O SONHO DO SAGRADO INDÍGENA E A BUSCA PARA "SAIR DA CAVERNA"

O SONHO DO SAGRADO INDÍGENA E A BUSCA PARA “SAIR DA CAVERNA”

O sonho do sagrado indígena e a busca para “sair da caverna”

A luz da lua penetrou na pequena casa onde eu estava

Por Jairo Lima

De minha rede, eu via sua fria luz pela porta e pelas brechas na parede de paxiúba. A luz iluminava, também, duas outras redes estendidas, onde seus ocupantes, a uma primeira olhada, pareciam estátuas de fino mármore, reluzindo placidamente a luz que parcialmente os atingia.

Não sem um pouco de esforço eu conseguia visualizá-los, pois o fato de tentar manter os olhos abertos exigia uma grande concentração de minha parte. Duas pequenas figuras se destacavam na semi-luz do ambiente, sentados firmes diante uma pequena lamparina a querosene que teimava em rivalizar com a luz fria que penetrava o ambiente.

Uma voz que parecia estar em todo canto, sem realmente ser percebida em sua origem, entoava um cântico cadenciado, simétrico e firme, como se estivesse dando ordens a algo intangível. Tudo parecia tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto.

Vez ou outra percebia outros sons que penetravam abruptamente o ambiente. Esses vinham de pássaros e outros entes noturnos que se cercavam do ambiente. Eu podia jurar que conseguia até ouvir o borbulhar lento, produzido pela água corrente do pequeno rio que passava logo adiante da casa.

Silêncio…a voz pausou…

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Nisso, parecia que um fio invisível que me prendia soltou-se e senti-me mergulhar, sem necessariamente, ter a sensação de queda. Um breve negrume deu lugar a formas que me eram percebidas, mas que não se firmavam suficiente para que as entendesse, dentro da lógica e “compreensão do tudo” que tinha até então. A voz voltou, entoando encantamentos em forma de palavras rítmicas, cancionadas.

As palavras tomavam formas, e as formas faziam sentido em um nível de percepção que ultrapassava, e muito, o que poderia ser chamado de “sensorial”. Eu sentia que tudo ao meu redor respirava, pulsava, se mexia…

O tempo foi passando, ao que parece, mas não percebia, afinal, os termos “tempo” e “espaço”, não eram algo perceptível, mas no desenrolar das canções e palavras encantadas a voz foi diminuindo… diminuindo… até que sumiu.

Aos poucos,  fui despertando da cena encantada, sentindo cada vez mais um “fio” puxando-me de volta a sensações mais palpáveis. As formas dentro da pequena casa iam ficando mais nítidas à luz da lua e percebi que as duas pequenas figuras que estavam sentadas logo diante das redes haviam se encostado à parede e pareciam vitrificados, sem aparentar movimentos perceptíveis, a não ser por sons de respiração que indicavam estarem profundamente emergidos “em si mesmos”.

Trôpego, levantei e fui em direção à porta. Munido de meu inseparável cachimbo fui sentar num banco às margens do rio, para melhor apreciar a beleza natural de tudo o que me rodeava.

 

A aldeia estava silenciosa, totalmente preenchida pelos sons noturnos da .
Olhando o rio, enquanto pequenos fios de fumaça saíam de meu cachimbo ia observando-o, que parecia carregado de pequenos diamantes brilhantes por causa da luz da lua que irradiava em suas águas, fiquei refletindo sobre o que me levou até aquele momento, os caminhos trilhados até ali, as pessoas que encontrei e, por mais estranho que fosse, até nas palavras que falei. O ar me parecia perfumado, com um aroma que não saberia precisar.

Agucei a visão quando percebi alguém também saindo da casa e se dirigindo para uma pequena elevação no barranco, um pouco distante de onde eu estava. Sentou, segurando as pernas com os braços e lá ficou, ao que parece, absorto em pensamentos que certamente era iguais aos meus.

Voltei a atenção para o rio e continuei a soltar pequenos fios de fumaça azuis pelo cachimbo, pensando… refletindo… Não sentia medo, não sentia frio, só “sentia”.

Passado um bom tempo, já me sentindo totalmente sob o peso da matéria, resolvi voltar para a rede, onde deitei, não sem antes notar que as duas figuras que tanto nos encantaram com suas canções haviam se ido. Deitei, fechei os olhos, então, o negrume preencheu minha visão…
Acordei de sobressalto com o calor do astro rei impelindo-me para fora da rede, dando-me ciência do sob seu reinado. E fazendo-me lembrar de que eu estava numa aldeia Huni Kuin, no Rio Jordão, bem “longe de tudo e de todos”. Mas algo estava “diferente”, pelo menos eu sentia algo diferente.

E esta “diferença” não era no ambiente, mas em mim mesmo. Não que tivesse “me transformado” ou visto o que Paulo viu em Damasco. Nada disso. Era mais algo como ter percebido alguma coisa, ter entendido parte de uma charada que teimava em se manter indecifrável: “mais uma pecinha no tabuleiro” – pensei.

Enquanto quebrava o jejum* lembrava-me da noite anterior, do ritual de huni que havia participado, tendo como txana (cantor de cipó) meu querido shutá (xará) Ibã Huni Kuin (esse famoso artista do MAHKU, que todos conhecem atualmente).

Eu ainda não o havia encontrado depois do ritual, mas sabia que conversaríamos bastante sobre o mesmo no decorrer dos dias que viriam. Eu havia experimentado o nï huni** e vivenciado sensações muito profundas que necessitariam de mais alguns dias para serem devidamente internalizadas.

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Dali mais quinze dias já me encontrava de volta ao ritmo alucinante e caótico da cidade. No entanto, me sentia mais fortalecido e “sacando” mais as coisas, percebendo o que parecia antes encoberto.

Era o ano de 2005, eu acabara de chegar do Jordão. Claro que não existiam redes sociais virtuais (ou será que existiam?) do porte do Facebook, e a internet, pelo menos no Acre, não passava mais que um brinquedo chato e custoso que mal engatinhava, e o celular só servia para telefonar. Apesar de ter toda esta experiência registrada em meu diário, não precisei rever minhas anotações, pois, de momentos como estes estão gravados em minha mente e yuxin (espírito).

Não quero parecer “parado no tempo”, mas creio que estes eram anos mais simples para certas (ou algumas) experiências pessoais – sim, “pessoais”- onde a escravidão das redes sociais não exerciam a força que amordaça a muitos como hoje em dia, em
que postar todos os momentos de seu cotidiano ou de suas buscas (seja espiritual, seja de descanso, seja de , etc) tornou-se uma obsessão.

Claro que a pessoa tem o direito de usar e abusar de sua timeline, certamente, apesar de que, em alguns casos isso pode ser sinal de que algo precisa ser ajustado. Mas, o que me refiro aqui é a respeito de outras situações que, no futuro, merecem destaque em minhas reflexões.
Sempre acreditei, e defendo essa crença até hoje, que a busca espiritual – ou filosófica – do ser passe por experiência e vivências solitárias, desprendidas dos lastros que mantém o indivíduo atrelado aos vícios (conscientes ou não), costumes, certezas e incertezas que o impeliram a esta busca.

Trata-se de uma busca solitária sim, não no sentido de estar sozinho, mas de ser algo que diz respeito somente à pessoa.  Claro que temos outros tipos de buscas, menos louváveis em minha opinião, mas nem por isso deixam de ter sua importância na vida da pessoa. Trata-se do desejo de ter novas “experiências e sensações”, ou trocando em miúdos, “experimentar o ‘barato’ da coisa”.

Nessa busca espiritual – ou filosófica -, quando feita de maneira séria e sincera, transporta o indivíduo a um estado de constante mutação do ser, isso é lógico, e sei que o que estou falando é absurdo, mas é de propósito, é redundante.

Mas o ponto central que quero tocar é justamente o fato de que esta mudança do Ser (o “eu” filosófico e espiritual) pressupõe, também na transformação de como este ser se relaciona com o mundo que o cerca.  Claro que essa transformação não se trata simplesmente em virar um vegano ortodoxo, que se ocupa somente em inundar a timeline dos outros com postagens que os pintem como carnívoros sem alma.

Ao pensar nessa transformação do “ser”, não posso deixar de aludir ao da Caverna, de Platão, pois, quando se busca a iluminação – ou conhecimento filosófico -, ao iniciar este processo, é como se saíssemos da “caverna” onde só vemos reproduções sombreadas do mundo.

“É preciso esquecer de quem você era antes de entrar nesse novo mundo, txai” – Me disse, certa vez, há um bom tempo, um jovem Tadeu Matheus Siã Huni Kuin, filho do saudoso Inkamuru Huni Kuin (Agostinho Kaxinawá), após uma rodada de huni durante um dos cursos de formação de professores , no qual eu atuava como formador. Concordo com ele.

Nesse processo de iluminação – ou transformação – creio que passamos por um processo constante de esquecimento de quem éramos, e, para isso, a meu ver, é necessário vencer o que vou chamar aqui de  “vaidade líquida”***, que necessita de constante afirmação e reconhecimento, a fim de que o indivíduo se sinta pleno, ou seja, não é a transformação que faz com que se sinta bem, e, sim, saber que os “outros” vejam que você está nesse processo.

É importante não confundir com a vaidade estética (sem exageros, claro), sem a qual, certamente assustaríamos muita gente e o mundo perderia muito do colorido e beleza e com a qual os povos indígenas tanto nos maravilham.

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Para mim, esse caminho de transformação do Ser uniu-se intrinsecamente aos , pois me identifiquei, em grande parte, com suas crenças, perspectivas e
ótica de mundo. No entanto, sempre percebi essa identificação como somativa à minha herança cultural e percepções diversas, das vivências e experiências que vivi (e vivo até hoje), e esta soma me permitiu (e permite) alimentar este processo constante de mutação.

“Seu , sabe txai, seu povo é ignorante e vive só pelo que os olhos conseguem ver, e esses olhos gostam de ver somente matéria, , coisas do mundo que se pode pegar. Seu povo, txai, vive mais para ser grande nesse mundo de barro do que ser um gigante no mundo encantado…” – Palavras sábias proferidas pelo prof Isaías Ibã Huni Kuin, em 2005, no dia seguinte ao ritual de huni.

Palavras que ecoam com força nas letras riscadas em meu diário da época. Concordo, e a cada dia vou entendendo mais um pouquinho do significado delas e, completando o sentido destas, não posso deixar de completar o pensamento sem lembrar também de outras sábias palavras, que ecoam desde o século XVI, imortalizadas pela pena de Shakespeare e que não deixam dúvidas que o ser humano, em geral, vive numa caverna, em constante sonolência da alma:

“Tal como o grosseiro substrato desta vista, as torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”.

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Jairo Lima – escritor e indigenista acreano.

Notas do autor:

  • Quebra-jejum – termo regional para café da manhã
    ** Ni Huni – preparo específico da ayahuasca; Um dos tipos de preparo da bebida sagrada do povo Huni Kuin, considerado um dos mais fortes.
    *** Alusão à teoria de “mundo líquido” de Zygmunt Bauman.

**** Todas as imagens são de autoria do artista Jaider Esbell Macuxi, vencer do Prêmio Pipa 2016.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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