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Um Universo chamado Cerrado

Um Universo chamado Cerrado na visão de um antropólogo que pensa como ecologista cultural

Por Altair Sales Barbosa

Quando Darwin a apresentou, em 1859, sua obra “A Origem das Espécies” convenceu muitos naturalistas de que os seres não tinham sido criados com formas físicas imutáveis, mas que tinham mudado graças a processos naturais, através de gerações, cobrindo longos períodos.

Aqueles que mudaram para formas melhor adaptadas ao ambiente sobreviveram, os outros declinaram e extinguiram-se. A esse processo Darwin denominou seleção natural. Esses conceitos foram suficientes não só para revolucionar a biologia, mas também todo o pensamento humano.

Os argumentos e fatos indicados por Charles Darwin não incluem os efeitos da inversão de polaridade do campo magnético terrestre, nem a deriva dos continentes, pois esses fenômenos eram desconhecidos ou mesmo inconcebíveis naquela época.

Entretanto, os seus efeitos na evolução, diversidade e extinção das espécies constituem elementos importantes e só reforçam o mecanismo da seleção natural. Esta introdução é oportuna para mostrar a dinâmica do Cerrado, sob o olhar biológico e antropológico da seleção natural.

Dentro dessa ótica, podem-se perceber elementos que de outra maneira passam desapercebidos, e a dinâmica da seleção natural tem a força de ressaltar a necessidade de iniciativas embasadas num seguro ambiental que, por sua vez, esteja embasado num seguro conhecimento científico.

O primeiro ponto a ser levantado no sentido de se compreender esta dinâmica se refere à evolução dos continentes, procurando enfatizar o espaço que hoje corresponde aos chapadões centrais da América do Sul.

Durante o início do Paleozoico, há pelo menos 600 milhões de anos, uma grande massa continental formava a crosta terrestre. Esse supercontinente denominava-se Pangea e ostentava paisagens muito diferentes das conhecidas atualmente.

Somente a título de ilustração, no espaço que hoje corresponde ao território brasileiro, formaram-se três grandes bacias de sedimentação, denominadas no Brasil de Bacia Amazônica, Bacia do Maranhão e Bacia do Paraná.

Essas áreas, separadas por arcos geológicos, experimentaram durante milhões de anos, diferentes processos de sedimentação e ambientes, ora sendo marinho, ora terrestre, e eram conectadas com áreas similares no que hoje em dia corresponde à Antártida, África e Austrália, como atestam os processos sedimentares e a existência de fósseis semelhantes encontrados nestes locais.

No Permiano Superior, ou seja, no final do Paleozoico, essa grande massa continental inicia um processo de cisão, baseado no deslocamento das placas tectônicas e, no Triássico, ou seja, no Mesozoico, já existem dois grandes blocos continentais, um ao norte, denominado Laurásia, e outro ao sul, denominado Gondwana.

Separando os dois supercontinentes se encontrava o mar Tethys, nome que significa mãe dos mares, segundo a mitologia grega. A Laurásia estava constituída pelo que mais tarde seria a América do Norte, Groenlândia, e a parte da Europa e da Ásia que fica ao norte dos Alpes e Himalaia.

O continente de Gondwana, por sua vez, era constituído pelas terras que futuramente constituiriam América do Sul, África, Índia, Austrália e Antártida. Ainda no Triássico, ou seja, no inicio do Mesozoico, esses dois grandes blocos continentais começaram a se fragmentar em unidades menores, mas as fossas originadas entre essas unidades continentais não chegaram, no início, a constituir barreiras para o movimento dos animais terrestres.

Entretanto, no período Cretáceo, Mesozoico Superior, os obstáculos já não permitiam essa . É importante salientar que essa época coincide com um período de extinção em larga escala dos grandes répteis.

II

O Cerrado, entendido aqui como sistema biogeográfico, tem sua história evolutiva ligada aos principais processos experimentados pelos vegetais, o que

culminou com a formação da flora atual, mas está intimamente ligado também às mudanças ambientais, que aconteceram na área que hoje corresponde a grande parte do território brasileiro, principalmente a partir de 80 milhões de anos.

Nessa época, num período denominado Cretáceo, da era Mesozoica, existiam grandes desertos nas áreas hoje correspondentes ao Brasil, sendo que o maior desses desertos recebia a denominação de Botucatu. Daí para frente, porém, houve uma sensível atenuação da aridez, posto que a maior parte do território tenha comportado climas quentes semiáridos e subúmidos, segundo se deduz, pelos tipos de sedimentos e por suas microestruturas.

Nessa época, uma geografia de grandes lagos rasos, situados em depressões detríticas interiores, limitadas por terrenos semidesérticos, de extensão subcontinental, era a paisagem dominante. lsso ocorreu porque a maior parte dos rios formava drenagem endorreica, ou seja, nascia e desaguava no interior do continente. Nesse tempo, a vegetação era do tipo subdesértica e, provavelmente devido à tipologia geral dos solos, teria sido uma flora diferente de todas aquelas conhecidas no país.

O soerguimento Pós-Cretáceo do Planalto Brasileiro, a par com os fenômenos de circundenudação que compartimentaram o grande bloco territorial que se iniciava no Rio Grande do Sul e ia terminar na margem sul da Bacia Amazônica, criou outras paisagens sob a vigência de climas bem mais úmidos do que os do Cretáceo e à custa de drenagens que foram preferencialmente exorreicas, isto é, com franca saída para o mar.

Esse esquema novo de topografia mais compartimentado e de solos relacionados com climas mais úmidos, perdurou por longos períodos do Terciário. Acredita-se que do Médio Terciário para a frente, os solos predominantes enquadravam-se nos domínios pedalfers.

Essa foi, verdadeiramente, a grande mudança global de condições ocorrida na evolução dos planaltos e das paisagens interiores do Brasil, do Cretáceo Superior para o Terciário, criando, assim, condições favoráveis ao desenvolvimento de uma flora que evoluiu no sentido da configuração atual.

Esse fato se concretiza entre o Terciário Médio e o Quaternário, período em que foram elaborados todos os tipos de vegetação relacionados de forma mais aproximada com o quadro atual inter e subtropical brasileiro. Dessa forma, surgiram as matas, as caatingas, as pradarias e os nossos cerrados.

A partir do Quaternário, principalmente na época do Pleistoceno Superior num tempo mais recente, o Cerrado ainda buscava seus limites e flutuava no espaço, sob controle das sucessivas mudanças climáticas, forçadas pela instável paleoclimatologia dos tempos quaternários.

E assim, somente no Holoceno é que os limites do Cerrado ficam restritos à área que hoje corresponde aos Chapadões Centrais do Brasil.

III

Quando a começa a coalescer sobre as áreas de cerrado existentes nos baixos chapadões, força um processo de migração faunística que migra para a grande área existente no Centro da América do Sul, e essa migração faunística favorece no mesmo sentido uma migração humana.

A área core de cerrado dos chapadões centrais da América do Sul deve ser entendida como um Sistema Biogeográfico, composto por subsistemas interatuantes e interdependentes tanto no aspecto florístico como no aspecto da fauna. Há ambientes secos e úmidos durante todo o ano. A vegetação varia de um gradiente de campo limpo até um gradiente de mata.

Essa diversidade de ambiente empresta à biodiversidade do Cerrado um caráter peculiar e seus aspectos evolutivos fizeram com que processos culturais diferenciados também ocorressem de forma sui generis, transformando a região do Cerrado numa espécie de fronteira cultural.

Na realidade, alguns dos mais importantes processos culturais americanos nasceram no Cerrado, como a formação do tronco linguístico Macro-Jê, a domesticação e disseminação de certos tubérculos e outros vegetais e o desenvolvimento de tecnologia de caça, pesca e processamento de recursos vegetais nativos e cultígenos.

O estudo detalhado de diversas comunidades indígenas habitantes do Cerrado demonstra que essas populações aprenderam sabiamente a desenvolver mecanismos adaptativos e planejamento ambiental e social que fossem capazes de lhes permitir uma vida em abundância. Assim são os Kayapó, que habitam as áreas mais elevadas, os Karajá, específicos da calha do Araguaia, os Xavante etc.

Todos esses fatores reunidos fazem com que o Cerrado seja um laboratório antropológico único, no qual se deve olhar e aprender para, com sabedoria, saber planejar o futuro.

IV

A população indígena que povoou o Cerrado não produziu qualquer modificação brusca no equilíbrio do ecossistema, porque inicialmente os homens eram poucos e o nicho adaptativo era amplo.

Até que a população humana crescesse a ponto do seu tamanho ser prejudicial, coube à seleção natural levar a termo uma adaptação primorosamente equilibrada aos recursos ambientais.

A chegada dos exploradores de origem europeia trouxe consequências bem diversas, por duas razões:

1ª – A principal finalidade não era o povoamento e sim a exploração comercial.

2ª – Mantiveram um contato íntimo, ou com a mãe pátria ou com um poder central deslocado, a quem competia ditar as mercadorias a serem fornecidas e o preço das mesmas.

Portanto, pela primeira vez em sua longa história, a região do Cerrado ficou sob a influência contínua de um agente que era alienígena ou exótico, às vezes, como no princípio, até extracontinental, e consequentemente imune às forças modeladoras da seleção natural local.

No início a devastação foi mínima, mas com o passar dos tempos os sinais destas já eram bastante visíveis. O aumento da imigração acelerou cada vez mais o processo de degradação. Surgiram epidemias novas, que contribuíram para dizimar populações indígenas, como a gripe, o sarampo, a varíola, e tal como aconteceu em outras áreas do país, a entrada de escravos africanos introduziu a malária e a febre amarela.

O crescimento demográfico também é algo surpreendente, principalmente de 1950 para cá, e é bem provável que, após o ano 2000, a região do Cerrado tenha uma população tão grande que escape às políticas de planejamento. Esta perspectiva é aterradora, tendo em vista a magnitude da degradação que já ocorreu com uma densidade demográfica bem menor.

A partir da década de 1950, implanta-se no Brasil um modelo econômico chamado desenvolvimentalista, onde a meta é atingir o desenvolvimento a todo custo.

Essa política que, no início, é executada de forma até ingênua, com os governos militares de 1964 em diante adquire um caráter ideológico e, a partir desse momento, o hemisfério começa a presenciar uma grande revolução, não uma revolução do homem e para o homem, mas uma revolução de desrespeito à vida humana e à vida do ambiente.

V

Dentro dessa perspectiva, o Cerrado é recortado por inúmeras estradas, rios são represados, aplainadas, vegetação derrubada, animais são ameaçados de extinção, pequenas comunidades são desestruturadas num ritmo nunca visto na história da civilização.

Ambiciosos projetos de colonização, sem o mínimo de planejamento e conhecimento, com objetivos puramente políticos, são postos em execução. Fatos recentes, ainda vivos na nossa memória, atestam a pujança que esse modelo desenvolvimentista tem, como a ocupação dos chamados Chapadões por capital alienígena, para projetos de reflorestamento com espécies estranhas ao do Cerrado, para produção maciça e efêmera de grãos para exportação.

A criação do estado do Tocantins pode ser citada como outro exemplo, e as especulações para a implantação da Hidrovia do Araguaia e tantos outros exemplos que podem ser listados demonstram a força dessa ideologia.

Assim é que, ao se entrar no século XXI, encontra-se em suspenso o destino do Cerrado. Se as próximas décadas trarão sua ruína ou salvação, ainda não se pode dizer. Embora sejam grandes as lacunas no nosso conhecimento, dispomos de informações suficientes para impedirmos uma degradação irreversível. O que se pode afirmar é que, enquanto o desejo de explorar o Cerrado tiver raízes estrangeiras, a possibilidade de um programa racional de desenvolvimento será nula.

Essa perspectiva é ainda mais trágica porque só o Homo sapiens, entre todos os seres vivos, é o que tem a capacidade de encarar o seu meio ambiente dentro de uma escala mais abrangente, não se limitando à duração de uma vida. Quando analisamos as atividades humanas dentro da perspectiva do tempo geológico, somos forçados a reconhecer que o que está acontecendo na biosfera hoje em dia nada tem de comum.

De fato, desde que os organismos primordiais desenvolveram a capacidade de liberar oxigênio, há centenas de milhões de anos, nenhuma das espécies novas desenvolveu a habilidade de alterar as condições de adaptação da vida sobre a .

Os continentes mudaram de forma, as geleiras avançaram e recuaram, os mares se ergueram, algumas montanhas submergiram e os polos se deslocaram, mas os parâmetros físicos e químicos permaneceram essencialmente os mesmos.

Agora, de repente, novos compostos químicos em concentrações anormais estão sendo lançados na água, no solo e no ar.

Do mesmo modo que as populações indígenas do Cerrado foram quase que exterminadas pelas doenças do Velho , assim também as plantas e os animais que evoluíram durante centenas de milhões de anos são incapazes de enfrentar produtos químicos estranhos, introduzidos bruscamente no seu habitat.

Conhecendo de uma maneira geral como opera a seleção natural, podemos predizer com toda a que, das milhões de espécies que restaram, poucas serão pré-adaptadas às novas condições, mas nada garante que o Homo sapiens venha a figurar entre as espécies sobreviventes.

Altair Sales Barbosa – Antropólogo. Membro do Conselho Editorial de . Capa: Altair Sales Barbosa. 


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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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