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Suicídio entre jovens Guarani-Kaiowá: Um perverso impacto dos mensageiros de Jurupari

Já faz muito tempo que os mensageiros de Jurupari tiraram do povo Guarani-Kaiowá o direito sagrado de morrer a boa morte.

Para os Guarani, ao nascer cada pessoa ganha a companhia de mokoi e gwyra, dois pequenos pássaros que se tornam os guardiões do ayvu, a força motora da alma humana. Quando envelhece, o corpo vai-se desgastando até que, um dia, naturalmente, os pássaros voam de seus ombros e voltam para o cosmo, dando ao ser que guardavam o descanso da boa morte.

Tem vezes, entretanto, em que os mensageiros de Jurupari têm o poder de afugentar mokoi e gwyra bem antes de o corpo envelhecer. Palavras duras, , expulsões da tekohá (terra sagrada), pobreza, fome, alcoolismo, traições, desesperança, são coisas que assustam os pássaros, fazendo com que voem para longe.

Algumas vezes, os pássaros voltam. Outras, não. Quando mokoi e gwyra voam, os espíritos malignos, como o anguè, que estão sempre à volta, podem assumir o controle, levando as pessoas a fazerem coisas tristes como, por exemplo, passar uma corda sobre o galho de uma árvore, enrolar no próprio pescoço, e pular para o jejuvy.

Para os Guarani-Kaiowá, o jejuvy (suicídio) acontece quando o anguè sufoca a pessoa, fazendo com que queira morrer. É quando os espíritos malignos são libertados e, se ninguém agir rápido para detê-los, eles vão se espalhando e causando todo tipo de sofrimento – incluindo o jejuvy de muitas pessoas, e muitas famílias, e por muito tempo, em ciclos demorados.

Em um ciclo que parece não acabar nunca, há décadas o anguè do enforcamento vem tirando a de jovens das comunidades Guarani-Kaiowá do Mato Grosso Sul, com uma população indígena de 70 mil indivíduos, a segunda maior do país, depois apenas do Amazonas.

Ninguém sabe quando os pássaros começaram a partir em revoada, permitindo a ação alarmante do anguè do enforcamento.  Mas foi no ano de 1986 que as autoridades brasileiras de saúde indígena notaram um aumento incomum de suicídios – de cerca de 5 casos por ano para 40. De lá pra cá, a média subiu para 46 por ano, taxa 21 vezes maior do que a média brasileira.

Segundo estatísticas nacionais e internacionais, no e no mundo são as pessoas de mais idade, sobretudo os homens maiores de 60 anos, que mais cometem suicídio. Entre os Guarani-Kaiowá, os espíritos malignos priorizam o ataque à juventude: quem mais morre são as pessoas jovens.

Em março de 2017, a jornalista canadense Stephanie Nolen, publicou no The Globe and Mail (www.theglobeandmail.com) a matéria “Os esquecidos: por dentro da crise dos suicídios no Brasil”. Nela, reporta e busca as causas para o jejuvy recente de dezenas de jovens, entre 14 e 20 anos, nas comunidades Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, nos anos de 2015 e 2116.

“Quando perguntei às pessoas por que elas achavam que os jovens Guarani-Kaiowa estavam se matando, elas me contaram histórias sobre a perda de suas terras e rituais que não são mais realizados, sobre o fascínio que a cidade representa, com seus sapatos caros e celulares nas vitrines… Sobre doenças crônicas e o desemprego quase universal.

Sobre   abuso de álcool e de drogas, e uma geração de filhos cujos pais sentem que não podem mais controlar. (E uma geração de filhos que acham que seus pais não devem mais tentar controlá-los.) Ouvi sobre as  características dos Kaiowa, que alguns descreveram como um povo fechado, reservado, que não costuma compartilhar suas emoções e que, quando coloca uma ideia na cabeça, vai até as  últimas consequências”.

Embora existam poucas pesquisas sobre as razões dos altos índices de suicídio entre jovens Guarani-Kaiowá, sabe-se que estudam em escolas precárias, vivem em constante pânico da expulsão da terra onde nasceram, não conseguem realizar os rituais de proteção em seus locais sagrados, e estão expostos às drogas e aos bens de consumo ocidentais cuja renda, com frequência inexistente, porque a maioria não tem emprego, não lhes permite comprar.

Para seus pais, pajés e lideranças comunitárias, é essa dicotomia de mundos que, alimentada pelas doenças crônicas, pelo álcool, pelo desemprego e pelas desilusões cotidianas, afasta os pássaros protetores dos ombros de sua juventude. Essas seriam as razões porque mokoi e gwyra vão-se afugentando para longe, deixando o espaço livre para que os espíritos malignos possam dominar os corações e mentes das gerações mais jovens.

Essa é uma situação que vai se agravando, mas que não vem de agora. A mostra que na região do , onde hoje se encontra o estado do Mato Grosso do Sul, o controle das migrações indígenas pelo governo federal, por meio da expulsão de suas terras e do confinamento das famílias em pequenas reservas com recursos naturais insuficientes para a sobrevivência comunitária, data do ano de 1915.

Mas foi a partir da década de 1970 que as poucas áreas que restavam de florestas nativas, onde se abrigavam os povos originários, foram violentamente ocupadas pelas fazendas de gado, pelas plantações de -mate, fazendo ruir de vez o mundo indígena, cujos filhos e filhas foram obrigados a trabalhar como escravos, sem remuneração, tanto na preparação das novas fazendas como na construção das estradas, para desaguar a produção dos mensageiros de Jurupari.

Assim, os Guarani-Kaiowá, que sempre foram um povo seminômade, perderam a liberdade de ir e vir, as áreas de onde foram despejados, as florestas de onde ainda tiravam seu sustento, e também os locais onde praticavam seus rituais sagrados. Para um Guarani-Kaiowá, o tekohá de sua família, sua terra tradicional e sagrada, é a fonte do teko pora – condição essencial para um ser humano “ficar vivo e bem”.

Como já não se sentem nem vivos, nem bem, os Guarani-Kaiowá acreditam que é por isso que se tornam mais vulneráveis às mortes, aos homicídios, aos suicídios, às mazelas todas que incessantemente se aproveitam dos voos de mokoi e de gwyra para flagelar suas vidas.

E, pior, como os rezadores e as rezadoras já não fazem seus rituais de proteção nos locais sagrados, seja pela falta de acesso, seja pela pressão das igrejas evangélicas que, nos últimos 15 anos, vêm sistematicamente desencorajando o contato de seus fiéis com os rituais do sagrado indígena, os Guarani-Kaiowá sentem-se cada vez mais desprotegidos, cada vez mais à mercê do anguè e de todos os espíritos malignos.

Por cima de tudo isso, o povo Guarani-Kaiowá tem, ainda, que lutar com a violência que vem da luta por seus tekohás, trazidas pelos mensageiros de Jurupari. Desde a década de 1980, em uma luta desigual, as lideranças indígenas coordenam tentativas de recuperar as terras perdidas para o agronegócio, em conflitos que acabam sempre em ameaças, sequestros, desaparecimentos e mortes de indígenas, e na impunidade das forças do .

À jornalista Stephanie Nolen, Izaaque João, professor de Guarani-Kaiowá, sintetizou o que compreende como causa principal dos suicídios indígenas, principalmente entre as pessoas jovens:

“Sem as cerimônias para controlar os espíritos que se espalham durante o jejuvy e sem os rituais de proteção, os espíritos malignos vão tomando o lugar dos pássaros e, assim, vão destruindo os bons pensamentos de uma pessoa, depois passam pra outra, depois pra outra, até dizimar comunidades inteiras”.

 

Guarani Kaiow%C3%A1 ISAFoto: ISA

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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