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HAVERÁ FUTURO

HAVERÁ FUTURO?

Haverá futuro?

Brasília vivia até esta semana a maior estiagem da sua história. O Cerrado, adaptado ao clima seco, insiste em sobreviver.

Por Márcio Santilli/Mídia Ninja

As espécies nativas brotam, as cigarras cantam, contando com a chuva que voltou ainda tímida, após mais de cinco meses de ausência.

A água míngua nas nascentes, lagos e rios. O fogo consome a vegetação nativa, pastagens e plantações, cercando casas, animais e pessoas. Os olhos e os pulmões são obrigados a suportar a fumaça que empalidece o céu.

Há uns 60 km do centro da capital federal, uma caminhonete avança por uma rodovia e para na bifurcação com uma estrada de terra.

Um homem desce pela porta do passageiro, caminha calmamente até uma moita seca, tira um isqueiro do bolso, ateia fogo e deixa que o vento o leve para dentro da mata. Retorna, então, para o veículo, que retoma o caminho.

O fogo queima uma área do tamanho de 570 campos de futebol e piora ainda mais a qualidade do ar, afetando quem vive ou passa por ali.

O incendiário e o seu motorista sabiam da seca, do fogo e da fumaça. Sabiam que a fumaça é tóxica e afeta a saúde de quem a respira, inclusive a deles mesmos.

Só não sabiam que uma câmera de segurança havia registrado toda a operação.

Com a multiplicação desses casos, a polícia suspeita de um novo estratagema para ocupar áreas públicas ou protegidas por meio de queimadas.

Parque Nacional de Brasilia atingido por incendio neste domingo 1536x1157 1 scaled
Parque Nacional de Brasília é atingido por incêndio | Ricardo Stuckert / PR

Falta de água

Apesar da expressiva queda nas taxas de desmatamento na Amazônia, o Brasil bate o seu próprio recorde em queimadas e em poluição atmosférica.

Uma nuvem gigante de fumaça e fuligem alcançou quinze estados e obrigou milhares de pessoas a recorrerem aos serviços de saúde. Por vários dias, a qualidade do ar em São Paulo foi a pior do mundo.

As condições climáticas estão excepcionalmente ruins. O aquecimento das águas do Atlântico equatorial restringe a formação das nuvens de chuva que os ventos alísios empurram através da Amazônia, formando os “rios voadores” que irrigam o centro-sul do país.

A redução do volume e da superfície de água é dramática em várias regiões, afetando o abastecimento de cidades e comunidades, a geração de energia e a navegação.

Diferentemente das florestas mais secas do hemisfério norte, sujeitas a incêndios naturais, causados por raios, nas florestas tropicais eles raramente têm essa consequência.

A umidade impede a combustão, exceto em áreas degradadas. Porém, o efeito da forte estiagem, por dois anos seguidos, tornou inflamáveis vastas regiões da Amazônia, do Pantanal e de outros biomas. No Brasil, mais de 90% dos incêndios florestais são causados por ação humana, acidental ou criminosa.

Mapa do Brasil
Cenário de redução de disponibilidade de água até 2040. Regiões mais escuras sofrerão com maior escassez | Helena Trevizan / Equipe de Arte ACI / Jornal da Unesp, 22/03/2023

‘Piroterrorismo’

A seca não terminou, a fumaça continua no ar e as polícias ainda investigam centenas de incêndios criminosos, como o de Brasília.

Não há causa única, mas há evidências de orquestração em muitos casos. Um exemplo é o dos grileiros que atuam no eixo da rodovia BR-163, que vai de Cuiabá (MT) para Santarém (PA).

Multados e embargados por desmatamento ilegaldesmatamento ilegal, assumiram, nas redes sociais, a autoria dos incêndios florestais que infernizam a região: “Que o governo venha salvar a sua floresta”. A polícia também vê o dedo do PCC, Primeiro Comando da Capital, no fogo que destruiu canaviais no interior de São Paulo.

É comum o uso criminoso do fogo, mas, como arma política, torna-se uma ameaça à democracia.

Apesar dos eventos extremos recorrentes, que não deixam dúvidas que a crise climática já está aí, ainda há quem diga que não acredita no aquecimento global. Ao incinerar inimigos, esses também se queimam.

Multiplicar focos de incêndio, em anos seguidos, acelera a tendência de transição da floresta para um ecossistema mais seco e pobre na Amazônia Oriental, enquanto a ruptura nos ciclos de chuvas pode inviabilizar a agricultura em várias regiões.

Os “piroterroristas” queimam os inimigos, os vizinhos, a si mesmos e as chances de enfrentarmos a emergência climática. Não cabe aliviar.

As penas previstas em lei são ridículas e há resistência no Congresso para aumentá-las.

O governo federal lançou um programa de apoio às prefeituras dos 70 municípios onde ocorre maior incidência de fogo, mas 22 recusam-se a participar. Se não se evitar, o risco é incentivar uma guerra do fogo: “quem com fogo queima, com fogo será queimado”.

‘Piropiração’

Além da loucura política, existem loucos avulsos de plantão. Alguns incendiários, quando detidos, alegam revolta contra o mundo para explicar as suas ações. Como não se sentem acolhidos, tocam fogo no mundo. Depois, seguem a vida como se nada houvesse. São psicopatas do fogo. Sentem-se vítimas, legítimas para queimar.

Em agosto de 2023, Apoorva Mandavilli publicou artigo na Folha de São Paulo, dizendo que “pesquisadores constataram que existe forte associação entre altas temperaturas e o aumento do número de suicídios.

O calor forte tem sido vinculado a um aumento na criminalidade e agressão violenta, em hospitalizações por transtornos mentais e em mortes, especialmente entre pessoas com esquizofrenia, demência, psicose e abuso de substâncias.

Cientistas estimam que para cada grau centígrado de elevação na temperatura, ocorre um aumento de quase 5% no risco de morte de pacientes com psicose, demência ou abuso de substâncias”.

Para além das patologias, a crise climática produz uma brutal sensação de impotência na maioria das pessoas.

Põe em crise a expectativa de futuro da juventude. Estimula o imediatismo e o oportunismo, a busca de vantagens pessoais e a falta de empatia em relação aos demais. É como se, condenados à morte, não houvesse mais o que fazer ou só restasse se aproveitar da situação.

Depois do fogo

Olhem bem para um mato todo queimado, com plantas e animais torrados. Quem pode fugiu. Se chover, surgirão brotas. O mato não será o mesmo de antes, mas pode voltar. É a resiliência da vida. O fogo impõe o desespero, mas o renascer repõe a esperança.

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Flores brotam após queimada nos arredores de Brasília | Matheus Ferreira / Agência Brasília

A Terra seguirá girando mesmo depois da última árvore e do último predador. Mas é improvável que todas as árvores e todos os seres humanos se queimem.

Assim como é provável que os últimos sobreviventes deixem de explorar as últimas gotas de petróleo, um dos principais responsáveis pela emergência climática.

Chegará o momento em que o sofrimento extremo nos forçará a superar a ameaça do aniquilamento. Será uma benção para quem viver esse momento.

Diz a Bíblia que, depois do apocalipse, virá o reino de Deus na Terra. O piroterror não convive, mas a piroloucura poderá ter cura nesse reino. Antes do total desespero, procurem um sinal de esperança, pois deve haver.

Márcio Santilli

Márcio Santilli é filósofo, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). Autor do livro Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais. Deputado federal pelo PMDB (1983-1987) e presidente da Funai de 1995 a 1996.
 
Fonte: Mídia Ninja

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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