Parasita: Ninguém está a salvo

Parasita: Ninguém está a salvo

Obra-prima do diretor coreano Bong Joon-ho, Parasita mostra que, numa sociedade dilacerada pelas desigualdades, o infortúnio não afeta apenas os desvalidos. Também os opulentos são vítima da deterioração do tecido social, por mais que se escondam atrás de muros, grades ou mundos de faz de conta.

por Fábio Palácio

A polarização social, fenômeno crescente em todo o , invadiu as telas de cinema em 2019. É o que mostra a recém-divulgada lista de filmes candidatos ao Oscar. Algumas das melhores produções recentes, como Coringa, do diretor Todd Phillips – candidato a onze estatuetas –, têm como tema a social que, em tantos países, vêm conduzindo à fascistização da política e da cultura.

Este é também o caso de Parasita, obra-prima do diretor coreano Bong Joon-ho. O filme é uma crítica ácida das desigualdades de classe em um país tido como modelo de desenvolvimento capitalista tardio: a Coreia do Sul.

O enredo gira em torno a um jogo de oposições em que cada polo não apenas existe em função de seu contrário, mas nele se converte facilmente. Estruturada nessa dinâmica, a narrativa se desenrola a partir das ações de dois núcleos: a família Kim, de classe baixa, e a família Park, que tem dinheiro de sobra.

Afundados na pobreza, os Kim têm uma existência uberizada. Vítimas do desemprego estrutural, sobrevivem de bicos. Não há dinheiro para nada, nem mesmo para o “sagrado wi-fi”, como define a certa altura o patriarca Kim Ki-taek (Song Kang-ho) em momento cômico que, além de insinuar o que seriam, nos dias de hoje, os chamados gêneros de primeira necessidade, ainda questiona se a não se teria tornado a religião de nosso tempo.

Meritocracia

Os Kim amontoam-se em um “apartamento” que não passa de um porão úmido, insalubre e infestado de insetos. Bêbados urinam no beco ao lado da única janela disponível, a qual precisa ficar aberta não apenas por ser o canal de ventilação, mas também para que se aproveitem as borrifadas de inseticida que por ela entram quando funcionários da dedetização visitam as casas próximas.

Flagelada socialmente, a família não é, contudo, desprovida de potencial. O filho Ki-woo (Choi Woo-shik) é astuto e possui bom nível formativo. Isso fica claro desde a primeira reviravolta da história, quando o jovem Kim é convidado por um amigo – universitário de família endinheirada que parte para morar no exterior – a substituí-lo como tutor particular de inglês de Da-hye (Jung Ziso), uma jovem de família rica.

Indagado sobre o porquê de ter sido escolhido, dado o amigo conhecer tantos universitários tarimbados, Ki-woo ouve, entre outros motivos, que ele conhece mais inglês do que a maioria dos acadêmicos. A contrasta com o fato de o jovem haver falhado, várias vezes, no exame de ingresso para a universidade.

Isso levanta uma dúvida: quais as razões do insucesso de Kim? Algo a ver com sua posição na rígida hierarquia social sul-coreana? Bong critica, no subtexto, a apregoada meritocracia: numa sociedade em que não existem oportunidades para todos, o mérito não é suficiente para alguns.

A fim de conquistar o emprego junto à família Park, o jovem Kim forja, com a ajuda da irmã – hábil no uso de softwares de design gráfico –, um certificado falso de de inglês. Ao apresentá-lo à Sra. Park, ela desdenha do documento e diz ser mais importante o fato de Kim ter sido indicado por alguém de confiança da família. O jovem compensa a falta de diploma com o prestígio do amigo – em referência à força, na sociedade sul-coreana, daquilo que Bordieu denominou capital simbólico.

É assim que o jovem Kim adentra o cotidiano dos Park, família ocidentalizada que vive numa casa moderna e conta com funcionários da mais alta confiança, como um motorista e uma governanta.

Falcatruas

Com o tempo, Kim passa a conhecer os meandros da família que o emprega. Quando a Sra. Park (Cho Yeo-jeong) menciona que seu filho menor precisa de um novo preceptor de artes, ele vê a chance de empregar também a irmã, Ki-jeong (Park So-dam), apresentando-a como especialista no assunto. Uma vez empregada, ela conspira para demitir o motorista dos Park e colocar em seu lugar o próprio pai.

Cada conquista é um trampolim para a próxima falcatrua. E é assim que se trama, de forma bem-sucedida, a demissão da governanta da casa, a fim de que o último membro da família – a matriarca Choong-sook (Jang Hye-jin) – possa ser também contratada, sempre por indicação daqueles que, a essa altura, já conquistaram a confiança do Sr. Park e de sua esposa.

Para que tudo dê certo, as armações dos Kim exigem planejamento e sincronia de papéis. Isso é exposto por meio de sofisticadas técnicas de montagem – um dos pontos altos do filme, que, não por acaso, concorre ao Oscar de edição. À medida que as armações se sucedem, o clã de baixa chega ao melhor dos mundos, resolvendo às custas da família rica seus problemas econômicos.

Mas é exatamente nesse ponto que tudo começa a mudar. Como nas máscaras gregas que são o símbolo da dramática – um rosto sorrindo, outro chorando –, aquilo que era até então comédia se converte em seu oposto – a tragédia –, e o filme desponta como o que de fato é: um thriller sociológico com altas doses de suspense.

Essa etapa tem início quando a antiga governanta reaparece para desarranjar a arquitetura de trambiques. Conforme se revela então, já antes dos Kim outra família – exatamente a da ex-governanta – também “parasitava” os Park. E o mais surpreendente: parte dessa família – o marido da governanta dispensada – continuava morando na espaçosa mansão. Ãh?!

Acontece que muitas casas coreanas – especialmente as de famílias abastadas – contam com abrigos subterrâneos que servem declaradamente como proteção em caso de um ataque nuclear da Coreia do Norte. Porém, como a sugerir que, para além da ameaça vermelha, o verdadeiro perigo na Coreia do Sul é representado pelo próprio capitalismo, Bong – que militou na juventude em um partido de ideologia socialista – informa pela voz de seus personagens que os abrigos não protegem apenas contra os mísseis norte-coreanos, mas também contra os agiotas da Coreia do Sul.

No abrigo da mansão vivia, com algum estoque de víveres, o marido da antiga governanta. Quando as duas famílias de desvalidos se descobrem uma à outra – e uma delas percebe que foi vítima de golpe –, começa uma que terá consequências dramáticas.

Crítica ao capitalismo

A disputa entre as duas famílias pobres simboliza a desunião dos “de baixo”. A narração é pródiga em mostrar que, contrariamente ao que pensa certo marxismo vulgar, a degradação social não conduz à elevação da consciência política, mas à falência da racionalidade pública e do debate democrático. Um recado que, aliás, também está presente em Coringa.

O diretor coreano expõe a refrega entre as famílias miseráveis com fartura de referências alegóricas às formas contemporâneas da guerra, que vão muito além da coerção e do uso de armamentos tradicionais, passando a realçar o conhecimento e a informação como eficazes instrumentos de combate.

Quando o marido da governanta demitida consegue capturar imagens comprometedoras dos Kim, estes acabam rendidos pela mera ameaça, feita por seu contendor, de enviar aos patrões via Whatsapp as imagens gravadas. Ao ver a família Kim inteira ajoelhada, com as mãos para o alto, em face da simples ameaça de acionar o comando send de seu celular, o marido comenta com a : “Veja, isso é mais poderoso do que um míssil da Coreia do Norte!”

É a partir dos infortúnios trazidos pelo choque entre as duas famílias pobres que Bong expõe uma ideia chave: a de que “nenhum plano dá certo”. Por milimetricamente detalhado que seja um planejamento, algo sempre sai do controle. A vida é mais rica e complexa do que nossas vãs filosofias.

A referência pode parecer, à primeira vista, uma crítica à planificação econômica dos países socialistas. Mas, como declarou o próprio Bong, Parasita – tal qual ocorre em seus outros filmes – é na verdade uma denúncia do capitalismo. O que o diretor alveja são as mirabolantes equações da engenharia econômica neoliberal, as quais pretendem encaixotar a realidade em fórmulas econométricas que sempre apontam para o melhor dos mundos, mas costumam resultar em catástrofes sociais.

Ao lado da oposição entre plano e resultado – forma particular da dialética discurso-realidade –, outras polaridades organizam os eixos da narrativa. Uma delas cristaliza-se em frase chave do filme, proferida pelo jovem Kim. Ao assistir aos Park recepcionando convidados em uma festa, ele pergunta para sua aluna Da-hye: “Todos parecem tão maravilhosos! Você acha que eu me encaixo nisto?”.

Bong explora a ideia de uma camada superficial da realidade, feita de aparências, a contrastar com algo mais profundo, que raramente se revela. O que parece belo e harmonioso pode ocultar profundas tensões e incongruências. Quando o patriarca dos Kim pergunta ao senhor Park se ele ama a esposa, o último, surpreso com a pergunta, limita-se a rir e responde: “Sim, vamos chamar isso de amor!”.

Quem, de fato, vive de aparências? Se a família pobre aposta no ilusionismo, o mesmo não poderia ser dito do núcleo abastado? Na verdade, o que fazem os Kim não é nada além de entrar no jogo de aparências dos Park. Contudo, ao assim proceder, trazem consigo a realidade nua e crua, a qual costuma ser implacável na destruição de miragens e disfarces.

O real apresenta-se, então, como tessitura de dupla camada: há a superfície, o mundo de aparências que todos vivenciamos, mas ao qual a maioria está confinada; a par dele, há uma camada mais essencial, que muitas vezes permanece oculta, mas nem por isso deixa de ser verdadeira, podendo concretizar-se a qualquer instante.

Esses dois polos não se separam de forma radical: ao passo que sonhos, utopias e planos podem materializar-se, a “verdadeira” realidade – aquela que se nos aparece, que consideramos sólida e palpável – pode esfumar-se diante de nossos olhos, revelando-se a mais aberta ficção.

É quando se percebe, nas palavras do professor Massaud Moisés, algo que nos irmana à narrativa asiática: “a coexistência da fantasia e do realismo, mas de molde a intercambiar os efeitos: nota-se o caráter realista destas […] fugas da fantasia, tanto como o caráter fantástico destas explicações da realidade”, naquilo que se convencionou chamar de realismo fantástico, e que, mais do que tendência narrativa, vai-se mostrando uma poderosa ontologia.

É nesse jogo de espelhos, em que os opostos se refletem e interpenetram, que o título do filme – em princípio enigmático – vai se desvelando. O que Bong deseja saber do público é, afinal, a qual das famílias ele se refere: quem é o verdadeiro parasita? Como sugere a narrativa, numa sociedade dilacerada pelas desigualdades, o infortúnio não afeta apenas os desvalidos. Também os opulentos são vítima da deterioração do tecido social, por mais que se escondam atrás de muros, grades ou mundos de faz de conta. Em uma sociedade parasitária, ninguém está a salvo do parasitismo.

Fábio Palácio é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP). Professor do Depto. Comunicação Social da Universidade Federal do . Twitter: @_FabioPalacio.

Fonte: diplomatique.org.br/

 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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