Sopro, gatos, Brasília
Tem como a gente não sentir o absurdo quando estamos diante da morte?
Por Helena Schiel helenaschiel
Evitamos a palavra, usamos eufemismos “partiu”, “nos deixou”, “encantou”, ancestralizou (essa ouvi mais recentemente).
Queremos frear tudo, voltar uns instantes, voltar vários anos, procurar erros, consertá-los.
Silêncio.
Olho pra ele. Olho porque acho que é minha obrigação, mas não quero olhar. Olho para o pulmão, achando que vou registrar a subida e descida da respiração, talvez gritar “não, gente, ele tá aqui, tá respirando”. Não tá. Partiu. Nos deixou. Encantou. Ancestralizou. Não quero mais olhar, não há nada pra fazer ali.
Uma vez o papai me contou que um amigo dele sofreu um acidente de carro e viu toda a cena do acidente “de cima” e decidiu descer. Será que ontem ele viu a gente chegar, olhar pra ele? Talvez já estivesse mais longe.
Quando éramos crianças tínhamos uma gata rajada chamada Mimi. A Mimi sumia e voltava. Sumia e voltava. Um dia não voltou mais. Papai explicou que os gatos não gostam de morrer perto dos donos. Eles se escondem no mato. Os gatos têm vergonha de morrer, ele disse.
A Tina foi todos os dias. Ela atravessou o processo todo com muita presença, segurando os fiapinhos de vida que se esvaíam pelos dedos. Ontem 28 de julho eu estava vindo. No avião, chamada pela médica: “é melhor você vir”.
Nunca parece que é real e mesmo quando estamos convivendo a morte, ela parece irreal. Ela saiu umas 18.30h da casa de repouso dizendo que tinha que ir me buscar no aeroporto. “Amanhã eu trago a Nena, viu?” ele respondeu “Viu”. Não muito tempo depois o cuidador que estava tentando lhe dar a sopa percebeu uns suspiros profundos. Chamou a enfermeira do plantão.
Fim.
Assim se esvai a vida.
A vida é sopro.
Tá nas escrituras, tá nas crenças, tá nos manuais. Tá nas pinturas sobre a Criação.
A vida é sopro.
Assim se foi.
O sopro se foi.
Quando foi que deixamos de conviver com a morte, mesmo? Na mesma época que deixamos de conviver com os nascimentos? Na mesma época que a soberba humana achou que poderia controlar a vida, a dor, o sofrimento? Será que fugir deles, dos processos da vida, não é a doença da modernidade?
Papai esperou a Tina sair para partir. Partiu meia hora depois. Como os gatos que vão se esconder no mato, longe dos seus donos, “porque têm vergonha de morrer”.
Talvez ele tenha razão.
Talvez não faça sentido nenhum olhar pro pulmão pra ver se sobe e desce. Talvez só valha a pena lembrar do que houve de melhor. Minhas lembranças mais carinhosas, a mão segurando a minha, eu com febrão de apavorar as mães em algum momento da minha infância.
Lembrar dos acampamentos no salto do Corumbá. Lembrar dele me ensinado a desenhar as frutas em cima da fruteira. Lendo “Meu tio Yarauetê” do Guimarães Rosa pra mim.
Segurando a garupa da bicicleta quando tiramos as rodinhas e de repente ele não estava mais lá, eu estava pedalando! Lembranças singelas dele pegando uma folhinha de grama e fazendo um assobio altão com ela, o único assovio que eu nunca aprendi a fazer.
Ou as lembranças mais grandiosas. Papai, como todos os Schiel, começou onde quis e terminou professor. É o nosso talento, é a nossa vocação. Papai foi arquiteto de coisas grandes (grandes vãos, dizem os especialistas).
Penso que ele sempre quis trabalhar para o governo porque sabia que era uma forma de servir ao povo, essa missão nobre, que todo mundo que peitou a ditadura carrega em si, e que infelizmente anda fora de moda. O que mais ele fez foi projetar hospitais e escolas, junto com o Lelé.
Hoje nas primeiras lidas com o luto burocrático, aquela parte que não nos contam sobre a morte, eu vinha olhando as coisas na cidade e tudo me lembrava ele.
Papai é um imigrante. Nasceu no meio da 2a guerra, em Dresden, na Alemanha. Cresceu em Wallgau, cidadezinha no meio das montanhas da Baviera.
Eles vieram pro Brasil em 1950. Moraram em Petrópolis até que meu avô entrou como professor de engenharia na USP e eles se mudaram para São Carlos.
Depois morou alguns anos em Salvador, trabalhando na fábrica de pré-moldados do hospital Sarah.
Brasília é tão Kristian Schiel! Kristian Schiel é tão Brasília!
Papai veio pra Brasília estudar, com a cidade ainda em construção. UnB ainda era aquele arrebatamento Darcy-Ribeiriano. Papai amava Brasília como poucos. Reagia às críticas ao Niemeyer mesmo quando Niemeyer estava errado. “Ah mas esses palácios do Planalto e da Alvorada não vão durar nada, já já viram ruínas”, papai respondia “Mas vão ser ruínas lindas”.
Ter que pensar a que lugar ele pertence, onde deixar cinzas, chutou o pilar com que eu mantinha minha serenidade… me desfiz em lágrimas… Talvez o melhor lugar seria levar para São Carlos, onde estão enterrados o Vatti (meu avô), o Dietrich (meu tio), a Mami (minha bisavó) e as cinzas da Mutti (minha avó).
Recordar essa pequena genealogia me lembrou que guardo na minha casa (em Santarém, eu também imigrante) o vaso que a Mami conseguiu salvar do bombardeio de Dresden. Papai deve ir pra São Carlos? Ficar em Brasília? A qual lugar pertence o imigrante? Qual é sua terra, qual é seu chão?
Olho pra Brasília, me lembro do poema “Operário em Construção”, do Vinícius de Moraes.
“O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.”
Para onde quer que eu olhe, em Brasília, vejo a marca da sua mão.
Papai é Brasília.
NOTA DA REDAÇÃO: Helena Schiel é filha da jornalista Luzia Amélia Jakomeit. O texto, publicado por Helena em homenagem e como despedida de seu pai, foi reproduzido por Memélia. Impossível não chorar.