Piroquibegisa: Não significava nada a estranha palavra inventada pelo velho... E era exatamente essa a sua maior serventia!

PIROQUIBEGISA: NÃO SIGNIFICAVA NADA A ESTRANHA PALAVRA

Piroquibegisa: Não significava nada a estranha palavra inventada pelo velho… E era exatamente essa a sua maior serventia!

Um dia, tarde da noite, meu pai saiu com essa, piroquibegisa. Não significava nada a estranha palavra inventada pelo velho. E era exatamente essa a sua maior serventia

Por Marcilio Godoi do Facebook

Dependendo da inflexão, podia significar tudo, do muxoxo à louvação mais fervorosa, piroquibegisa. Eram tempos difíceis e solitários e ele a adotou para si, o cobertor sobre os joelhos, piroquibegisa.

Quando a morte da nossa mãe parecia mesmo inevitável, ele nos chegou mansamente com esse som impalavrável, piroquibegisa. E na iminência da passagem dela, balbuciava ainda mais a tal impalavra, aqui e ali, aturdido, sem poder acreditar no que via, no que ouvia, no que vivia e não mais vivia, piroquibegisa.

Quando nossa mãe se foi, ele não se revoltou por sua súbita incontornável miséria. chorou, chorou fundo, fundo, uivando piroquibegisas por toda a casa.

As sombras da morte acossaram-no noites afora, as imagens mais duras o colheram em sobressalto no escuro. Sem resposta, ele tinha ao menos a sua palavra, amiga das urgências, expedita das causas impossíveis, piroquibegisa, a palavra-frase, a palavra-oração.

Hoje anda feito um zumbi pela casa, arrastando sua palavra e as velhas pantufas pelo corredor, com a solidão a ladrilhar-lhe de renúncia o peito, piroquibegisa.

Ontem, no entanto, quando minha irmã e eu lhe falávamos de coisas ligadas ao amor e à espiritualidade, ele formulou uma frase inteirinha. Dirigindo-se à nossa empregada de muitos anos, falou calma e pausadamente: – Chica, escuta essa história aqui para mim. E depois não me conta ela não… – Era esse um dos significados mais tristes da palavra mais prática de todas, negativamente, piroquibegisa.

Seu neologismo foi, aos poucos, crescendo em significados e foi ficando muito bem assim, quietinho, sempre disponível no bolso do pijama. Tornou-se uma saída prática, uma solucionática, um modo emergencial de indignar-se indignando a sintaxe, gramática, a retórica e a dialética não piroquibegistas.

E fez-se assim a palavra mágica, núcleo de expressão semântica multifacetada, de elaboração sofisticadíssima, pois que contém em si elevado poder de antagonismos valendo por resignação e revolta, piroquibegisa. Fé e descrença, piroquibegisa. Reflexão e medo, piroquibegisa. Em seu segredo, a despalavra guarda também o silêncio obsequioso de tudo aquilo que não tem mais resposta nem serventia, esse, então, o mais poderoso atributo da palavra, o de ser a pausa que nos faculta não mais estar aqui nesse mundo, piroquibegisa. De nada mais ter que dizer palavra, piroquibegisa.

Como em um dicionário só de termos em desuso, o léxico de meu pai foi, aos poucos, se reduzindo, rareando até essa sua não-palavra, a palavra-tudo, a palavra partícula-de-deus, só visível no tubo desse acelerador de destinos chamado morte. Trata-se da palavra-idioma, única palavra falada no país da velhice para além da velhice, oficial no planeta solidão, um lugar em que todos falam fluentemente o piroquibegês, língua ardilosamente conjugada em um tempo que não nos leva mais, mas também não nos mente, não nos passa mais a perna, não nos passa, não nos ultrapassa.

Do mesmo modo, sua vida vai apagando, assim como todas as outras palavras se apagaram. Voluntariamente se esvai, como se fosse ela, sua vida mesma, o vulto que diminui lentamente na estrada até que, em uma curva ou sutil depressão do terreno, em breve, já sabemos, afundar-se-á, desaparecendo para sempre, como uma estrela nascendo ao contrário, no poente das montanhas de um belotriste horizonte.

Se repararmos bem, no entanto, é ele também quem está olhando, quem ainda se encontra ali, da janela que dá para a varanda do edifício em que ficava nossa casa. Dali ele ainda se vê e espera, assistindo a tudo isso sobre si mesmo, sozinho. Piroquibegisamente.

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Foto: Istock

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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