“Solte meu cabelo!”

“Solte meu cabelo!”

De Edson Cardoso, enviado para o Portal Geledés 

No ano passado, uma professora do Recôncavo comentava comigo o caso de uma garota que tinha procurado sua professora, colega de minha informante, para pedir-lhe que intercedesse junto à mãe para que esta permitisse que ela fosse com os cabelos soltos para a escola. A garota dizia que já se cansara de pedir, sem êxito, à mãe: “Solte meu cabelo!”.

A criança insistia que queria ficar igual a suas colegas e amiguinhas e era grande a resistência da mãe, por isso queria a ajuda da professora.

A liberdade com que se expressam os cabelos de nossa juventude neste momento vai bater de frente com uma concepção de disciplina vigente em escolas militares. A questão essencial é, a meu ver: rasgados os véus enganadores dos preconceitos, as crianças estão curtindo a delícia e o prazer de serem quem são, certo? Sabem-se negras e curtem seu pertencimento étnico.

Diante desse fato, histórico e social, o que fará uma noção estreita de disciplina? Não tenho dúvidas, vai tentar inculcar preconceitos. Eu digo que vai tentar e antecipo que será uma tentativa vã, destinada ao fracasso.

Quando chamo a atenção para a dimensão histórico-social dessa afirmação da identidade é para salientar o esforço que fizemos para nos libertarmos daquelas travas da negação e do controle. Uma luta longa e difícil cujos resultados não poderão ser apagados por nenhum documento “legal”.

Recolho na farmácia um folheto publicitário. Um grupo de doze jovens negras em atitude desafiadora: “Hidratação poderosa para você definir seus cachos e seu amanhã”.

Sim, ninguém está falando somente de cabelos. Na real, o papo nunca foi esse. Como se pode ver, a hidratação permite fornecer elementos a nossa reflexão sobre poder e quem define o quê na nossa vida.

A disciplina militar que raspa, corta, prende e esconde também não engana ninguém. É como a prisão por vadiagem que se seguiu à Lei Áurea, em 1888. Era preciso continuar a manter o controle sobre corpos livres.

Os valores abstratos, que normalmente são alardeados como razão para as medidas repressoras, transformam-se em coisa nenhuma diante dos fatos desmoralizadores que acompanham os formuladores dessas políticas.

“Solte meu cabelo!” tem um significado que envolve a construção mesma da pessoa, não é acidental nem superficial, nem tampouco suscetível de controle pela disciplina militar.

Lembram-se de Tiririca? “Veja os cabelos dela/parece bombril de arear panela”. “Solte meu cabelo!” é modo de expressão da pessoa que enfrentou os tiriricas da vida e seus asseclas. O pensamento reacionário que se traveste de normas e regras disciplinares imagina-se capaz de retomar um tempo em que adultos viviam aterrorizando crianças com seu próprio cabelo.

Fonte: Geledés

Foto: All Things Hair


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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