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Um dezembro de retrocesso e saudades

Um dezembro de retrocesso e saudades

Por Angela Mendes

Relato pessoal e emocionante da filha de Chico Mendes mostra que a ausência do pai ainda dói.  Mostra como convive, juntamente com  sua filha e sua família com a morte do Chico Mendes e como fazem para fortalecer as propostas de desenvolvimento sustentável que meu pai deixou como legado. Por último diz qual seria o presente especial para Chico Mendes neste final de 2020, mas aí é preciso ler o texto para saber

No ano em que meu pai foi assassinado, eu estava com dezoito anos e grávida, esperando Angélica Francisca, a minha primeira filha. Como a gente não tinha uma convivência contínua, com ele na luta, e eu aqui em Rio Branco, eu achava que talvez não fosse sentir tanto aquela morte anunciada que ele mesmo sabia que estava por acontecer.

Mas quando meu pai morreu foi horrível, e até hoje pra mim não é nada fácil falar disso, porque ainda me toca muito. Foi como se o chão tivesse fugido dos meus pés. Entrei em um buraco de desespero por não compreender como uma pessoa tão querida como o meu pai podia ser morta daquela forma tão covarde.

O destino separou meu pai de mim muito cedo. Ele se casou com minha mãe em 1967 ou 1968, não sei ao certo, e a situação financeira deles era tão precária, de extrema pobreza mesmo. Ele já estava envolvido no Movimento, e eles não tinham nenhuma renda. Eles só tinham a mim e à minha irmã, que veio a falecer com 11 meses de vida, devido à precariedade do local onde a gente vivia, muito distante da cidade e sem condição de tratamento médico.

Depois de algum tempo, tive que vir morar com outros familiares em Rio Branco, porque a situação era difícil. Aí meu pai se separou de minha mãe, e o destino nos separou a todos. Mas desde pequena eu sempre tive contato com o meu pai, porque ele sempre vinha me ver quando passava por Rio Branco.

Nosso último encontro foi justo na semana do assassinato dele, porque ele veio me ver quando chegou de viagem, antes de voltar pra Xapuri. Mas até hoje, a cada momento em que penso, em que falo sobre ele, em que ouço o nome dele, passo pelo sofrimento de 32 anos atrás.

Sinto muita falta das nossas brincadeiras, do carinho que a gente tinha um pelo outro, da vontade que a gente tinha de ter uma convivência diária. Nas vindas dele a Rio Branco e nas minhas idas a Xapuri – naquele ano de 1988 eu tinha passado as minhas férias com ele –, a gente foi criando laços muito fortes.

A última vez que nos vimos, nossa despedida foi de muito carinho, de muita compreensão e, de repente, pronto: eu descubro que não vou vê-lo nunca mais.

Depois da morte do meu pai, eu me juntei ao Movimento e fui trabalhar no Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA), a convite da Júlia Feitoza e da Rosa Roldán, que foram duas pessoas que cuidaram de mim e me deram muita força no momento em que eu mais precisei.

Do CTA eu vim para o Comitê Chico Mendes, do qual hoje sou presidenta, e onde faço um trabalho que me orgulha muito. Primeiro, porque estou perto das pessoas que foram amigas do meu pai e, segundo, porque lutamos para preservar a memória do meu pai, para que o legado dele não seja nunca esquecido.

Todos os anos, realizamos a Semana Chico Mendes, de 15 a 22 de dezembro, do dia em que ele nasceu ao dia em que ele morreu, para continuar mobilizando a sociedade em torno das lutas e dos sonhos do meu pai.

Minha filha, minha família e eu estamos fazendo a nossa parte para fortalecer as propostas de desenvolvimento sustentável que meu pai deixou como legado. Sei que nesse momento parece um projeto impossível, mas acho que seria justo o Acre e o Brasil também fazerem a parte deles, criando uma alternativa econômica ambientalmente saudável e socialmente viável para os povos que continuam vivendo na floresta e da floresta.

Um bom presente para honrar a memória de meu pai nesses 32 anos da morte dele seria alguém anunciar que não vai ter redução da Reserva Chico Mendes, que, ao contrário, novas reservas extrativistas serão demarcadas; que não vai ter expulsão de índio de suas próprias terras, que, ao contrário, os garimpeiros vão ser retirados das reservas indígenas; que alguém vai investir em tecnologia, nos estudo das plantas, porque na floresta tem muito óleo, muita seiva, muita semente, recursos naturais renováveis em abundância.

Esse é o presente que o meu pai merecia ganhar neste dezembro de retrocesso e de saudades.

 

WhatsApp Image 2020 12 09 at 13.44.01Angela Mendes – Ambientalista. Presidenta do Comitê Chico Mendes.

 

 

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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