Se eu quiser falar com Deus

Se eu quiser falar com Deus

Por Leticia Bartholo

Sentados à mesa de um bistrô, Carlos, Manuela e Aparecida conversavam detalhadamente sobre suas experiências espirituais do último trimestre. Com a maturidade que seus 6 anos de idade lhe conferiam, atento à conversa também estava João, o filho de Aparecida, cuja atenção só se desfazia para tentar arrumar o velcro da capa de sua fantasia de super-homem, que insistia em não grudar corretamente sobre os ombros.

Carlos contava a todos a experiência fantástica envolvida no caminho de Santiago de Compostela. Claramente, Deus está naquele trajeto, disse ele, com os olhos marejados pelo fato do Caminho de Santiago ter-lhe aberto os olhos para o filho pequeno, a quem ele pouco via desde a separação.

Aparecida relatou seu retiro no Nepal, vivência extraordinária de auto encontro, pela qual ela desembolsou cerca de 5 mil dólares. Um valor módico ante a possibilidade de estar verdadeiramente consigo e com o divino, contou Aparecida, após repreender a deselegância do filho, que havia tentado interromper a conversa por conta do problema banal que o velcro desgastado lhe proporcionava.

Quando passou o vendedor de panos de prato, Manuela não conseguiu lhe fixar os olhos, porque descrevia ainda estupefata a sensação de estar na Terra Santa e debruçar-se sobre o muro. É como se, ali, Deus nos acolhesse sob seu manto de ternura e nos ensinasse o valor da humildade, disse a jovem emocionada.

João, que acabara de consertar o velcro da fantasia, concluiu que esse tal de Deus devia mesmo morar muito longe e então deixou a mesa para brincar no parquinho do bistrô. Mas não sem antes ouvir a recomendação enfática dos três adultos, de que não se aproximasse do mendigo negro que comia uma marmita sentado no balanço.

Texto: Leticia Bartholo – Socióloga. Mãe de uma menina e de um adolescente.
Arte: PXEIRA – Sociólogo. Rabiscador. Pai de dois meninos.
 
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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação. 

Resolvemos fundar o nosso.  Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário.

Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também. Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, ele escolheu (eu queria verde-floresta).

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Já voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir.

Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. A próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar cada conselheiro/a pessoalmente (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Outras 19 edições e cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você queria, Jaiminho, carcamos porva e,  enfim, chegamos à nossa edição número 100. Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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