Travessia

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Dois desafios se impõem àqueles que recusam render-se à vitória conjuntural dessa estrutura de longa duração que retorna, legitimada pela via democrática, na atual conjuntura brasileira

Por Carlos Alberto Steil

Este texto dirige-se àqueles que compartilham o mesmo sentimento de pesar diante da vitória do ódio e da violência. Quero estender a mão e abraçar os amigos que juntos estão atravessando este deserto e que sabem que, do outro lado, nos aguardam tempos difíceis de lutas e enfrentamentos. Conforta-me, contudo, a convicção de que a batalha que travamos é digna e justa. Prefiro estar com os que perderam, mesmo porque não quero nem posso me imaginar do lado daqueles que venceram.

Penso que este não é o momento de se apontar culpados que possam ser responsabilizados pela escolha que 57,5 milhões de brasileiros fizeram ao eleger como seu presidente um homem que prega a violência, que faz apologia à tortura, que incita a discriminação aos homossexuais e que promete eliminar todos aqueles que pensam diferente dele.

Mesmo porque, buscar culpados, pode ser uma maneira fácil de desincumbir-se da tarefa de compreender os vários fatores que conjuntamente concorreram para que este pleito eleitoral tivesse o resultado que teve.

Ao eleger-se os grupos de WhatsApp como o instrumento privilegiado da disputa eleitoral, a política transferiu-se da ágora, seu lócus tradicional de de ideias e propostas, para o espaço privado.

Este movimento de deslocamento da política do público para o privado produziu rupturas não apenas no nível dos laços societários, mas também nos vínculos pessoais e familiares. Estas rupturas, provavelmente, não serão superadas com o fim do “tempo da política”, mas adentrarão o cotidiano da vida que segue depois das .

Para muito além da disputa política, estas eleições permitiram emergir, na cena pública e na vida pessoal, estruturas e sentimentos latentes de ódio de classe, de e de homofobia. Em termos culturais, fomos confrontados, mais uma vez, com a estrutura escravocrata, racista, autoritária, machista e patriarcal que atravessa a nossa história como um traço marcante de nosso ethos nacional.

Contida pela frágil hegemonia do democrático, instituído pela de 1988, após a militar, esta estrutura foi novamente liberada, autorizada e exaltada pela figura bufônica do candidato eleito, retornando à cena pública com a força do recalcado.

No nível da estrutura psíquica, estas eleições possibilitaram que as forças agressivas da  pulsão de morte, que nos habitam e nos constituem como humanos, se expressassem livres de qualquer constrangimento imposto pelos vínculos amorosos da pulsão de vida. Ou seja, um número significativo de brasileiros pôde extravasar, pelo seu voto, o desejo primário de eliminação de tudo e de todos que se interponham à fruição do gozo de dominação e objetificação do outro.

Por fim, percebo dois desafios que se impõem àqueles que recusam render-se à vitória conjuntural dessa estrutura de longa duração que retorna, legitimada pela via democrática, na atual conjuntura política brasileira. O primeiro é a defesa irrestrita das instituições republicanas para que consigam conter as forças da violência e da morte que já se voltam contra as populações mais vulneráveis.

O segundo é mantermos a potencia da ação que se expressa no amor, na amizade, na e na criatividade como antídotos à política do ódio e do terro Carlos Alberto Steil – Antropólogo, da UFRGS e ex-coordenador do PPG de Antropologia da UFRGS


Fonte Maior


 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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