URIHI A: A TERRA-FLORESTA YANOMAMI

URIHI A: A TERRA-FLORESTA YANOMAMI

Urihi A: A Terra-Floresta Yanomami

Os brancos pensam que a floresta foi posta sobre o solo sem qualquer razão de ser, como se estivesse morta. Isso não é verdade. Ela só é silenciosa porque os xapirepê [espíritos auxiliares dos xamãs] detêm os entes maléficos e a raiva dos seres da tempestade. Se a floresta fosse morta, as árvores não teriam folhas brilhantes.

Por Davi Kopenawa

Tampouco se veria água na terra. As árvores da floresta são belas porque estão vivas, só morrem quando são cortadas e ressecam. É assim. Nossa floresta é viva, e se os brancos nos fizerem desaparecer para desmatá-la e morar em nosso lugar, ficarão pobres e acabarão sofrendo de fome e sede.

As folhas e as flores das árvores caem e se acumulam no chão. É o que dá cheiro e fertilidade à floresta. Esse perfume desaparece quando a terra se torna seca demais, e os riachos se retraem nas suas profundezas. É o que acontece quando se cortam e se queimam as grandes árvores, como as castanheiras, as sumaúmas e os jatobás. São elas que atraem a chuva. Só tem água na terra quando a floresta está com boa saúde.

Quando ela está nua, desprotegida, Mot´okari, o ente solar, queima os igarapés e os rios. Ele o seca com sua língua de fogo e engole seus peixes. E quando seus pés se aproximam do chão da floresta, ele endurece e fica ardendo. Nada mais pode brotar nele. Não tem mais raízes e sementes na umidade do solo.

As águas fogem para muito longe. Então, o vento que as seguia e nos refrescava como um abano se esconde também. Um calor escaldante paira em todos os lugares. As folhas e flores que ainda estão no chão ressecam e encolhem. Todas as minhocas da terra morrem. O perfume da floresta queima e desaparece. Nada mais cresce. A fertilidade da floresta vai para outras terras.

A terra da floresta possui um sopro vital, wixia, que é muito longo. O dos seres humanos é muito menor, vivemos e morremos depressa. Se não a desmatarmos, a floresta não morrerá. Ela não se decompõe. É graças a seu sopro úmido que as plantas crescem. Quando estamos muito doentes, em estado de espectro, ele também ajuda na nossa cura.

Vocês não veem, mas a floresta respira. Olhem pra ela: suas árvores estão bem vivas e suas folhas brilham. Se ela não tivesse sopro, as árvores estariam secas. Esse sopro vem do fundo da terra, lá onde repousa seu frescor. Ele também está em suas águas.

É assim. A floresta está viva. Não a ouvimos quando ela se queixa, mas ela sofre, como os humanos. Ela sente dor quando está queimada e geme quando suas árvores caem. É por isso que não queremos deixar que ela seja desmatada. Queremos que nossos filhos e netos possam crescer achando nela seus alimentos.

Nossos antepassados foram cuidadosos com a floresta, por isso ela está em boa saúde. Desmatamos muito pouco para abrir nossas roças. Plantamos bananeiras, mandioca, cana-de-açúcar, inhame e taioba. Depois, deixamos a floresta crescer de novo.

As roças antigas são logo tomadas por uma vegetação emaranhada, e as árvores brotam novamente. Quando se planta no mesmo lugar, nada cresce direito. A terra perde seu cheiro de floresta, fica ressecada demais. Assim, as plantas ficam quentes e não se desenvolvem. Por isso, nossos antigos se deslocavam na floresta, de uma roça pra outra, quando suas plantações enfraqueciam e a caça diminuía perto de suas casas.

A floresta não está morta, como pensam os brancos. Mas se eles a destruírem, ela morrerá, com certeza. Seu sopro vital fugirá para longe. A terra se tornará árida e só haverá poeira. As águas desaparecerão. As árvores ficarão secas. As pedras da montanha irão se aquecer e se partir.

Quando o sopro da imagem da terra está presente, a floresta é bela, a chuva cai e o vento sopra. Ela vive com os xapirepê.  Foram criados juntos. É assim. A floresta não é bela por acaso. Mas os brancos parecem pensar que é. Eles se enganam.

O que vocês chamam “natureza” é, na nossa língua, urihi a, a terra-floresta e sua imagem utupê vista pelos xamãs: urihinari a. É porque existe essa imagem que as árvores são vivas. O que chamamos de urihinari a é o espírito da floresta, das suas árvores: huu tihiripê, das suas folhas: yaa hamaripê, e dos seus cipós: t´ot’ oxiripê. Esses espíritos são muito numerosos e brincam no seu chão.

Nós os chamamos também urihi a, “naturezada mesma maneira que os espíritos animais yaroripê e mesmo os das abelhas, das tartarugas e dos caracóis. O poder da fertilidade da floresta, nê rope a, também é “natureza” para nós: ele foi criado com a floresta, é sua riqueza.

Os xapirepê possuem a “natureza”, o vento e a chuva. Quando os filhos e as sobrinhas dos entes brincam na floresta, a brisa circula e não faz calor. Quando os seres da chuva descem sobre as colinas e as montanhas da floresta, a chuva cai. A terra se refresca e as doenças vão embora. É assim. Se os xapirepê ficam no peito do céu e não são chamados pelos xamãs, a floresta se aquece. As epidemias e os seres maléficos se aproximam. Os humanos, então, não param de ficar doentes.

Os xapirepê se movem sem parar dentro da floresta. Ela pertence a eles e isso os deixa felizes. Os filhos e as filhas dos espíritos das águas yawarioma pê brincam ali sem parar. Os brancos não sabem nada disso. Eles pensam que a floresta é bela, fresca e ventilada sem nenhum motivo.

Para nós, a “natureza” é Urihi a, a terra-floresta, é também os espíritos xapirepê que nos foram dados por Omama [o criador]. A floresta não existe sem razão. Os xapirepê vivem nela e Omama quis que protegêssemos suas moradas.

Davi Kopenawa – Liderança Indígena. Xamã Yanomami. Depoimento recolhido, traduzido da língua Yanomami e editado por Bruce Albert, publicado no livro “Urihia a: A terra-floresta Yanomami” – Bruce Albert e William Milliken. ISA, 2009.

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UMA REVISTA PRA CHAMAR DE NOSSA

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

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