Pxeira e a arte de combate à intolerância

PXEIRA E A ARTE DE COMBATE À INTOLERÂNCIA

Pxeira e a arte de combate à intolerância

“Famílias só com mãe e avó são fábricas de desajustados” – assim nos falou dia desses o general que nutre especial admiração por torturadores e assassinos responsáveis pela morte de centenas de pais e mães durante a ditadura brasileira

Por Leticia Bartholo 

Não é necessária muita atenção para perceber que, vinda de quem veio, esta frase é bem mais que um desajuste: é um completo ultraje a milhões de mães e avós brasileiras que batalham sozinhas para criar com dignidade as crianças que não podem contar com os seus pais.

Muitas vezes, essa ausência do pai decorre de uma ação de abandono proposital, ou da fuga da mãe de circunstâncias de violência contra si e seus filhos, perpetradas pela própria figura paterna. Outras, no entanto, e não podemos nos esquecer delas, decorrem da morte do pai: praticamente a metade das mortes de jovens do sexo masculino entre 15 e 29 anos são causadas por homicídios, parte delas pela a ação violenta do Estado.

O que parece ao leitor realmente um desajuste? As milhões de famílias existentes sem a figura paterna, ou o abandono parental masculino, a violência doméstica e as mortes por assassinato? Pois é, está claro que o general troca consequência e causa, como quem troca os pés pelas mãos. Por trás de sua frase vil, um substrato infelizmente ainda comum na sociedade brasileira: o substrato do machismo e do desrespeito à diversidade.

Eu, criada por mãe e avó, conheci outros tantos “desajustados” ao longo de minha vida. Entre eles, meu amigo e cartunista Daniel Pxeira, autor de charges famosas, como a que ilustra este texto. A mãe de Pxeira migrou de Recife para São Paulo com ele e suas outras duas filhas, fugindo do machismo e buscando a sobrevivência de sua família.

Fixaram-se na chamada “Boca do Lixo”. Lá, me conta ele, passou a infância incomodado com os maus tratos e o
desprezo presentes no tratamento dado a mulheres, nordestinos, gays, travestis e prostitutas. Conforme foi crescendo e compreendendo o fenômeno da intolerância, Pxeira passou a militar ativamente contra ela, usando política e arte como forma de combate.

Sua charge “O amor não é doença: é cura. Trate seu preconceito” correu o mundo pelas redes sociais, tal como a charge “Somos milhões de Lulas” percorreu todo o Brasil. Entre elas e seu criador, o vínculo de luta contra o sectarismo provocado pelo desrespeito aos direitos humanos e pelas desigualdades de gênero, raça e classe.

Pxeira faz parte dos milhões de cidadãos e cidadãs brasileiras que, criados por mães e avós, sabem que o verdadeiro desajuste é a intolerância que mata, todos os dias, mulheres, negros, LGBTIs e pobres deste País. E sabem, assim como sabemos eu e você, que nossa frágil e já lacerada democracia não será destruída por fascistas disfarçados de militares na reserva.

Eles que fiquem na reserva, porque nós estamos em campo. E jogando pra ganhar com as únicas armas que nos servem: a solidariedade, o respeito, a empatia e o amor.

ANOTE AÍ:

Leticia Bartholo

Texto: Letícia Bartholo. Socióloga.
Arte: Daniel Pxeira. Sociólogo, cartunista e militante dos direitos humanos e das artes.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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