Trabalho escravo nas oficinas de costura

Trabalho escravo nas oficinas de costura

Parece que estamos falando de algo novo, de uma denúncia que nunca aconteceu antes ou que só acontecia no trabalho rural, nos confins do país. Não, não dá para acreditar que essa vergonha acontece até hoje e vem de longa data. Se acontece há tanto tempo, mais de vinte anos, por que ainda não foi erradicado? Por que persiste a escravidão nas oficinas de costura em São Paulo? 

Por Virginia Berriel 

As principais denúncias no seguimento da costura, que inclusive motivaram uma CPI na Câmara Municipal de São Paulo, com relatório final divulgado em fevereiro de 2006, são do ano de 2004 e início de 2005, mas o trabalho análogo ao de escravo nas oficinas de costura de São Paulo surgiu na década de 1990, conforme justificativas para a implementação da CPI naquela época.

No Cami – Centro de Apoio e Pastoral do Migrante de São Paulo, estivemos com cerca de 40 pessoas, entre elas homens, mulheres e até . A principal procura ao nosso país é por pessoas de boliviana, em sequência peruana, depois venezuelana, paraguaia e, por último, equatoriana, nessa ordem.

O Cami tem prestado um serviço imprescindível aos migrantes, acaba por fazer o que deveria ser feito pelo poder público, sem nenhum recurso desse seguimento. São ministradas aulas aos domingos de 8 às 12 horas para os migrantes aprenderem o nosso idioma, mas ali também recebem orientação assistencial e sobre a documentação para saírem da ilegalidade. 

As orientações são importantes, mas percebemos, pelos depoimentos, que os bolivianos são explorados desde o momento que resolvem vir para o , da saída do seu país, no caso da Bolívia, até a entrada no Brasil, muitas vezes por rotas até clandestinas. Os migrantes, na sua maioria, entram de ônibus pela rota por Corumbá, Mato Grosso do Sul, mas também na mesma região utilizam uma rota que passa em terra

A esperança e expectativa de todos que migram para o nosso país é na intenção de terem um trabalho digno, educação, de melhorar de vida, mandar dinheiro para a família que ficou no país de origem. Muitos fogem da pobreza, da falta de trabalho, da , outros em decorrência de perseguição e até por conta de conflitos e guerras. 

A maioria entra em nosso país de forma irregular e fica na ilegalidade, assim essas pessoas acabam presas fáceis no trabalho escravo. Todos os migrantes, exceto aqueles que entram em nosso país de forma regular, estão em estado máximo de vulnerabilidade, eles não conseguem denunciar os maus tratos, nem as jornadas exaustivas e muito menos as péssimas condições de trabalho, por medo. 

Os donos das oficinas retêm a documentação desses , porque eles têm que pagar pela vinda ao nosso país, além da dívida pela . A servidão por dívida, pela comida, pela viagem, daí se culpam por não conseguirem trabalhar e produzir mais e mais, como se a jornada de sete horas da manhã às vinte e três horas, a tal “jornada boliviana” não fosse um absurdo e nem exaustiva. 

Enquanto ouvíamos os depoimentos de um e de outro, de como chegaram aqui, tudo que sofreram e ainda sofrem, eles afirmaram que não querem de forma nenhuma voltar à Bolívia, ao Peru, à Venezuela, ao Paraguai e mesmo ao Equador. Percebemos o grau de desamparo e vulnerabilidade dos migrantes, a esperança exagerada deles de acreditarem que, se trabalharem sem parar, conseguirão ganhar mais, terão condições de uma vida melhor em nosso país para os familiares que ficaram nos países de origem. 

A jornada de trabalho de sete horas da manhã até às 23 horas ou mais não é um absurdo para os bolivianos e peruanos, eles têm costumes diferentes dos nossos e trabalham até muito mais em seus países, mas o problema não está apenas na jornada de trabalho. Essas pessoas moram nas oficinas onde trabalham e ali se alimentam e vivem, onde vivem também as crianças, tudo de forma precária. 

A exploração é muito grande, as oficinas geralmente ocupam um a dois cômodos da casa, as roupas se misturam com os , os ambientes são precários, geralmente trabalham de portas e janelas fechadas, onde não tem ventilação, nem ar-condicionado, muitas ou a grande maioria das oficinas nessas casas não possuem nem geladeira, para não gastar energia. Eles pagam por tudo, desde o prato de comida até o banho que tomam.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO ATUA NA FISCALIZAÇÃO, MAS AFIRMA QUE ESTÁ SEM CONTROLE 

A partir das nossas escutas junto ao Ministério Público do Trabalho, com a procuradora Alline Pedrosa Oshio Delena, o trabalho escravo nas oficinas de costura está fora de controle. 

A pulverização na cadeia de produção está sem limite. Uma oficina corta, a outra costura, outra coloca os botões, outra faz os arremates e, por último, outra costura as etiquetas, sendo assim, é muito difícil chegar na empresa que vai adquirir aquela peça, ou seja, nesse processo extremamente pulverizado do trabalho, é difícil rastrear a cadeia de produção. 

Alertou também a procuradora que praticamente 100% das peças produzidas em São Paulo são provenientes dessa cadeia de produção do trabalho escravo na costura. Que as condições de higiene são mínimas e inexistentes, porque as roupas estão, na maioria das vezes, misturadas aos alimentos, sem o devido condicionamento, que muitas dessas oficinas têm mau cheiro em razão dessa mistura e da falta de ventilação, inclusive da falta de limpeza. É necessário sempre, antes de usarmos uma roupa nova, lavar bem a peça.

Praticamente todas as oficinas de costura possuem risco para as pessoas que ali trabalham. Fiação exposta, sobrecarga de energia, por conta das máquinas e da precariedade dos equipamentos, colocam em risco a vida das costureiras e de seus familiares. 

O prato de comida é servido para a costureira ou costureiro, mas se estes têm filhos que moram na oficina, eles têm que pagar pelo alimento dos filhos ou dividir a comida com as crianças. Muitas costureiras, às vezes, ficam sem comer, ou dividem o pouco alimento com as crianças. Um banho custa até 30 reais. Segundo a procuradora, eles ficam sem tomar banho, ou não tomam banho todos os dias.

O processo de mudança da legislação trabalhista, como a terceirização sem limite e a Reforma Trabalhista, contribuiu muito para esse cenário de exploração contínua. A procuradora afirmou que esses trabalhadores, quando são libertados, recebem o dinheiro da indenização, daí compram uma ou duas máquinas e se “transformam em empreendedores”, se auto precarizam ou buscam outro parente e perpetuam o ciclo de exploração e do trabalho escravo.

O pagamento é por peça produzida, eles produzem qualquer tipo de peça, desde um short até um vestido de noiva. Os preços variam de acordo com a peça produzida que pode ser de 30 centavos até 2, ou 3 reais por peça. Quanto mais peças produzirem, vão receber, assim muitos trabalham até 15 ou 24 horas ininterruptas, com apenas duas ou três paradas para alimentação, para produzirem mais. Eles se cobram e até dizem que é necessário esse empenho para aumentar a produção. 

Nenhum dos migrantes que escutamos saiu de seu país com a função de costureiro (a), eles entram na costura porque existe facilitação no país de origem, propaganda mentirosa lá e por quem os espera no Brasil. Conforme depoimento do coordenador do Cami, Sr. Roque Pattusi, basta irmos no domingo na rua próxima ao endereço daquela entidade, para verificarmos a chegada dos ônibus com os migrantes. 

Muitos saem de regiões muito pobres em seus países porque tem gente lá, porque até panfleto informativo sobre o trabalho na costura, no Brasil, é distribuído, o que instiga ainda mais a vinda desses migrantes. Ou seja, tem um comércio, e os coiotes e facilitadores ganham muito com ele. 

TODOS NO COMBATE  PARA CHEGAR NO TOPO DA CADEIA DE PRODUÇÃO

Nas escutas junto à procuradora do MPT, ficou claro o pedido de socorro, é necessária uma força tarefa para aumentar o contingente de procuradores e para capacitá-los para as fiscalizações acerca do trabalho escravo contemporâneo; não é possível que a entidade tenha apenas duas procuradoras para atender as denúncias de trabalho escravo na cidade de São Paulo. 

Não dá nem para acreditar que são apenas duas procuradoras e a falta que faz uma grande equipe de fiscalização. Mas não basta apenas aumentar o número de procuradores no Ministério Público do Trabalho, é preciso aumentar também o número de Auditores Fiscais no Ministério do Trabalho e Emprego. 

O MTE foi literalmente desmontado no governo anterior, o número de auditores para fiscalizarem e combaterem o trabalho escravo na cidade de São Paulo também são duas pessoas, ou seja, elas jamais conseguirão dar conta da demanda de uma cidade como a capital paulista. 

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Foto: Virginia Berriel

Segundo Sérgio Aoki, que foi coordenador da fiscalização do trabalho escravo, o Ministério do Trabalho e Emprego precisa de uma equipe como a que existe em Brasília, a Detrae – Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, e é necessário que haja em São Paulo uma regional forte da Detrae para trabalharem de forma unificada com o MPT e as entidades como o Cami e os Sindicatos. Só conseguiremos avançar fazendo esse trabalho de combate de forma coletiva, afirmou. 

No passado, as grandes redes de lojas foram fiscalizadas, segundo a procuradora do MPT, por conta da compra das peças dessa cadeia produtiva do trabalho escravo. Citou o exemplo da Zara e de outras redes de grandes lojas, de tanto receberem a fiscalização grande parte do que vendem é produzido em Taiwan, Bangladesh e em outras cidades da China. 

Mesmo assim, as oficinas de costura com o trabalho escravo continuam alimentando o comércio da capital paulista, as lojas do Braz, da José Paulino, a Feira da Madrugada e tantas outras redes de lojas. É importante destacar, como frisou o MPT, as oficinas de costura e o trabalho escravo atualmente estão espalhados na região metropolitana de São Paulo e em demais municípios do Estado. Somente na capital somam mais de 15 mil oficinas de costura.

A forma de mudar essa vergonhosa realidade só acontecerá com muita conscientização por parte das pessoas que hoje estão escravizadas e daquelas que forem libertadas. Importante utilizar a através de programas de rádio web aqui no Brasil para os bolivianos e na Bolívia, afirmou Roque Patussi e padre Paolo Parise, responsável pela Missão Paz. Ambos alertaram sobre a importância dessa comunicação direcionada aos migrantes. 

Esse não é um problema que começou agora, tem muitos anos e muita gente lucrando com o trabalho escravo nas oficinas de costura. As pessoas que se submetem ao trabalho escravo contemporâneo é porque não tiveram nenhuma outra oportunidade de garantir uma vida digna. Ele é utilizado para expansão da lucratividade, é uma ferramenta que alimenta e ajuda a expandir o capitalismo, um modelo baseado na lógica do acúmulo que visa apenas ao progresso em nome do lucro. Podemos afirmar que há desvio ético nesse modelo, o desenvolvimento não pode esmagar a dignidade humana. O direito ao trabalho digno e decente é um direito humano essencial.  

Segundo o coordenador do Cami, é preciso o rastreamento dessa cadeia de produção até chegar no topo dela, nas grandes confecções que continuam comprando, ou ainda criar um Projeto de Lei que obrigue as empresas a  identificarem quem são os seus fornecedores e as oficinas que estão na cadeia de produção têxtil; combater a informalidade na cadeia têxtil; ampliar investimento junto ao MEC para que o tema seja levado para dentro do sistema educacional;  necessário investimento público para que o MPT e MTE possam ter equipes especializadas na fiscalização e no combate. 

Que esses órgãos, MPT, MTE, CAMI, CNDH Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Comtrae – Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Escravo –, possam trabalhar de forma integrada no combate ao trabalho escravo contemporâneo, com este processo acompanhado de permanente fiscalização e da culpabilização daqueles que instigam o tráfico de pessoas e o trabalho em condição análoga a de escravos. Dessa forma, certamente estaremos no caminho certo. Esse é um longo caminho que teremos de percorrer, mas estamos no caminho certo. 

A pergunta que fica, que está engasgada: “você sabe a origem da roupa que está vestindo?”

NOTA DA AUTORA – Esse artigo é fruto de escutas, depoimentos, e Audiência Pública com as instituições e vítimas do trabalho escravo nas oficinas de costura, através de uma missão do CNDH a São Paulo, ocorrida de 27 de agosto a 01 de setembro de 2023.

Virginia Berriel Bancarios.jpgVirginia Berriel Jornalista. Executiva Nacional da CUT – Executiva da Fenaj –Direção do Sinttel Rio – Direção do Sindicato do Jornalistas – Profissionais do Município do Rio de Janeiro – Membra do MHuD Movimento Humanos Direitos – Conselheira do CNDH Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Fotos: Virginia Berriel.

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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