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POR UMA POLÍTICA DO COTIDIANO

POR UMA POLÍTICA DO COTIDIANO

Por uma política do cotidiano

Circula na mídia corporativa uma agressiva campanha de marketing para descrever as virtudes dos proprietários de picapes, de uma determinada marca

Por Luiz Marques/Fundação Perseu Abramo

Argumenta que: “Ser picapeiro não é sobre ter; é sobre ser. Somos aventureiros, únicos, família, empreendedores”. Leia-se, a posse da caminhonete não é uma questão de classe social, mas um dom espiritual / racial. “Temos coragem para ir além”.

Assim, propagou-se o arianismo na Alemanha ao salientar a distinção dos alemães puros (arianos) em relação às etnias inferiores. Os comuns não compartilham a essência do ser, acomodam-se à pasteurização e ao anonimato da multidão. Não valorizam os laços de sangue e tampouco idolatram a iniciativa privada. O produto-significante transfere o significado heroico para os consumidores.

O convite sub-reptício para transcender reatualiza o discurso expansionista dos nazistas nas práticas neoliberais contra as regulamentações estatais. Se considerarmos que as peças publicitárias visam, em especial, o mercado dos agentes do agronegócio que percorrem grandes distâncias em estradas de chão batido, os quais defendem a “autofiscalização” em suas terras no que concerne ao equilíbrio ecológico; então se esclarece a ênfase para ir além das convenções. Estudos de semiótica de Roland Barthes auxiliam na compreensão dos símbolos linguísticos dos novos rebeldes a favor do sistema.

À propaganda interessa a gramática e o léxico dos grupos socioeconômicos. É no habitus para a construção da economia política que se encontram os traços do capitalismo nas classes sociais. A arrogância colonialista (racista) dos dominantes, o vetor da acumulação (o hiperindividualismo), a lógica do agro no campo (a plantação de soja que ataca os biomas, o desmatamento da Amazônia) e a ação predatória das megaconstrutoras nas cidades (os arranha-céus nas orlas, a financeirização de espaços de sociabilidade) são os signos da destruição que deixa um rastro de ruínas atrás de si.

A cotidianidade é o palco, por excelência, das contradições capitalistas que ameaçam a democracia. Em suma, é no nível da vida cotidiana que podemos julgar realmente uma sociedade. No Brasil, a presentificação dos 350 anos do passado colonial-escravista se observa na maneira como a classe média se dirige às caixas de um supermercado; ou na abordagem de menosprezo a um garçom no restaurante; ou na exigência supremacista de um “quartinho de empregada” nos apartamentos.

Coleira no pescoço

Na campanha eleitoral, em curso, a direita chama de “adensamento” a verticalização das urbes em regiões que dispõem de equipamentos (hospitais, escolas); um eufemismo. Estão subentendidos o abandono da periferia ao deus-dará e a aliança da administração do município com a especulação imobiliária com vista ao lucro. Os cuidados só aparecem nas comunidades periféricas, em eleições.

Em Porto Alegre, após a tragédia climática, o prefeito bolsonarista Sebastião Melo (MDB) iniciou o asfaltamento de ruas em bairros atingidos pelas enchentes; como o quero-quero, canta sempre longe do ninho. A demagogia oculta a incúria e prejuízos patrimoniais, financeiros, psicológicos, morais.

Em São Paulo, em tom solene, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) declara aceitar o ex-ministro da Economia Paulo Guedes – do desgoverno no quadriênio miliciano – para uma secretaria no segundo mandato; se Jair Bolsonaro lhe pedir. A sabujice com a mediocridade e o negacionismo apenas não é maior do que a irresponsabilidade para com o povo da grande metrópole paulistana. Em um centro de fachada, Melo e Nunes militam com a coleira do status quo, no pescoço. Não buscam eleitores com propostas para, quiçá, cumprir as promessas desde sempre descumpridas; acenam com a velha sinalização para ressuscitar os fantasmas do “anticomunismo” – obrigatório no cardápio do medo.

A estratégia da direita e sua extrema recende os “vendilhões do templo”, de priscas eras. Combina a maquiagem e as fake news sobre a cotidianidade com o aceno à guerra cultural: “um político não se conhece pelo que promete hoje, mas pelo que fez ontem”, sentencia Olavo de Carvalho em seu site, Sapientiam autem non vincit malitia, inspirado no apóstolo intelectual Paulo de Tarso (09/10/2008).

A lembrança das ocupações do MTST lideradas por Guilherme Boulos (PSOL/SP) e a defesa dos Direitos Humanos, por Maria do Rosário (PT/RS), são ventiladas em momentos da batalha para ideologizar a sua procedência de esquerda, na luta de classes, e disseminar o pânico na sociedade. A saída do labirinto está em evidenciar um projeto – qualitativamente – alternativo para a população.

Ao subtrair sua condição, les enfants terribles reiteram os preconceitos às mudanças. Apresentar mais do mesmo, como se a linha de separação entre a direita e a esquerda dependesse da quantidade de energia para alcançar objetivos idênticos, não funciona. Isso o conservadorismo consegue, sem mudar o que está aí. Potencializar o consumismo e a adaptação passiva à ordem adormece o espírito subversivo. No Sul global, no máximo, forma os românticos sem apreço pela organização política.

Faz como a aurora

As críticas moralistas ricocheteiam na armadura do populismo extremista. No redivivo “estado de natureza” hobbesiano o que importa é derrotar o inimigo. As vantagens amealhadas do Erário são troféus conquistados por minar os alicerces de eticidade do Estado de direito democrático, tido um bunker das “elites políticas”. É o que torna a atividade no Executivo e no Legislativo bom negócio para os cafajestes, cuja única vocação é se locupletar com elásticas vantagens nos cargos eletivos.

O Judiciário faz igual, com a caneta Mont Blanc para autorizar o aumento de salários e prebendas indecentes em causa própria. O paradoxo consiste na conversão da esquerda em apologista de um sistema podre, nas esferas de mando da República, em cada unidade federativa. O enaltecimento abstrato das instituições favorece a ideia de acumpliciamento com o establishment oficial. Na conta, entra a precarização do trabalho legalizada na aprovação da Reforma Trabalhista e Previdenciária pelo governo do golpista Michel Temer, e a lei das terceirizações celebrada pelo atual presidente da Suprema Corte Luís Roberto Barroso. O garrote “contra a radicalização” sufoca toda indignação.

O risco é fazer desaparecer a crítica da vida cotidiana para não parecer radical, abdicando de outra possibilidade de existência individual e coletiva para não receber a pecha de utópico. O resultado é o aval silencioso à reprodução das estruturas que acirram o mal-estar da civilização e os sacrifícios hercúleos para colocar a comida na mesa.

Ao fazer da cotidianidade um sinônimo da imediatidade neoliberal, a alienação barra a consciência para lutar por uma nova realidade. Em termos marxistas, implica dissociar o indivíduo do “pertencimento à espécie humana”, o que gera a subcidadania.

Retomar a ética na política é propor uma reestruturação plena da vida cotidiana. Esse é o dever de uma nova esquerda, de fato e de direito. Os ideais igualitários não se resumem nas realizações econômicas, antes se exprimem na transformação da diuturnidade das tarefas dos trabalhadores, dos sentimentos e dos desejos. O aumento da representação “identitária” nas instâncias parlamentares é um grito de libertação da cotidianidade em face dos grilhões que prendem pessoas na imediatidade. Combater o sofrimento é interpelar oprimidos e explorados para qualificar a sua / nossa existência.

Conforme sublinha Agnes Heller, em La théorie des besoins chez Marx / A teoria das necessidades em Marx: “O socialismo não é somente a sociedade economicamente mais justa, é a sociedade que permite uma vida diferente”. Exercitar a imaginação com base nas experiências do dia a dia é o caminho para desconstruir o mundo artificial criado pelo marketing neoliberal e conservador, com a ajuda dos cães de guarda da mídia parceira dos poderosos. A história não submerge o cotidiano.

Um programa político e ideológico para mudar a sociedade deve também mudar a vida, e vice-versa. Humanizar uma é humanizar a outra; coisa que o neofascismo não pode e não pretende. Tal é o compromisso da esquerda que ousa dizer seu nome, e avança sem medo de ser feliz. Vem, segue o conselho do poeta, e faz como a aurora quando nasce: “Tira o lenço vermelho e agita-o ao vento”.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Revista Xapuri.

Fonte: Fundação Perseu Abramo

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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