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Sidarta Ribeiro: “Não é possível desenvolver um país sem investir na educação básica”

Sidarta Ribeiro: “Não é possível desenvolver um país sem investir na educação básica”

Por: Marcelo Lins/Milênio 

Entrevista concedida pelo neurocientista e capoeirista brasileiro Sidarta Ribeiro ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews.

Ciência é sinônimo de saber, conhecimento, cultura, educação. Bem tratada, pode ser sinônimo também de . Desprezada, pode levar a estagnação, e na pior hipótese, ao retrocesso, ao atraso. O Brasil tem uma grande dívida com a ciência, mesmo assim, ainda produz em número maior do que seria de se supor cientistas de alta qualidade, envolvidos em pesquisas de ponta, referências internacionais. Gente como o brasiliense Sidarta Ribeiro, neurocientista com especialização nos Estados Unidos, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Entre seus objetos de e das suas inquietações, os sonhos, que lhe renderam o livro O Oráculo da Noite – A história e a ciência do sonho, ou também o cérebro em sua acepção mais ampla, base do livro Limiar – Uma década entre o cérebro e a mente. Sidarta também estuda os eventuais efeitos positivos de drogas circunstancialmente legais, a comunicação vocal a partir dos estudos das aves, entre outros. A inquietação aparece também quando ele fala da situação da educação no Brasil. Em uma recente passagem pelo Rio de Janeiro, Sidarta Ribeiro conversou com o Milênio sobre ciência, inquietações, sonhos, certezas e esperança.

 

Marcelo Lins — Você é biólogo, neurocientista, professor, escritor, capoeirista, amante da natureza, estudioso das drogas, do sono, de tantas coisas. São muitas definições quando se fala de você, da sua capacidade profissional e dos seus interesses. Qual é a melhor delas, se é que tem alguma?
Sidarta Ribeiro —
 Capoeirista.

Marcelo Lins — Por quê?
Sidarta Ribeiro —
 Gosto de falar que a capoeira e a ciência têm as mesmas bases, que são disciplina com alegria. E que são realmente necessárias juntas. Um cientista que está trabalhando sem disciplina não vai chegar a lugar nenhum, mas também se trabalhar sem alegria, para que ser cientista? Embora a minha profissão seja a ciência eu vejo muita relação com a prática da capoeira.

Marcelo Lins — Tem uma barreira que existe muitas vezes, pelo menos psicológica das pessoas, quando pensam um cientista e quando pensam a vida real, como se fossem coisas separadas. O cientista enfurnado em seu laboratório, o cientista com seus números, seu maquinário complexo, e tudo mais, e a vida acontecendo lá fora para alguns. Fala pra gente da ciência e do dia a dia, da importância dela no dia a dia.

Sidarta Ribeiro — Interessante você falar isso, porque para quem está dentro da ciência e está gostando do que está fazendo, a gente não vivencia dessa maneira, porque a gente não está na verdade fazendo ciência só no laboratório. Você está fazendo ciência o tempo todo, você está fazendo ciência conversando, você está fazendo ciência na sua casa escrevendo, você está fazendo ciência viajando, dando palestra, encontrando outras pessoas, a cabeça não para… sábado, domingo, feriado, você está sempre pensando naquilo. E é muito legal, a ciência, é bom dizer isso para os jovens nesse momento em que as coisas não estão fáceis, que a ciência é uma linda carreira de longo prazo, em que a pessoa produz a vida toda, e ela está sempre se defrontando com o desconhecido. A semelhança com a capoeira tem a ver com a prática de cair e levantar.

Marcelo Lins — A ciência também dá essa capacidade.

Sidarta Ribeiro — Em qualquer lugar. Se a pessoa estiver nos melhores centros do mundo, no Caltech, MIT, Rockefeller… a pessoa vai estar se defrontando com a natureza e a natureza não quer revelar os segredos, então mesmo a pessoa está no melhor centro de pesquisa mundial, ela vai ter muita frustração. O cientista tem que aprender a lidar com essa frustração e buscar outros caminhos para poder chegar onde quer.

Marcelo Lins — Você nasceu em Brasília, começou sua formação lá, depois Rio de Janeiro, depois Estados Unidos para doutorado, para pós-doutorado, e muita gente também questiona a capacidade de um país como o Brasil com as muitas dificuldades e desigualdades que temos aqui, conseguir colocar gente nos centros de excelência do mundo. O que você acha que falta para que agente consiga mais e o que permitiu que você saindo daqui tivesse essa chance de estar em alguns centros importantes da ciência?

Sidarta Ribeiro — É uma ótima pergunta. O Brasil é um país grande demais para não ter uma excelente educação e uma excelente ciência, e a gente está longe disso. Então a gente precisa construir o país nessa direção. Eu estudei muito em escolas públicas, não apenas em escolas públicas, mas por muitos anos estudei em escolas públicas, no ensino fundamental, no ensino médio, e eram muito boas. Depois eu estudei na Universidade de Brasília e tive um excelente curso de Biologia. Depois eu fiz mestrado na UFRJ e foi excelente. Então o brasileiro vem investindo há muito tempo, certamente desde a década de 50, na construção de um sistema educacional e sobretudo do ensino superior de boa qualidade. Isso está em xeque hoje em dia, a gente precisa defender esse sistema, e é impressionante como que os nossos alunos são muito bem aceitos lá fora, o nosso Instituto do Cérebro da UFRN, os alunos terminam o doutorado e são contratados para fazer pós-doc rapidamente em ótimos centros do mundo inteiro. O nosso problema hoje não é colocar os nossos alunos lá fora, o que é muito importante essa experiência lá fora, mas é criar um ambiente fértil aqui dentro e receptivo para que eles possam voltar e de fazer a diferença aqui no Brasil.

Marcelo Lins — E você vislumbra a possibilidade de um salto de desenvolvimento do tamanho que o Brasil precisa sem investimento em pesquisa dentro do Brasil também?

Sidarta Ribeiro — Não. Se nós continuarmos no rumo em que estamos, hoje o orçamento de ciência do Brasil é de 1/4 do que era em 2010. Isso é o caminho para desmanchar um país, para desmantelar um país, isso não pode continuar dessa maneira. E não acredito que seja possível fazer um desenvolvimento saudável desse país sem um investimento muito forte na educação básica. É impossível chegar lá pagando R$ 1,5 mil, R$ 1,8 mil para o magistério. Como é que a gente entrega a missão mais importante do país, que é a educação das crianças, para pessoas tão mal pagas? Isso não faz o menor sentido.

Marcelo Lins — Agora, você vê também esse embate entre os investimentos na educação de base e os investimentos na universidade, que se coloca de vez em quando em conversas e discussões como se a universidade fosse culpada pela situação precária, muitas vezes, da educação de base?

Sidarta Ribeiro — Isso é uma grande falácia e uma cortina de fumaça para impedir que as pessoas vejam para onde está indo todo esse dinheiro. Uma sociedade como o Brasil não deveria opor educação básica e educação superior. Imagina que você tem um filho pequeno em casa e ele precisa comer e precisa tomar remédios, você vai ter que escolher entre um e outro? Não, são as duas coisas. A gente precisa pensar melhor como é que a sociedade investe os seus recursos. Boa parte dos recursos da sociedade hoje são usados para pagar juros, para todo um sistema financeiro que efetivamente, na minha opinião, não está desenvolvendo o país, está desenvolvendo o próprio capital. Então é preciso que a gente entenda, se a gente quer um dia ser alguém no mundo, se o Brasil realmente aspira ser uma potência, e ele deveria pelo seu tamanho, pela sua riqueza, a gente tem que olhar para os exemplos de sucesso, temos que olhar para o que a Coreia do Sul fez, tem que olhar para o que a China fez. No início dos anos 70 nosso PIB era igual ao da China. No início dos anos 70 a gente tinha mais que a China. E agora?

Marcelo Lins — E investimento aí no caso… porque também há um outro embate que se coloca em discussões do país envolvendo governo, sociedade civil, o setor privado, sobre a função da universidade. Para muita gente a universidade brasileira deveria cuidar de mandar gente para trabalhos específicos, como engenharia, construir coisas, produzir riquezas diretamente, e deixar um pouco de lado o espaço da universidade como a de troca de pensamentos, ou do lúdico, ou mesmo das ciências humanas. Faz algum sentido esse embate?

Sidarta Ribeiro — Acho uma grande confusão, e começo dizendo o seguinte, eu concordo que o país precisa ter mais engenheiros do que advogados. Talvez o maior problema do Brasil hoje é que tudo virou uma judicialização extremamente arbitrária e parcial. Mas por outro lado, se não houver ética, se não houver moral, não houver clareza teórica, de que adianta ter engenharia? Eu acho que existe uma confusão mental, intencional ou não, quando pretende se valorizar apenas as ciências exatas e não se valoriza as ciências humanas. As ciências humanas são fundamentais, precisam ser defendidas, custam muito pouco dinheiro, não se trata de uma questão de dinheiro aqui, se trata de uma questão de visão de país. E esse país está em disputa, a gente está nesse momento disputando a alma do país.

Marcelo Lins — Você é um dos fundadores do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte junto com aquele instituto também Edmond e Lily Safra, são dois projetos ali importantes, isso tudo no Rio Grande do Norte, em Natal. Seria lógico, acho que para alguém que olhasse para o Brasil assim, até pela concentração de investimentos e de pesquisas e da economia, no centro-sul do país, que um centro dessa qualidade, com essa ambição, fosse aberto em São Paulo, no Rio de Janeiro, eventualmente talvez em Minas Gerais, mas você foram fazer isso no Rio Grande do Norte. Eu queria saber qual é a importância disso e por quê essa escolha.

Sidarta Ribeiro — Isso foi diretamente relacionado a uma visão de mundo, mas se você olhar para os Estados Unidos ou olhar para a Alemanha, ou pra França, Inglaterra, você vê que os centros de pesquisas de ponta estão distribuídos por todo o país. Não existe essa concentração exagerada que existe no Brasil. E essa concentração que existe aqui tem a ver com a nossa estrutura social, ela tem a ver inclusive originalmente com a casa grande e a senzala. Então quando a gente resolveu fazer o projeto de repatriação, trazer cientistas brasileiros e não brasileiros para o Brasil, ficou óbvio que a gente precisava fazer isso fora do eixo Rio-São Paulo, a escolha foi pelo Nordeste, a escolha eventualmente foi Natal, que é um lugar particularmente agradável, atrativo, a federal do Rio Grande do Norte é uma excelente universidade na região, e que tem um impacto nacional e internacional, a gente fez essa escolha. E ao longo dos anos essa escolha se mostrou correta. O problema é que hoje a gente está tendo uma reversão desse movimento de desenvolver o país de uma maneira mais homogênea.

Eu gosto de pensar no Nordeste como a Califórnia no início do século 20. No início do século 20 a Califórnia era um lugar deserto e pobre, e no entanto, hoje é a parte mais rica do país. Então se houver investimento, tanto o povo quanto a são muito férteis.

Marcelo Lins — Falando um pouquinho do seu trabalho, das suas pesquisas, trazendo um pouquinho aqui para o Sidarta cientista, neurocientista, biólogo. Você nunca se espantou com os maniqueísmos criados em torno de algumas questões, como por exemplo, das drogas circunstancialmente lícitas, temos as drogas legais, que estão aí fazendo muito dinheiro, temos as drogas ilícitas, que também fazem muito dinheiro, só que às vezes alimentando mercados paralelos. Só que a gente chegou em um ponto do mundo em que muitos países, mais desenvolvidos normalmente, perceberam que até as drogas que já foram ilícitas durante muito tempo podem também render dividendos para o país e às vezes eram vítimas de maniqueísmo. Você acha que, pelas suas pesquisas, pelos seus trabalhos, vale a pena levar adiante esse debate um pouco mais sério, mais adulto, sobre o que é droga ilegal, que deve permanecer ou o que que não deve?

Sidarta Ribeiro — Sem dúvidas, e por razões que são econômicas e também políticas, e também médicas. O que eu quero dizer? Não existe uma base científica para que as drogas que hoje são consideradas ilícitas sejam ilícitas. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, da qual eu participo, declarou no ano passado por unanimidade em sua assembleia que isso não tem base científica à luz de todos os estudos. Por quê? Porque não é verdade que estão proibidas as mais perigosas e estão legalizadas as menos perigosas, não é verdade que estão proibidas as que causa mais dependência e estão legalizadas as que causam menos dependência, isso não é verdade.

A maior epidemia de drogas que a gente tem no Brasil, de acordo com o estudo da Fiocruz recente, não é de crack, não é de nenhuma das drogas ilícitas, é de álcool. É uma droga que ainda é glorificada na televisão, a gente ainda convive com propaganda positiva de álcool, então existe uma confusão mental, as pessoas que não têm formação na área tendem a acreditar que as drogas que são ilícitas, são ilícitas porque são muito perigosas. Isso não é verdade, a maconha, por exemplo, é um incrível, uma commodity incrível, está revolucionando a medicina, está revolucionando a economia de diversos países, e o Brasil está pedalando para trás, porque não está percebendo… o Brasil tem potencial para ser um player importante em cannabis, mas está perdendo o passo, porque está confundindo discurso moralista com realidade. Então, do ponto de vista econômico é necessário legalizar todas as drogas, essa não é uma bandeira apenas da esquerda, é também uma bandeira da direita liberal, há muitos anos inclusive.

 

Marcelo Lins — A revista The Economist já saiu com várias capas…

Sidarta Ribeiro — Há 20 anos eles estão falando disso, isso é óbvio. É irracional entregar um mercado tão grande para pessoas que não coletam impostos, para pessoas que matam seus oponentes quando têm um problema comercial. A gente tem que trazer toda essa economia para a luz, e tratar todas as drogas de maneira diferente. Como? De maneira a regular o seu potencial danoso e o seu potencial benéfico especificamente e não de maneira moralista. E tem uma questão social também, porque nessa guerra às drogas, quem vai preso? São os pobres, são os negros, são as pessoas vulneráveis, são as mulheres, que houve um grande aumento no encarceramento de mulheres por causa da atual lei de drogas, então é uma grande confusão, e se nós formos ver, o maior problema do Brasil hoje, na voz do povo, é a violência. A violência está ligada ao narcotráfico, está ligada à repressão às drogas, nós precisamos sair dessa situação legalizando e taxando todas essas drogas.

Marcelo Lins — Há uma outra discussão também que também é cheia de maniqueísmo que tem a ver com os efeitos das drogas psicodélicas e seu potencial uso na sociedade. Eu queria te ouvir falando sobre isso.

Sidarta Ribeiro — Um dos maiores problemas da contemporaneidade é a depressão. A quantidade de pessoas deprimidas e se medicando cronicamente para a depressão é muito grande. Nos últimos 30 anos houve uma verdadeira epidemia de medicalização da depressão. O que acontece é que o uso de longa duração, o uso persistente desses remédios, tipicamente levam a mais depressão. As pessoas ficam trocando de remédio, aumentando as doses, combinando remédios, e tomando antidepressivos por 10, 20 anos sendo que as pesquisas que foram feitas para verificar se de fato são drogas eficazes nunca vão além de 8 semanas. Então não tem nem base científica esse uso cronificado de antidepressivos. Isso é evidentemente muito bom para as indústrias que vendem remédios que são tomados todos os dias, mas não é bom para os pacientes.

Os psicodélicos aparecem nos últimos 10 anos como uma revolução científica para tratar questões ligadas à depressão, ao estresse pós-traumático e também à ansiedade terminal, pessoas que têm um câncer terminal e que estão em pânico porque vão morrer, e podem se beneficiar muito de experiências psicodélicas, estou falando aqui do LSD, da psilocibina, do DMT, também do MDMA, que é uma substância que integra a droga de rua chamada ecstasy, são substâncias que foram vilificadas, demonizadas, mas que de fato têm um imenso potencial terapêutico, está publicado nas melhores revistas científicas e médicas, e são substâncias que, não surpreendentemente, não têm grande potencial de lucro para as empresas.

Por quê? Porque são tomadas em doses baixas e muito ocasionalmente. Uma pessoa vai fazer um tratamento com MDMA, ela vai tomar duas a três vezes a substância para obter um benefício que dura anos. Isso está sendo feito com veteranos de guerra, por exemplo, nos Estados Unidos, pessoas muito traumatizadas, que têm pensamento de morte o tempo todo, já foram tratadas com todos os remédios à disposição sem sucesso, e aí passam por uma psicoterapia assistida por MDMA e se livram dos sintomas. É quase um milagre. Então é um milagre, mas não é, é ciência. E é uma ciência que precisa ser vista com clareza, as pessoas que estão sofrendo têm que ter acesso a essa .

Marcelo Lins — As drogas que são tomadas tradicionalmente em cerimonias religiosas, ou indicadas pelo cientista, pelo pajé, por quem quer que seja de determinados grupos étnicos, qual é a importância desse saber tradicional que muitas vezes também é colocado em oposição ao saber acadêmico?

Sidarta Ribeiro — Na verdade é uma importância enorme e não há oposição. Muito do que a ciência conhece hoje tem a sua origem nas substâncias ou nos preparados tradicionais, xamânicos, por exemplo da Amazônia. Isso aconteceu com o curare, por exemplo, no início do século XX era um veneno, e foi utilizado para se descobrir como é que funciona a relação entre o sistema nervoso e o sistema muscular, descoberta do papel da acetilcolina, tudo isso tem a ver com o uso do curare. Os saberes tradicionais são agregados de centenas, às vezes milhares de anos, e os cientistas podem se beneficiar disso e estão fazendo isso, por exemplo no caso da , ou hoasca, o chá do vegetal, que é oriundo da região amazônica, sobretudo brasileira, mas não apenas brasileira, e que no Brasil é legalizada e agora é pesquisado, a gente tem pesquisa no Instituto do Cérebro, do professor Dráulio Araújo, mostrando que, e não apenas ele, também pesquisadores de Ribeirão Preto, professor Jaime Hallak, mostrando que a ayahuasca é um antidepressivo poderoso, muito mais eficaz do que outras alternativas, na verdade um grande remédio.

Marcelo Lins — Se você pudesse escolher, o que você pesquisaria hoje?

Sidarta Ribeiro — De certa maneira já estou onde quero, porque pesquiso sono, sonhos, estados alterados de consciência, educação, tenho uma pesquisa na psiquiatria. Estou muito confortável onde estou. Mas claramente, todas essas questões bordejam um núcleo de grande mistério. E esse núcleo de grande mistério é o que é consciência. A gente está aqui conversando muito naturalmente, mas os processos que de fato permitem que a gente possa se entender, eles não estão claros.

Marcelo Lins — O estudo do sonho, muito mais do que só na psicanálise, como já foi feito, ou em outras áreas, ele pode contribuir pra isso, você acha para esse estudo também da consciência, do que faz ali…

Sidarta Ribeiro — Tenho bastante convicção disso, eu acredito que o nosso estado de consciência contemporâneo, aquilo que nos diferencia de um cachorro, de um gato, de um peixe, tem a ver com a capacidade de simular o futuro com base nas memórias do passado. A gente está o tempo todo em narrativas mentais sobre o futuro próximo. Você pode estar aqui conversando comigo, mas você pode estar pensando o que vai fazer logo mais à noite, se você vai tirar férias no meio do ano, quer dizer, a gente é capaz de paralelizar muitos planos em escalas de tempo diferentes. Há uma espécie de imaginação ativa que não impede ou que não compete com, por exemplo, eu estar aqui conversando com você. Aparentemente os outros animais não fazem isso, e de onde que veio isso? Muito possivelmente isso veio do sonho. A gente faz isso dormindo, e possivelmente a invasão do sonho na vigília é que criou a consciência propriamente humana.

Marcelo Lins — Sensacional, Sidarta. Eu não queria acabar essa entrevista sem te dar a oportunidade de falar algo que alimenta sua esperança no futuro, que pode ajudar a alimentar a esperança de muita gente que está assistindo essa entrevista agora.

Sidarta Ribeiro — O que alimenta a minha esperança de estar no Brasil, trabalhando no Brasil, fazendo pesquisa no Brasil, é a crença na inteligência do povo brasileiro. A gente já ultrapassou uma série de obstáculos, passamos por uma que custou muito caro, conseguimos nos redemocratizar, e acredito que essa inteligência, essa criatividade, a garra do brasileiro, mas uma garra inteligente, capaz de realmente olhar o que está em volta e fazer escolhas racionais. Se o Brasil optar por pensar pequeno, talvez daqui a 100 anos ele nem exista, tenha se dividido em vários países, porque ele vai ser só mais um… ele só vai servir para oferecer commodities para o mundo. A gente precisa pensar o Brasil de outro jeito, tem que pensar o Brasil como um lugar que produz cultura, que produz ciência, que produz pessoas… O maior valor agregado é o ser humano. A gente precisa de capital humano, tem que investir nas pessoas. E nesse sentido, bem explicitamente, tem que investir nos pobres. A gente precisa de aumento de salário mínimo, a gente precisa de professores bem pagos, a gente precisa de um sistema único de de qualidade, porque se nós investirmos no povo brasileiro, o país vai ser grande de fato. Se nós não investirmos no povo brasileiro, se o povo brasileiro for tratado como foi tratado historicamente como apenas uma mão de obra barata, nós vamos entrar na competição com outros países que estão fazendo o mesmo, ou seja, nivelando por baixo. E aí o futuro não vai ser bom.

Sidarta Ribeiro é capoeirista, biólogo e neurocientista. É categórico ao ressaltar a gravidade do desmonte da ciência pelo governo.

Fonte: CONJUR

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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