesmo tinha observado em algumas comunidades, junto a velhos curadores e registrado em meus diários e fotografias.

O papo então tomou uma direção a partir de um ponto: e faz diferença se feito dentro de um ritual ou seguindo práticas mais ‘modernas’, tão em uso por ai, onde basta aplicar e beber água?

Interessante foi esse papo. Falei que, recentemente, na conferência fake realizada aqui no Acre (a tal da Aya… bucha total), entre os palestrantes, um ‘dotô’ falou que, no fim das contas, rituais são dispensáveis no uso da ayahuaska. Claro que, em certo grau, esse zé mané não deixa de ter razão, pois o cara pode tomar o chá sem ritual nenhum.

Mas, fica a questão: ai deixa de ser um caminho do sagrado e passa a somente ser a curtição do ‘barato’ da coisa não? (Vale aqui citar que existem experiências do uso da ayahuasca no combate a certos males como o vício em drogas, por exemplo, mas esse não era o cerne da conversa que estávamos tendo).

Papo e Repasto 3

Enquanto alguns comiam  frutas da região, chegamos ao consenso que o ritual é importante, para aqueles que trilham um caminho sério, em busca do sagrado e de uma transformação (evolução?) espiritual. E isso também vale para o kambo.

Mas é preciso relativizar as coisas pois as ‘evoluções’ ou adequações em rituais também fazem parte do processo cíclico e dinâmico do ser humano.

Ou seja, não dá pra simplesmente refutar a eficácia de algumas sessões de aplicação deste, simplesmente porque não seguem estritamente o rito tradicional antigo dos indígenas, certo?

No entanto, a meu ver, quando se busca a cura ou equilibrar o espírito, a partir do uso desta medicina, há de observar estritamente os processos tradicionais sob os quais este conhecimento foi desenvolvido pelos .

Para fechar esse assunto indiquei algumas comunidades e alguns txai que eu sabia serem referência no conhecimento sobre o kambo, caso tivessem interesse de conhecer.

Alertando que, na verdade, o verdadeiro conhecedor do uso das medicinas indígenas sabe que nem sempre é preciso utilizá-la, pois, pode ocorrer de, em vez de ajudar, esta pode ter o efeito contrário.

A conversa seguiu dando voltas interessantes e descambando sempre no mesmo ponto: a ‘modernização’ dos rituais e; mercado de possibilidades xamânicas, onde é possível adquirir de tudo, via internet.

Deixei clara minha crença de que não existe uma só maneira e uma só direção para se trilhar este caminho. Ao contrário, acho perfeitamente normal que certos rituais e práticas tenham se adequado aos chamados ‘novos ‘, apesar de muito charlatão e aproveitador que anda por aí, se passando por guru ou xamã. De minha parte prefiro o caminho mais tradicional mesmo, seja em rituais indígenas, seja na doutrina do Daime.

Gosto de rituais de ayahuasca sem firulas demais, movimentos e cenas teatrais, ou com o exagero indumentário desnecessário, tão apreciado ‘por aí’. Sou doutro tempo, admito isso, e admito também achar o fim da picada ver yura (não-índio) se pintando e usando cocar para ministrar rituais, sob a justificativa de estar se conectando aos espíritos ancestrais… mas… se eles acreditam né? Fazer o quê, né?

Eu pulo fora dessas viagens, pois não me interessa o ‘barato’ da coisa, e sim, o ensinamento que posso receber e nisso acredito piamente, e sei que não vai ser um branquelo (como eu) travestido de índio que vai me trazer o ensinamento que busco. Mas, não duvido, que para alguns, estes travestidos possibilitam a dosagem suficiente do ‘sagrado’ para que possam se sentir bem, mesmo que isso não leve a nenhuma transformação do Ser ou possibilitem a Cura de algo.

Radical? Não, querido leitor, acreditem. Minhas crenças não surgiram a partir das ‘modas’ sagradas do momento, ou das instruções de um guru, e, sim, de algo bem maior que me fez buscar longe e profundamente as coisas, de maneira que toda essa superficialidade estética que anda tão em moda ultimamente, para mim, ‘faz parte’, mas não representa em nada a essência da coisa.

Mas voltemos ao interessante papo, que, em determinado momento, foi regado a chá de menta. Em dado momento, citei o exemplo do chá que, no momento bebíamos sem delongas ou formalidades, mas que, no Japão, existia toda uma tradição ritualística para bebê-lo em determinados momentos, o tal do ‘ritual do chá’. Isso atiçou o papo e assim seguimos.

Paramos com o chá para apreciar uma deliciosa banana verde frita (uma iguaria por estas bandas, acreditem) e a conversa prosseguiu para outro tema bem espinhoso: não-índios que se fazem passar por índios para realizarem rituais e venderem produtos ditos ‘medicinais’ como rapé, sananga, etc.

Papo com Repasto: Sobre experiências esotéricas e cursos de xamanismo

Para minha surpresa, alguns desses escrotos andam fazendo sucesso, explorando o fato de que poucos conhecem as comunidades indígenas do Norte do , pelo menos, o suficiente para saber que esses caras são umas fraude, e que se seus admiradores, tirassem um momento da para ver no youtube sobre o povo que estes dizem pertencer, já teriam dado um chute no rabo dos mesmos há tempos.

Notícias sobre as peripécias destes fakes de cocar chegaram até às terras do Tio Sam, e lá só não desembarcaram como ‘estrelas’ porque já havia rolado um sinal de alerta para que los gringos tivessem cuidado com estes charlatões. Assunto por demais indigesto. Mudei o papo para outras paragens mais amenas.

A tarde já mostrava um céu matizado, quando o papo passou a ser o crescimento de sites que propagandeiam cursos de xamanismo, de iniciação à bruxaria e ocultismo. Comendo queijo regional, de Tarauacá, e apreciando uma grappa misturada com essência de ervas da amazônia, seguimos na conversa, entre momentos sérios e mangofas sobre esse fenômeno.

Bem, certamente que o caminho do ‘Mistério’, deve seguir a premissa básica de quem trilha este caminho do ‘Oculto’, ou seja, de algo que não é acessível pra todo mundo, certo? Bruxo aprende suas bruxarias certamente em momentos que não são em um curso, com preparações e o escambau.

Nem precisam de um instrutor que, tal qual um Mestre dos Magos (da Caverna do Dragão) indique que caminhos seguir – vale lembrar que este personagem só fazia era meter os protagonistas em confusão, em vez de falar de uma vez por todas onde ficava a saída daquele lugar. E o que falar dos cursos de xamanismo? Gente… na boa… certificado de xamã? Pouparei os e a mente dos leitores das imprecações que saíram na conversa, a maioria claro, de minha parte, assumo.

Paramos o papo para cantar ‘parabéns’ para o meu filho caçula, e, enquanto todos comiam um bolo de chocolate com coco da região, falamos de outros assuntos mais amenos, como a qualidade do rapé Marubo, feito com tabaco tradicional indígena, que eu havia presenteado há poucos dias um deles, e que, neste mesmo período, já havia ‘rodado’ para apreciação dos demais.

A noite chegou… todos de bucho cheio e a mente arejada  não toparam emendar o repasto noite adentro e se despediram. Que pena, já estava sendo preparada uma panelada enorme de inhame roxo, para comer bebendo um suco de guaraná…

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Jairo Xapuri 1


JAIRO LIMA é escritor e indigenista acreano, graduado em Pedagogia pela UFAC, com especialização em antropologia. Atua já a mais de vinte anos junto aos indígenas do Acre e desde 2012 é servidor da FUNAI, no Acre.publica seus escritos semanalmente no blog: Crônicas Indigenistas 

Por gentileza de Jairo, seus textos são reproduzidos, também semanalmente, aqui neste nosso site da .

Notas do Autor:

* Uso este termo aqui pois foi usado pelo meu interlocutor. Os que costumam ler meus textos sabem as ressalvas que tenho quanto ao uso deste adjetivo para discriminar os curadores e demais sábios das medicinas e misticismo indígena.

** Roots no sentido de “raiz”, pois como este é falante da inglesa este termo seria melhor compreendido.

*** Todas as imagens são de autoria do artista carioca Tiago Tosh, que por muitos anos vivenciou os ares das terras acreanas, criando maravilhas como essas.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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