Primeira turma de professores indígenas do Vale do Javari cola grau em ensino superior
Após 21 anos de estudos e espera, a turma de Licenciatura Intercultural Indígena consegue alcançar o sonho da graduação. Entre os desafios, estavam a falta de políticas públicas, distância e transporte. A foto acima mostra os indígenas do Vale do Javari, em foto cedida pelo professor do curso, Luciano Cardenes…
Por Wérica Lima/via Amazonia Real
Manaus (AM) – Pela primeira vez uma turma composta por 33 indígenas dos povos Matis, Mayoruna, Marubo e Kanamari da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, formam-se no ensino superior em Pedagogia – Licenciatura Intercultural Indígena, pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Os formandos iniciaram o curso em 2016, são egressos do programa de formação de professores indígenas Pirayawara, um projeto de educação escolar da rede estadual de ensino, e comemoram uma vitória histórica na luta pela educação indígena do território.
“Para nós, é um sonho se formar, ter esse conhecimento e passar para o nosso povo. A gente poder mostrar o que é isso para eles, correr atrás dos nossos direitos e ver os nossos deveres”, conta a professora Maria Magalhães, formanda do povo Kanamari, à Amazônia Real.
Conforme Gonçalo Borges, do povo Mayoruna, a formatura é um orgulho e esforço mútuo para honrar a vida dos ancestrais que lutaram e esperaram por esse momento, mantendo a história viva.
“Eu consegui e cheguei até aqui para ter uma vida melhor, pensando nos territórios, nas nossas comunidades e pensando no que os caciques esperam de nós. Eu estou muito orgulhoso, bem e feliz da gente estar se formando e ser a primeira turma de licenciatura dos povos do Vale do Javari”, afirma.
Os formandos já trabalham como professores em 48 escolas municipais localizadas em diferentes calhas de rios do Vale do Javari, na educação infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental. Com a formação, alguns indígenas agora trabalham como assessores pedagógicos representando seu povo nas sedes das secretarias municipais e estaduais do município de Atalaia do Norte, onde fica a TI Vale do Javari.
“São os alunos do nosso curso que estão ocupando esses espaços, então é uma quebra de paradigmas se nós considerarmos que muito recentemente a maior parte dos espaços da educação escolar indígena no Vale do Javari eram ocupados por professores não indígenas num período anterior por missionários, por religiosos”, ressalta o antropólogo Luciano Cardenes, um dos professores que ministraram aula no curso, e que receberá homenagem durante a solenidade de formatura.
A turma recebe o nome do falecido professor Juan Carlos Marques, antropólogo colombiano que dedicou-se por 15 anos à pesquisa e educação no Vale do Javari. O professor será o principal homenageado na colação por atuar na articulação do curso até próximo de sua morte, em 2019.
A colação de grau dos estudantes acontece nesta sexta-feira (16), às 19h (horário local de Atalaia do Norte), no ginásio poliesportivo local. Além dos alunos, participarão da solenidade a vice reitora da UEA, Katia Couceiro, o paraninfo e linguista Sanderson Oliveira, as coordenadoras Celia Aparecida Bettiol e Adria Simone Duarte, e autoridades locais, como o presidente do União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Marubo.
Formação demorada e formatura adiada
Os módulos da licenciatura ocorriam nos períodos das férias escolares entre janeiro e fevereiro e julho e agosto, com atividades relacionadas à pesquisa sobre seus povos,línguas e culturas no final de cada módulo no retorno para casa.
Segundo Alciney Doles, do povo Marubo e da comunidade São Sebastião, a educação escolar tornou-se mais visível e de melhor qualidade com a presença de professores indígenas do que antes, quando ele era criança e precisou deixar de estudar duas vezes por falta de assistência.
“Essa formação superior contribuiu bastante no ensino-aprendizagem nas escolas indígenas onde atuamos no desenvolvimento pedagógico, na política de educação escolar indígena e gerenciamento das escolas”, diz.
Mesmo com o assessoramento das escolas sendo feito agora por indígenas, a coordenadora do curso, Célia Bettiol, afirma que é um desafio e faltam mais pessoas para essa atuação.
“Há uma demanda reprimida por formação de professores para atuar tanto nos anos iniciais quanto nos anos finais e esse é um grande gargalo da educação escolar aqui. O Vale do Javari é uma região com comunidades que ficam distantes, então também há uma dificuldade maior de acessar as políticas públicas que outros povos que estão em áreas mais próximas das cidades”.
A formação dos professores do Vale do Javari demorou muito mais que o esperado; quase 20 anos. O processo acadêmico dos formandos começou em 2001 por meio do projeto Pirayawara ofertado pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc), uma formação de nível médio que habilita professores para o magistério indígena para atuar nas escolas das suas comunidades. O curso, que tinha previsão para acabar em quatro anos e meio, levou mais de uma década e só foi finalizado em 2014, 13 anos após o início, com dificuldades de transporte, alimentação e doenças.
“Algumas avaliações apontam essa dificuldade de finalização e de gerenciamento com relação aos recursos e a temporalidade do curso. Então tudo isso e os últimos ataques a educação, creio que fizeram que o Pirayawars não implantasse novas turmas numa velocidade muito grande, o que eu sei é que existem turmas e que estão em processo de de tempo diferente”, explica Adria Simone.
Ao chegarem na graduação, em 2016, encontraram os mesmos desafios juntamente com a pandemia, que paralisou o curso por mais de um ano, e um agravamento das violências territoriais.
A formatura da turma deveria ter acontecido em junho de 2022, mas foi adiada devido ao assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no dia 5 daquele mês. Segundo Célia Bettiol, Bruno Pereira apoiou o trabalho do curso, na época em que ele era servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai).
“Não foi possível a realização dessa ação devido ao assassinato dois dois. O Bruno Pereira articulou junto à Funai as ações que possibilitaram a implantação da turma do Curso como a liberação de combustível para o deslocamento dos professores indígenas de suas aldeias até a cidade de Atalaia do Norte”, lembra Célia Bettiol.
Os desafios para alcançar o ensino superior
Maria José Magalhães, 38, do povo Kanamari, é uma das duas únicas mulheres presentes na turma de homens indígenas. O desafio dela é superar barreiras e ocupar espaços enquanto mulher indígena. Moradora da comunidade Irari II, ela trabalha com educação desde 2001 e levou 14 anos até ter a possibilidade de cursar uma graduação.
“Nós, mulheres indígenas ficamos em ‘menos’ [número] porque muitas das vezes na etnia,no geral, eles [os homens] não tinham isso de dar oportunidade para as mulheres indígenas. O que eles tinham na mente, o que eles pensavam era que as mulheres não eram capazes de nada. Que a mulher era só para cuidar de casa, cuidar das crianças, fazer comida”, conta.
“Eles achavam que a mulher não era capaz de resolver alguma coisa. Então isso eu passei. Nunca eles queriam dar uma oportunidade. Mas agora não, agora as mulheres já estão saindo mais, correndo atrás, buscando se especializar. Todas essas coisas a gente passou pelo desafio dos homens, mas que os homens agora já entenderam mais, apesar de até hoje alguns ainda olharem de má fé para nós duas”, complementa.
Vinda de uma época em que não existia professor indígena nas aldeias do território, Maria relembra o que precisou enfrentar para ter acesso à educação. No início de 2001, o seu pai, cacique da época, precisava selecionar alguém que falasse um pouco de português para ajudar na educação local. Ela foi escolhida e trabalhou sem receber nenhuma ajuda de custo por um ano, até começar a receber um salário mínimo no valor de R$ 200.
Inicialmente, havia apenas a vontade de contribuir com a educação do seu povo de alguma maneira, enfrentando desafios sem uma formação. “Não tínhamos parentes na comunidade que tivessem um pouco de conhecimento da educação. No meu caso, eu entrei sem ter conhecimento da educação, eu não sabia. Quando entrei na aula, já tive que iniciar a trabalhar com o que eu entendia, então esses foram meus desafios. Eu entrei e pensei como que eu ia fazer com o meu povo”.
“Foi muito difícil chegar onde nós chegamos, porque quantos dos meus colegas quiseram chegar até onde eu estou e não conseguiram? Muitos já foram a óbito com o que aconteceu [pandemia], por causa de doença”, relata.
Valorização da cultura ancestral
Pertencente ao povo Matis, quase extinto durante a década de 80, Makë Bush é o terceiro indígena de seu povo a se formar no ensino superior e o primeiro em pedagogia intercultural. Com uso da língua Matis, do tronco Pano, tem contribuído para registrar sua cultura ancestral.
“Eu já convidei os velhos para contar histórias na escola do que acontecia desde do começo da origem dos Matis, e também fiz atividades importantes, pois através da prática é que nós aprendemos, para valorizar nossos objetos na prática, na roça, na pescada, na caçada”, explica.
Utilizando a língua de seu povo, Makë Bush dedica-se a produzir materiais educacionais, como dicionários, livros e cartilhas. “Nem sempre nós aplicamos a língua portuguesa. Primeiro vem a língua materna, só depois entra a língua portuguesa, de acordo com nossa realidade”.
Orgulhoso e admirador de seus alunos, o antropólogo Luciano Cardenes destaca que a diferença da língua, mais do que uma barreira, se constitui num esforço de diálogo intercultural. Ele diz que isso é percebido tanto da nossa parte dos professores do curso de Pedagogia quanto dos indígenas.
“Ele (Makë Bush) é um aluno que representa e possui características que são muito expressivas de uma pessoa que se dedica à própria formação pensando no seu povo. Então, além de saber falar e escrever a própria língua, ele também consegue entender e se comunicar nas línguas dos outros colegas”
Diferente de uma formação tradicional, o curso de Pedagogia passa a formar um caminho para preservação da língua e do ancestral, permitindo que os indígenas contem suas próprias histórias e produzam material didático especialmente para eles.
“O curso de pedagogia intercultural promove esse protagonismo indígena, promove também um lugar de destaque e central de relevância das línguas indígenas na educação desses povos. As línguas indígenas a partir desses professores que nós formamos não é complementar, não está no segundo plano, mas está num primeiro Plano e o português então é que passa a ser a segunda”, conta Cardenes.
O tabu quebrado
O antropólogo Rivelino Barreto, do povo Tukano, e que atua na educação básica e superior em Manaus, foi professor temporário da turma de pedagogia do Vale do Javari. Ele conta que a presença indígena na educação ainda é vista como um tabu, e a realidade é desconexa com o que se imagina.
“Minha presença como docente marcou muitos momentos de choques. Isso porque, para a maioria da sociedade em geral, docente indígena universitário ainda é uma novidade. Na verdade, no Brasil, quase não se fala ou não há presença considerável em grande número no que se trata de docentes indígenas universitários. Inclusive, nos Editais de concursos de universidades Públicas que acompanho e já participei, ainda não temos vagas reservadas para os indígenas, temos para negros, pardos, mas para os indígenas não”, comenta.
Em Atalaia do Norte, durante período de docente no curso, Rivelino Barreto não conseguiu se hospedar no quarto que havia sido reservado para ele ficar durante as aulas, pois o funcionário do hotel descartou que ele pudesse ser o professor aguardado. “No dia seguinte, o coordenador local foi em busca do professor da UEA no hotel, ao que lhe responderam que não tinha chegado nenhum professor, somente um indígena”, explica.
“Um indígena ocupar um espaço acadêmico ainda é um grande desafio, mas também já é uma realidade promissora na medida em que vamos tendo um grande número de acadêmicos indígenas em diferentes cursos. Além disso, minha presença no curso ou junto aos acadêmicos indígenas não foi levar ou apresentar uma educação, mas sim dialogar com a educação que cada acadêmico indígena já carrega consigo”.
Para Rivelino, a formatura significa viver um momento de reparação histórica, sendo uma forma de conquistar os direitos sociais e educacionais como direito aos povos indígenas. “Nós indígenas não precisamos de favores, o que precisamos é de oportunidades”, afirma.
“A escola, a universidade, professoras e professores, são uma necessidade, hoje, nas aldeias e para as aldeias, não mais para ensinar ou doutrinar, mas para proporcionar um mecanismo de resistência e luta pelas políticas públicas nas localidades e terras indígenas através de estudo, formação acadêmica e luta social da política indígena”.
Salário baixo
Os próximos passos dos professores indígenas do Vale do Javari é enfrentar os obstáculos do magistério da sala de aula e no reconhecimento do trabalho. Os salários são muito baixos. Os professores esperam que sejam mais valorizados.
“Para nós da educação indígena o que também nos deixa triste é em relação ao pagamento do nosso salário, a base salarial, pois é muito trabalho e não somos respeitados, o nosso salário nunca é aumentado, sempre é aquele valor. A gente espera também que melhore [o salário] com esse conhecimento agora. A gente precisa que melhore”, desabafa Maria Magalhães, que revela que a maioria dos professores possuem apenas uma jornada de 20 horas e recebem um salário de R$1.700.
Atuando como apoio pedagógico na sede da Secretaria Municipal de Educação (Semed) de Atalaia do Norte representando quatro escolas do povo Kanamari, Maria Magalhães agora se sente preparada para contribuir com uma educação de qualidade nos territórios indígenas.
“Hoje eu estou tão animada, tão alegre porque a gente espera que essa educação seja melhor do que estava ainda, porque na época a gente não tinha os professores capacitados e hoje eu sou capacitada, tenho esse conhecimento”, acrescenta.
Makë Bush, que cursa especialização em Saberes e Práticas Tradicionais pela UEA e pretende fazer mestrado e doutorado futuramente, tem planos de continuar produzindo. “Futuramente estamos querendo fazer um projeto para publicar um livro, que é importante para trabalhar com os estudantes. Os mais velhos estão morrendo e muitos têm conhecimentos medicinais. Temos que valorizar melhor através do material didático. Depois quero fazer um dicionário também, nós não temos a ortografia do Matis”.
Para um futuro de projetos, Luciano Cardenes, que atuou em todas as turmas de formação de professores indígenas da UEA, destaca a necessidade do curso de Pedagogia Intercultural expandir e proporcionar mais apoio aos estudantes que enfrentam dificuldades em regiões de difícil acesso e falta de materiais.
“A UEA e as autoridades maiores, não tem uma noção clara da importância dos cursos de licenciaturas interculturais para professores indígenas. Como professor, a gente exalta o trabalho que a gente faz, mas a gente sofre com a falta de uma política institucional mais madura que ofereça as condições de trabalho com dignidade e qualidade que os povos indígenas do Amazonas merecem. A UEA precisa criar um Centro de Estudos Superiores dos Povos Indígenas para acolher as reivindicações de formação indigena do Estado do Amazonas”, conclui.
“Precisamos que o Estado entenda cada vez mais nossos princípios éticos e morais. O Estado precisa se integrar mais junto às nossas culturas indígenas. Isso porque, se as nossas culturas incomodam, não é nós que temos que mudar, é o Estado, as instituições, o sistema é quem tem que mudar”, complementa Rivelino Barreto.
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