TATURAIA E O CHÁ DA MAROCA: ENTRE MPOX E BASÓFILOS

TATURAIA E O CHÁ DA MAROCA: ENTRE MPOX E BASÓFILOS 

TATURAIA E O CHÁ DA MAROCA: ENTRE MPOX E BASÓFILOS 

“Coça que coça, coça, coça, comichão

 Vai coçar pra outras bandas 

e deixa em paz meu coração.” Luiz Gonzaga. Aroeira. 1961

Por José Bessa Freire

Se fosse hoje, as erupções cutâneas, as bolhas e crostas no corpo do Taturaia, um menino então com 7 anos, poderia levantar a suspeita de que ele havia sido atacado pelo vírus da Mpox, a tal da “varíola dos macacos”. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) enviaria seus especialistas a Manaus, o bairro de Aparecida ficaria célebre em todos os telejornais nacionais e internacionais. Mas aconteceu em 1954.

Na época, ninguém conseguia curar as lesões na pele do Taturaia. O médico Carvalho Leal, nascido em Urucará, consultado por dona Diva, sua conterrânea urucaraense, estava em campanha eleitoral como candidato ao Senado (UDN vixe, vixe) e mijou fora do caco.  Decepcionada, a mãe do Taturaia não votou nele, que foi derrotado.

Buscou, então, a cura do filho no ambulatório situado inicialmente num pavilhão de madeira ao lado do Colégio de Aparecida, em Manaus, onde o padre redentorista Frederico Stratman, paramédico, tratava os doentes do bairro. 

Ele examinou os inchaços avermelhados espalhados pelo corpo, rosto, pescoço, cotovelo, braço e joelho do Taturaia, aqui e ali com bolhas, descamação, pele rachada e uma coceira crônica enlouquecedora. Com sotaque de Oconomowoc, diagnosticou carregando nos “rrr”:

– Dermatite.

Dona Diva perguntou as causas da doença, o padre disse que se tratava de dermatite atópica, que não tinha agente etiológico definido. Mandou dar banhos de água fria e colocar gelo para diminuir a coceira. 

Receitou analgésico via oral e uma pomada. Taturaia melhorou, mas sem dinheiro para os remédios, logo tudo voltou a ser como dantes no quartel de Abrantes. A coceira veio com mais força.   

MAROCA, A BENZEDEIRA

Vai daí, dona Diva consultou a benzedeira Maria do Capinzal, a Maroca, mãe do Fernando Gogó, uma sábia afrodescendente, que havia chorado na barriga da mãe e tinha o dom de adivinhar as coisas. 

De noite, dormindo, ela descobriu a causa daquela cafubira. Sonhou que o Taturaia havia mamado, escondido, no buraquinho da lata de leite condensado e quase engoliu uma barata que estava lá dentro, cujas patinhas coçaram a língua dele.

Foi pá, casca! Encostado na parede, o menino confessou haver efetivamente assaltado na despensa da mãe a lata já usada, que estava aberta com dois buraquinhos, por um deles entrou a baratinha, sem fita no cabelo, nem dinheiro na caixinha. A partir dessa informação, o diagnóstico da Maroca foi preciso:

– Diacho, isso é seborreia! Foi a barata.

Com seus olhos bonitos e ovoides de maracujá, Maroca examinou a criança, invocou o Orixá Obatalá, rezou Baba yetu, yetu ulive – versão do Pai Nosso em língua swahili – e receitou chá de folha de melão-de-são-caetano, erva-de-lavadeira e mamoeiro bravo para tomar antes das refeições, além do tratamento tópico: lavagem das perebas, curubas e piras com cascas de pau-d´arco deixadas de molho em dois litros de água misturada com cuspe de homem, que devia estar em jejum e ser respeitador de mulher.

Não foi fácil localizar em Manaus um cuspidor com tais qualidades. “Achar macho é muito fácil, tem aos montes, o difícil é achar homem” – canta Nara Leão em “Cabra Macho”. Felizmente encontraram lá na Cachoeirinha o militante do Partidão, Geraldo Campello, então namorado de Maria Pucu, e um tal de Paivinha, estudante de direito, mais tarde presidente da OAB-AM com nome completo de José Paiva de Souza Filho. 

Os dois deram uma cusparada certeira na casca do pau d´arco. Deu certo. As pústulas pruriginosas desapareceram.

OS BASÓFILOS

Padre Frederico Curado, Taturaia jurou que nunca mais, nunca, sugaria o leite condensado que devia ser compartilhado com seu irmão Guardinha e com a irmã Graça. Garantiu ainda que nunca mais, nunca, assaltaria a goiabeira do quintal da Maroca, cheia de goiabas vermelhas, de casca amarelada e, por dentro, rosada.

– Esse um está mesmo curado, seu menino – disse a Maroca.

Os moleques do Beco da Bosta deixaram de bullyngnar o Taturaia, com gritos de “pira pirento, macaco fedorento”, o que lhe havia causado danos psicológicos, a ponto de ter sido diagnosticado pela doutora Elisângela como autista, quando o autismo ainda nem era diagnosticado com tanta frequência. Foi um final feliz de uma doença, cujo diagnóstico só agora, 70 anos depois, desconfio que podia ser.  

Lembrei do Taturaia porque nesta semana fui acometido de coceira infernal no meio de uma tosse intensa com suspeita de coqueluche. O exame de sangue mostrou que os basófilos – a quem nunca fui apresentado – estavam altíssimos. 

O doutor Orlando me explicou que, presentes no nosso sangue, os basófilos são parte do nosso sistema imunológico e, quando em baixa concentração, defendem o organismo de infecções.  Quando em alta, porém, causam a basofilia, que acarreta dermatite crônica e urticária.  

Não entendi bulhufas sobre a informação de que os grânulos metacromáticos dos basófilos, maiores do que dos outros granulócitos, contém enzimas hidrolíticas, fatores quimiotáticos para neutrófilos e eosinófilos. Eu hein? Me inclui fora dessa.

 Além disso, foi difícil entender que diariamente nosso organismo produz cem bilhões de basófilos. Assim, não tem curuba de peruano que aguente. Não sei se a Maroca e o padre Frederico sabiam disso e se ele explicou ao pessoal do Apostolado da Oração.

Ambulatorio 1

CRUZ COM TRÊS RAMOS 

Alguns anos depois, ainda havia quem sacaneasse o Taturaia, quando a Rádio Baré tocava Aroeira, uma das mais de 600 músicas gravadas por Luiz Gonzaga, cuja letra anunciava:

“Teu amor comicha mais que aroeira

Vou fazer uma benzedura, pra ele não me comichar

Faço uma cruz com três raminhos de alecrim

pra teu amor não coçar em mim.”

Não sei se a barata que coça a língua de humanos aumenta os basófilos. Ignoro se Taturaia tinha basofilia. Só sei que a benzedura da Maroca curou aquilo que ela denominou de seborreia. Quanto a mim, a coceira está desaparecendo lentamente, graças ao doutor Orlando e às rezas diárias de minhas 8 irmãs reunidas no grupo de zapp. Funciona assim. Uma delas pede:

– Para curar a basofilia do nosso irmão, rezemos ao Senhor.

E todas respondem:

– Oh, Senhor, escutai a nossa prece.

Xô, basofilia! Xô, Bozófilia!

P.S. – Geraldo Campello e Paivinha, lá do Além, entraram no grupo de oração e pediram:

– Manaus merece ser amada. Para que Félix Valois (PT), candidato a vereador, leve para a Câmara Municipal de Manaus seus 81 anos de experiência e militância, com uma votação que puxe outros candidatos, rezemos ao Senhor.

As meninas minhas irmãs, em coro, entoaram: Oh, Senhor, escutai a nossa prece.

GRIMAL

José Bessa Freire Escritor. Indigenista. Conselheiro da Revista Xapuri. Excerto da crônica 1.746, aqui editada por limitação de espaço, publicada em seu blog Taquiprati.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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