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QUANDO EU ERA PEQUENA

QUANDO EU ERA PEQUENA MINHA MÃE ME CONTAVA HISTÓRIAS…

Contando suas memórias Marcia Bortone fala da importância do ato de ler, entender, interpretar, intertextualizar  e questionar o mundo. Que sorte a dela: “Minha mãe me ensinou a amar os livros e meu pai me ensinou a amar a sétima arte, o cinema, mas essa é uma história que contarei oportunamente”.

Por Marcia Bortone 

A leitura sempre me despertou emoções e muita reflexão. Emoções porque, em muitas páginas, eu pude reencontrar a mim mesma na história de cada autor. A memória das experiências vividas por cronistas, romancistas e poetas fazem, em todo momento de minha existência, renascer em mim a minha própria história.

Quando eu era pequena minha mãe me contava histórias. Eu tenho certeza que este meu amor pela leitura e pela formação de professores tem tudo a ver com esse gesto singelo, mas de fundamental importância, minha mãe me contava histórias. 

Para todo lugar que íamos, e mamãe sabia que iria demorar, carregava o livro de histórias e as contava. Eu ouvia histórias na sala de espera do dentista, do médico, da telefônica… Naquela época íamos à telefônica fazer interurbano e lá ficávamos um tempão esperando sair a ligação. Pois bem, tínhamos todo o tempo do mundo e, nessas horas, minha mãe me contava histórias. Ela fazia como uma novela, por capítulos, de forma que sempre parava em um momento interessante e dizia: amanhã eu continuo… Como demorava chegar o outro dia e como ela sabia ser Sherazade… 

Foram muitas histórias: Alice no país das maravilhas, Pluft, o fantasminha, o Sítio do Pica-Pau Amarelo, O saci, João e Maria, Ali Babá e os quarenta ladrões, A Moura torta, Os desastres de Sofia… Lembro-me muito bem de que todas elas eram uma aventura, uma descoberta, um prazer… Que pena minha mãe não estar mais viva para lhe dizer como foi importante ela ter-me contado histórias e como este simples gesto direcionou minha vida, meu caráter, e meu amor pelo livro, pelo filme, pela peça de teatro, pela poesia e por tudo aquilo que permite dar a esta realidade, nem sempre muito perfeita, um tom de irrealidade, de poesia, de sonho, de aventuras e amor!   

Naturalmente que com a maturidade nos envolvemos com outros caminhos na leitura, novos gêneros textuais ligados ao fazer acadêmico, que nos dão formas diferentes de prazer e de conhecimento, mas a leitura que nos forma quando crianças, as lembranças e as memórias do nosso aprendizado, sem dúvida, passam pela forma como construímos nossas representações infantis e este momento marca nossa vida para sempre. Ao compreender que o sujeito se constrói a partir de suas experiências, admite-se que a leitura é uma construção das relações entre o texto lido e a subjetividade do leitor.

Hoje tenho certeza de que só se torna leitor quem teve o privilégio, quando criança, de ter se emocionado com a descoberta da leitura.  Há algo mágico na experiência de se ouvir histórias: a descoberta e o prazer da criança ao descortinar um mundo novo por meio da leitura. Isto significa que não bastam aparatos metodológicos e teóricos na formação do aluno-leitor, é necessário que o prazer, a descoberta, a imaginação, o mistério e toda aquela curiosidade, que faz parte do imaginário infantil, façam parte da descoberta da leitura. É por essa razão que todo livro de história traz um denominador comum, que é justamente esta descoberta!

Todos os relatos dos muitos livros lidos no decorrer de nossa vida nos trazem a certeza de que a experiência de leitura é uma aventura constante e singular e que cada viagem é diferente e inusitada.

Precisamos tomar consciência que nossa mente é flexível e permite que adotemos novas formas de pensar e de interpretar o mundo. Ouvir histórias, quando somos pequenos, nos ajuda a entendê-lo um pouco mais. Podemos dizer que quando aprendemos, nosso horizonte se amplia, não vemos apenas nosso bairro ou nossa cidade, mas começamos a ver o mundo como um todo e mais do que isso, começamos a entender o planeta em que vivemos, nosso sistema solar, nossa galáxia e até informações sobre a infinitude do universo. Ou seja, nesse momento, há uma ampliação de nossa cosmovisão. 

Seja por prazer, seja para estudar ou para se informar, a prática de ouvir (e contar) histórias aprimora nosso vocabulário e dinamiza nosso raciocínio e nossa capacidade de interpretação. Pessoas que não são leitoras têm a vida restrita à comunicação oral e dificilmente ampliam seus horizontes, por ter contato apenas com ideias próximas das suas, nas conversas com amigos.  Mas nos livros temos a chance de entrar em contato com o desconhecido, conhecer outras épocas e outros lugares e, com eles abrir a cabeça. 

  A literatura é um bem cultural da humanidade com grande valor histórico e artístico. Sua evolução nos informa os contextos e os momentos vividos por vários recortes da sociedade e de quem a escreve, imprimindo-lhe um diferencial peculiar e estético. Nelas estão impregnadas, aspirações, crenças, ideologias, culturas, formas de alimentação e vestuário, sentimentos e emoções. Todo esse poder da literatura contribui para o crescimento da visão humana e seu diálogo com todo o planeta em diversos momentos da história da humanidade. Ao ler um bom texto literário, o leitor participa daquele momento construindo suas ligações a partir do mundo real com uma realidade paralela, muitas vezes fantástica, como em ‘Cem anos de Solidão’, trazendo para si as significações do momento vivido pelo autor, construindo um canal de comunicação entre realidades diferentes.

Antônio Cândido (1995:249) apud PCN (2006:54) nos brinda com este maravilhoso pensamento, com o qual encerro aqui minhas reflexões.

Entendo por humanização […] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”

Minha mãe me ensinou a amar os livros e meu pai me ensinou a amar a sétima arte, o cinema, mas essa é uma história que contarei oportunamente.

Marcia Elizabeth Bortone – Professora aposentada da UnB – Departamento Letras. Trabalha com a linha da Sociolinguística e é Membro Efetivo da Alaneg/RIDE – Academia de Letras e Artes do Nordeste Goiano. Reside atualmente em São Lourenço – MG.


 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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