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Remanescentes desumanos

Remanescentes desumanos

A última semana foi fortemente marcada pela catártica dor causada pela confirmação do assassinato de Bruno Pereira e de Dom Phillips, nas proximidades da Terra Indígena Vale do Javari, no

Por Márcio Santilli/via Mídia Ninja

Três dos autores do crime estão presos, um deles confessou e outro se entregou à polícia. Fala-se de mandantes ligados ao narcotráfico e há responsabilidades políticas a serem cobradas. A Polícia Federal vacila em aprofundar as investigações, que o presidente Bolsonaro, em plena campanha reeleitoral, quer encerrar.

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Foto: Marcello Casal Jr | Agência Brasil

Entre abjetas aberrações proferidas por Bolsonaro, tentando responsabilizar as vítimas pelo próprio assassinato, coube ao ministro da Justiça, Anderson Torres, informar, oficialmente, sobre a localização dos corpos, chamados por ele de “remanescentes humanos”. O malabarismo verbal ministerial deveu-se à circunstância de que Bruno e Dom, depois de mortos, tiveram os seus corpos esquartejados. A extrema brutalidade do crime inspirou a do ministro.

O que remanesce dessa história cheira muito mal para Torres, Bolsonaro e ideólogos das Forças Armadas, que recorrem à defesa retórica da soberania nacional para atacar os críticos às políticas do governo para a Amazônia, os povos indígenas, os , as , etc. O mundo inteiro assistiu um filme de horror em tempo real, num território sem lei, num país desgovernado, com enredo determinado pelo crime organizado.

Defesa de quem?

Durante o período democrático recente, o Brasil fez consideráveis para aumentar o controle militar sobre as fronteiras. Várias unidades do Exército foram transferidas de outras regiões para a Amazônia e um colar de batalhões foi instalado ao longo da fronteira norte. O Projeto SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia), com a instalação de potentes radares em pontos estratégicos, deveria permitir o controle do espaço aéreo regional. A Marinha também teve a sua estrutura reforçada em algumas áreas, inclusive no Alto Solimões.

O artigo 17-A da Lei Complementar nº 97/1999, assim dispõe sobre o exercício o poder de polícia na da faixa de 150 km ao longo das fronteiras nacionais: “Cabe ao Exército Brasileiro, além de outras ações pertinentes, […]: IV – atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, […]”. São atribuições afetas a vários dos casos recentes de ocorridos em Rondônia, Roraima e, também, no Javari.

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Foto: Reprodução / YouTube

Por isso causou espanto a nota emitida pelo Comando Militar da Amazônia, logo após o desaparecimento do Bruno e do Dom, dizendo que ainda aguardava “ordens superiores” para reagir ao fato. Pareceu uma forma de dizer que havia alguma ordem para não agir. É a Polícia Federal quem lidera as investigações, não há inteligência militar suficiente para isso.

A postura do Ministério da Defesa tem gerado críticas e suspeitas de desvio de função. Enquanto se deixa usar em movimentos estranhos que questionam o sistema eleitoral, vai dando sucessivas demonstrações de leniência diante da atuação do narcotráfico, do garimpo predatório e de outras empresas criminosas na Amazônia. O Alto Comando parece não perceber, ou não se importar, com o desgaste que essa situação gera junto aos melhor informados.

Resistência à mudança

O remanescente mais desumano é o próprio Bolsonaro. Ele consegue desumanizar quase um terço da população. Mas, para isso, cristaliza a sua rejeição pelos outros dois terços. Da sua boçalidade, o povo brasileiro poderá se livrar nas eleições de outubro. Esse passo será fundamental para impedir que o país se afunde de vez, multiplicando remanescentes humanos.

Este será apenas o primeiro passo. A violência é resiliente. O crime organizado vai remanescer e tentar manter a soberania conquistada sobre grande parte da Amazônia durante o governo Bolsonaro. O crime está armado e capitalizado. Para reverter essa situação, será preciso estratégia, inteligência e perseverança para cortar as suas conexões internas e internacionais. Enquanto isso, a violência poderá se intensificar ainda mais no curto prazo.

Sob novo governo, com comandos militares renovados, haverá oportunidade para rever a atual estrutura de defesa, que tem sido lenta e pouco efetiva em evitar, ou reagir, aos ilícitos amazônicos. Mas a experiência dos anos recentes demonstra que remanesce, nas Forças Armadas, uma corporativa completamente desatada dos desafios civilizatórios deste século.

Não é a existência da floresta e a presença dos povos indígenas que abalam a soberania brasileira sobre a Amazônia. Não é crível que governos de países vizinhos se atrevam a ameaçar nossas fronteiras. O abalo vem da demonstração da incapacidade do país em gerir a região de forma racional, do avanço descontrolado do e da mineração predatória, da grilagem de terras públicas e da ação do crime organizado. Além de lesar o país, a predação da Amazônia afeta objetivamente o mundo todo.

O resgate da soberania nacional na Amazônia não precisa de retórica vazia, mas depende da demonstração da capacidade efetiva do país de combater os ilícitos e de privilegiar o desenvolvimento sustentável em detrimento da predação dos recursos naturais. Depende do protagonismo dos , ameaçados e encurralados no atual ciclo de violência. E se completa com o justo reconhecimento internacional.

http://xapuri.info/desumano-mundo-humano/

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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