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CANÇÃO PARA OS FONEMAS DA ALEGRIA

Paulo Freire, o nosso maior filósofo da práxis

, o nosso maior filósofo da práxis

O contista Marcelino Freire comemorou o centenário de Paulo Freire (eles não são parentes) lendo o seu conto Totonha num podcast especial da revista Quatro Cinco Um. Inspirada numa tia do escritor, Totonha habita os cafundós do Vale do Jequitinhonha, e se rebela contra a proposta de ser alfabetizada.

“Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso”.

Totonha diz que ler é coisa pra gente moça, “que tem ainda vontade de doutorar.” “De falar bonito. De salvar vida de pobre”. Ora, diz ela, “o pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?”

Ler pra quê? “O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química”.

Totonha não vê vantagem na leitura, ela que sempre leu e significou o mundo sem as letras. “Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?”

De repente se percebe que ela, de fato, não quer ser nem é ignorante. Na verdade, ela recusa receber um código que as autoridades usam para manipular o povo. “Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?”

Sabedoria Totonha diz que tem. “Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência!”

A certa altura ela afronta a professora. “Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta?”

A autoestima de Totonha é grande. Ela diz que “no papel” seria “menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha”. “Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.”

E é ciosa da sua particular visão de mundo, que considera mais adequada do que a das pessoas letradas. “Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?”

Por fim ela dispensa a moça da campanha de alfabetização, orgulhosa da sua condição: “Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever. / Ah, não vou.”

Ironias – Uma brilhante ironia de Totonha, peça da coleção Contos Negreiros (2005), é que Marcelino Freire utiliza a escrita erudita para retratar uma criatura do mundo dos bichos, das plantas, do sol e da chuva, em estado que ainda lembra   o Éden. E é nessa chave contraditória que Marcelino problematiza o pensamento de Paulo Freire, aliás, de propósito, como ele afirmou no referido podcast.

 

Depois de ouvir esse conto, eu me lembrei daquele andarilho mineiro do poema de Carlos Drummond de Andrade (de Claro Enigma, 1951), que repele o conhecimento ofertado pela Máquina do Mundo que ele topou enquanto vagava por “uma estrada de Minas, pedregosa”, e que lhe diz:

 

“olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

 

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo

 

se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste… vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo.”

Por que o caminhante recusa “essa total explicação da vida”, preferindo seguir “vagaroso, de mãos pensas” pela estrada pedregosa de Minas? Porque, em atitude parecida com a de Totonha, esse conhecimento era interesseiro, alienado, composto de cima pra baixo pelo sistema capitalista, imperialista, colonizador, dominador – simbolizado pela Máquina do Mundo que explorava as riquezas minerais daquele Estado, segundo a interpretação do professor José Miguel Wisnik, da USP.

 Palavra oca – Para Paulo Freire existe a palavra (discurso) dos burocratas, dos colonizadores, das classes dominantes, dos que se arvoram em donos do conhecimento, a palavra oca ou fossilizada que tentam impor aos que estão por baixo na escola social e com a qual também adestram os seus herdeiros, os futuros dominadores. Unilateral, esse discurso serve também para calar os oprimidos, submetidos à “ do silêncio” inaugurada nos tempos da colonização.

Existe por outro lado a palavra que pronuncia o mundo, que o transforma, que serve de ferramenta para as ações libertadoras das classes trabalhadoras e para a criação de novos conhecimentos, chave para uma nova ordem. Essa palavra é a que rompe a cultura do silêncio e permite que os , o povo negro, as mulheres, os oprimidos em geral tenham a sua própria voz.

Essa última palavra Freire chama de “palavração”, e é fácil perceber de onde é que ele, inserido na tradição cristã, buscou a inspiração para criar o neologismo.  

O evangelista diz: “No princípio era o Verbo (a palavra), e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. E segue: “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez”. (João 1: 1 e 3) Em contrapartida, o Fausto de Goethe diz que “No princípio era a Ação”.

Palavração – Paulo Freire compõe poeticamente a síntese dessas duas proposições no termo “palavração”. É com a palavração que se torna possível a recriação do mundo em novas bases, libertadoras, humanistas. Os agentes da nova ordem são os homens e as mulheres em situação de opressão que, de posse de suas vozes e do novo discurso, ousam tomar a história em suas mãos.

Ainda recorrendo a Goethe, a gente lembra a frase que Mefistófeles dirige ao Estudante, separando a teoria da prática como ele aprendeu com Aristóteles: “Cinzenta, caro amigo, é toda teoria/ E verde e dourada é a árvore da vida”. Freire, a contrapelo, se vale de Marx e de seu conceito de práxis, que volta a unir a teoria à prática de maneira dialética.

A teoria sozinha, livresca, concebida abstratamente nos gabinetes dos doutores, resulta no máximo em novas formas de descrição do mundo. A prática, por sua vez isolada, sem os pilares da teoria, sem hipóteses a serem testadas na realidade, tateia sem rumo e resulta quase sempre em fiascos.

A práxis, ou a sua tradução como palavração, faz a fortuna da teoria de conhecimento de Paulo Freire, no sentido de que só podemos conhecer e transformar o mundo se fizermos a análise concreta da situação concreta.

Diz Freire no livro como prática da liberdade (pág. 43, Paz & Terra, 1999): “A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em ternos de relativa preponderância, nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas”. 

Teoria do conhecimento – Enfatizo aqui o pensamento de Paulo Freire como uma teoria do conhecimento, de caráter político, libertador e humanizador, porque, como bem demonstrou Venício A. Lima no livro que acaba de lançar, A prática da liberdade, para além da alfabetização, muita gente (por malícia ou ignorância, eu acrescento) tenta limitar as suas ideias ao campo da educação e até a reduzi-las a um método de alfabetização de adultos. 

Ora, disse Freire no Simpósio Internacional para a Alfabetização realizado no Irã, em 1975: “Não basta saber ler mecanicamente que ‘Eva viu a uva'. É necessário compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir uvas e quem lucra com esse trabalho”.

Aqui Freire condensa em duas linhas toda a questão da educação e da transformação do mundo no contexto do sistema capitalista de produção. Compreender essa totalidade concreta (com a divisão internacional do trabalho, as desigualdades Norte e Sul, o estágio neoliberal do sistema etc) exige, obviamente, uma visão de mundo muito abrangente, crítica, denunciadora da alienação dos trabalhadores e do fetichismo da mercadoria, que abre caminhos para a mudança do status quo. E é justamente essa visão de mundo que se configura como a teoria de conhecimento desenvolvida pelo filósofo pernambucano, “uma síntese de diferentes tradições filosóficas” na expressão de Venício A. Lima, e que estão vinculadas ao cristianismo, à fenomenologia, ao existencialismo, ao marxismo etc.

Fechando, ou não – Como eu não sou um especialista na obra de Paulo Freire, sou, se tanto, só um “curioso epistemológico” atrevido, vou tratar de botar um ponto final nesses ralos comentários, consciente de que talvez fosse mais adequado usar as reticências como sinal de que a matéria é vasta por demais…

Antes, porém, transcrevo a letra do belíssimo Samba da Utopia de Jonathan Silva, junto com o link para que vocês a acompanhem na voz de Ceumar Coelho no YouTube: https://youtu.be/KDXX7m3iBzc

Na minha opinião, essa música traduz quase à perfeição a filosofia de Paulo Freire, que também era poeta, criador de novas palavras e conceitos necessários para a leitura e a pronúncia do Mundo, quer dizer, a sua transformação:  

Samba da Utopia

 

Se o mundo ficar pesado

Eu vou pedir emprestado

A palavra poesia

 

Se o mundo emburrecer

Eu vou rezar pra chover

Palavra sabedoria

 

Se o mundo andar pra trás

Vou escrever num cartaz

A palavra rebeldia

 

Se a gente desanimar

Eu vou colher no pomar

A palavra teimosia

 

Se acontecer afinal

De entrar em nosso quintal

A palavra tirania

 

Pegue o tambor e o ganzá

Vamos pra rua gritar

A palavra utopia


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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