Que tipo de religião liberta?

Que tipo de religião liberta?

Que tipo de liberta?

Para reconstruirmos a sociedade a partir das vítimas dos escombros e da devastação causada pelo capitalismo, e bolsonarismo, tornou-se imprescindível compreendermos de forma libertadora o fenômeno religioso: questão religiosa, religiosidade, ideologia da prosperidade, religião reduzida a autoajuda, intimismo espiritual, moralismos e fundamentalismos com fundo religioso, uso em vão do nome de Deus para enganar as pessoas, lucrar e acumular capital…

Por Gilvander Moreira/ via Jornalistas Livres

O contexto religioso atual integra tudo isso. Há também, graças às forças de vida, fenômeno religioso libertador sendo vivenciado por milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Pastorais Sociais, Movimentos Sociais e por pessoas que pertencem à religiões de matriz africana ou indígena.

A sociologia da religião explica em grande parte como compreender o fenômeno religioso em geral, mas a Teologia da Libertação também é imprescindível para a compreensão da dimensão religiosa do campesinato na luta pela terra e do povo marginalizado nas periferias das cidades na luta por moradia, pão e dignidade. O filósofo e sociólogo da religião Michael Lowy afirma: “A emergência do cristianismo revolucionário e da teologia da libertação na América Latina (e em outras partes do mundo) abre um capítulo histórico e eleva novas e excitantes questões que não podem ser respondidas sem uma renovação da análise marxista da religião” (LOWY, 2007, p. 298). Não é mais possível considerar a participação de sujeitos na luta pela terra como se fosse uma exceção dentro de uma igreja conservadora e opressora. Para muitos “a do padre Camilo Torres, que tinha se unido à guerrilha colombiana, foi considerada um caso excepcional, ocorrida em 15 de fevereiro de 1966. Mas o crescente compromisso de cristãos – inclusive muitos religiosos e padres – com as lutas populares e sua massiva inserção na revolução sandinista claramente mostrou a necessidade de um novo enfoque” (LOWY, 2007, p. 298).

Digo mais: sem a participação de milhares de pessoas cristãs teria sido muito difícil e teria tardado muito mais o nascimento da Central Única dos (CUT), do (PT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST, já com 38 anos em 2022) e de outros movimentos socioterritoriais que travaram a luta pela terra nas décadas de 1980 e 1990 e na primeira década do século XXI no Brasil. A partir da Teologia da Libertação, muitos pensadores na área da Teologia passaram a usar como método de análise da realidade o materialismo histórico-dialético, de Karl Marx, para analisar as contradições da realidade, explicitar as causas das injustiças sociais e, assim, convocar os/as injustiçados/as para o engajamento em lutas de emancipação política, social e humana. Por assumir esse compromisso, muitas lideranças cristãs foram assassinadas. Cito alguns padres, freiras e inclusive um arcebispo: padre Camilo Torres, na Colômbia, dia 15 de fevereiro de 1966; padre Antônio Henrique Pereira Neto, auxiliar de Dom Hélder Câmara, em Recife, PE, dia 27 de maio de 1969; padre Rodolfo Lukenbein e o índio Borro Simão, na Terra indígena Merure, no Mato Grosso, dia 15 de julho de 1976; Santo Dias da , em São Paulo, dia 30 de outubro de 1979; o arcebispo Dom Oscar Romero, em San Salvador, dia 24 de março de 1980; irmã Cleusa Rody Coelho, em Labrea, no estado do , dia 28 de abril de 1985; padre Ezequiel Ramin, em Cacoal, em Rondônia, dia 24 de julho de 1985; padre João Bosco Burnier, em Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, dia 11 de outubro de 1985; padre Josimo Tavares, em Imperatriz, no Maranhão, dia 10 de maio de 1986; padre Gabriel Maire, em Cariacica, no Espírito Santo, dia 23 de dezembro de 1989; 19 trabalhadores Sem Terra do MST massacrados brutalmente pela Polícia Militar do Pará, na “Curva do S”, em Eldorado dos Carajás, PA, dia 17 de abril de 1996; irmã Dorothy Stang1, em Anapu, no Pará, dia 12 de fevereiro de 2005 etc. Em 34 anos, de 1985 a 2019, foram assassinados na luta pela terra no Brasil 1483 camponeses, uma média de 43,6 camponeses por ano.Quase todas estas lideranças camponesas eram pessoas religiosas, de uma fé libertadora. Sentiam impelidas a se comprometer com a luta pela terra também por uma motivação religiosa.A lista é muito grande, principalmente de leigas/os que se comprometeram com a caminhada das CEBs e abraçaram a luta pela terra na Comissão Pastoral da Terra (CPT), ou no MST, ou no Conselho Missionário (CIMI) ou em vários outros movimentos camponeses socioterritoriais. Não dá para citar todos.

Caiu no imaginário comum do marxismo vulgar que Marx seria ateu por considerar a ‘religião como ópio do povo’. Precisamos resgatar historicamente a evolução da compreensão da religião como ópio do povo. Quem a considerou assim, em qual contexto histórico e por quê? Fazendo sociologia marxista da religião, Michael Lowy coloca a questão religiosa como ópio, assim compreendida por vários pensadores antes de Marx. Diz ele: “A conhecida frase “a religião é o ópio do povo” é considerada como a quintessência da concepção marxista do fenômeno religioso pela maioria de seus partidários e oponentes. O quão acertado é este ponto de vista? Antes de qualquer coisa, as pessoas deveriam enfatizar que esta afirmação não é de todo especificamente marxista. A mesma frase pode ser encontrada, em diversos contextos, nos escritos de Immanuel Kant, J. G. Herder, Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Moses Hess e Heinrich Heine. Por exemplo, em seu ensaio sobre Ludwig Borne (1840), Heine já a usava – de uma maneira positiva (embora irônica): “Bem-vinda seja uma religião que derrama no amargo cálice da sofredora espécie humana algumas doces, soníferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, esperança e crença”. Moses Hess, em seu ensaio publicado na Suíça, em 1843, toma uma postura mais crítica (mas ainda ambígua):“A religião pode tornar suportável […] a infeliz consciência de servidão […] de igual forma o ópio é de boa ajuda em angustiosas doenças”” (LOWY, 2007, p. 299).

Religião no sentido de ópio aparece no artigo de Marx Sobre a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1844, onde Marx assim se expressa: “A angústia religiosa é ao mesmo a expressão da dor real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como o é o espírito de uma situação sem espírito. É o ópio do povo” (MARX apud LOWY, 2007, p. 300). Aqui nesta citação, ainda fala o jovem Marx, discípulo de Feuerbach, ainda neo-hegeliano. Por isso, trata-se strictu sensu de uma afirmação pré-marxista. Marx não tinha ainda desenvolvido o método do materialismo histórico-dialético, o que considera as relações sociais materiais na sua totalidade como sendo as que geram todas as representações espirituais, morais, jurídicas, etc. Marx não falava ainda de classes sociais e nem de luta de classes como sendo a espinha dorsal da sociedade capitalista. Mas Marx já percebia o caráter contraditório e dialético da religião como suspiro ou protesto, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito.

Ao resgatar o Jesus histórico que viveu no nosso meio consolando os/as injustiçados/as, incomodando os opressores dos pobres poderes da política, da economia e da religião, e, acima de tudo, ensinando e testemunhando um jeito de conviver e de construir fraternidade real com justiça econômica, solidariedade social e partilha de poder político, a Teologia da Libertação dinamiza a dimensão libertadora do fenômeno religioso, o que passa por compreendermos a íntima relação que existe entre as dimensões espiritual e social do Evangelho de Jesus Cristo. Nisto acreditamos e por isto lutamos, pois sabemos que muitas formas religiosas são idolátricas e abusam do nome de Deus para fins escusos.

Referências

LOWY, Michael. Marxismoe religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas.Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007.

Belo Horizonte, MG, 25/01/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Gratidão, emoção, amor, fé e alegria: Culto da Vitória do Beco Fagundes, Betim/MG: Despejo suspenso.

2 – “Fé e coragem!” Culto e Vigília no Beco Fagundes, Betim/MG, sob pressão infernal por despejo injusto

3 – Janeiro de 2022. As lutas do Povo Mineiro, com Frei Gilvander Moreira

4 – Live-tributo ao Frei Cláudio van Balen: Seu imenso legado pastoral, teológico, ético e espiritual ..

5 – O verdadeiro sentido do Natal, com os freis Carlos Mesters e Gilvander Moreira

6 – Frei Gilvander: Evangelho na Missa Afro em Santa Luzia, MG. “Rodoanel, destruição na RMBH”. Vídeo 5

7 – “Quem é, o que fez e ensinou Maria, a mãe de Jesus, segundo os Evangelhos?” – Frei Gilvander–15/7/21

8 – A preocupação com os Pobres é Evangelho de Jesus Cristo. Impossível ser pessoa cristã e capitalista

1 Cf. no link https://www.youtube.com/watch?v=1rwuGGn4wF4 , reportagem da TV Brasil, em Caminhos da reportagem: um sonho, a terra, mostra os conflitos agrários na região de Anapu, no Pará, onde foi assassinada a Irmã Dorothy Stang e onde atuam agentes de pastoral da CPT. Lá estão ameaçados de morte o padre Amaro Lopes Souza, o Márcio Rodrigues, o Geraldo Lourenço Pereira e as freiras Jane Dwyer e Kátia Webster, missionárias de Notre Dame, colegas de Dorothy Stang, dentre outros, todas/os companheiras/os de Dorothy Stang que seguem firmes na luta pela terra e por direitos sociais. Há muitos grileiros de terra e ameaçadores na região, entre os quais o fazendeiro Silvério Fernandes.

Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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